Ilustração: Internet
Muitas vezes insistimos em saber onde está a
inspiração. Aliás, nem adianta forçar muito a cabeça, nem correr atrás dela,
porque inspiração gosta mesmo de naturalidade, de espontaneidade e do
improvável. Quando menos se espera ela surge sem nenhum esforço. Ela independe
de nossa vontade e é soberana; vem quando e se quiser. Aliás eu sempre acredito
que ela se alia à solidão. Quanto mais
solitários, mais plenos de imaginação. Entretanto há vezes que ela aparece no
meio da multidão.
Mais uma vez experimentei
entrar na fila do caixa preferencial. Apesar de ainda não ter idade para este
benefício, quando vejo que está com pouca gente, é para lá que eu vou. Não que
eu queira passar as compras, pagar e sair correndo do supermercado, valendo-me
de um direito que não é meu. Ao contrário, como os demais, também não tenho
pressa. E, por não ter pressa, me junto aos outros, onde os casos brotam com a
naturalidade peculiar aos idosos. É um jeito de reviver os bancos de jardins,
ou as cadeiras nas calçadas das cidades do interior. Apesar do desconforto de
todos ficarem de pé, o lugar é ideal para ouvir ótimas histórias. Eu não tiro o
lugar de ninguém. A fila é terapêutica e funciona como uma sessão de
psicanálise. Dependendo do caso, lembra o muro das lamentações. Há muitos
precisando falar e alguns com paciência para ouvir. É o meu caso; gosto muito
de ouvir. Vai-se do comentário do preço absurdo do pimentão e do tomate, à
comovente e imprevisível eleição do despojado Papa Francisco. Uma conversa de
linhas cruzadas se emenda na outra e acontece uma confraternização de países.
Há pessoas de variadas nacionalidades e se ouve conversa em francês, italiano e
japonês, além do português, é claro. Uma senhora contava maravilhada a cirurgia
que fez para colocar uma prótese no joelho, discorrendo sobre robótica, biomecânica
e articulação de titânio. Estava tensa, se preparando para fazer o outro
joelho. Para aliviar o nervosismo dela eu disse com carinho e bom humor: ainda
bem que a senhora não é uma centopeia. Já imaginou? Ela riu e me deu razão,
divertindo-se com a brincadeira.
Pois é, realidade aumentada, biogenética,
bioética, nanotecnologia, crimes cibernéticos... É o futuro que já chegou e o
que parecia ficção científica está acontecendo em todos os âmbitos. Agora se
sabe: o tempo todo somos monitorados pelo grande olho do Tio Sam. Não há mais
segredos e nem confidências. Uma velhinha mandava um torpedo avisando que
estava no supermercado; outra arrastava a tela e abria o Instagram com fotos da
família. Outra exibia a carinha sorridente do neto na Holanda. Uma falava da
primavera parisiense e outra contava que teria que despedir a empregada, porque
não teria como suportar os encargos da PEC das domésticas. A moça do caixa procurava
o código do milho verde... Por que a máquina não lia o código de barras? A
máquina falhou e o velhinho descartou o milho e desistiu da compra. Uns
resmungavam pela demora, ou por coisas banais e outros não se davam conta que
uma demonstradora oferecia queijos e vinhos para degustação. Os temas eram
recorrentes: filhos, filhos e filhos; netos, netos e netos... Uns trabalhando,
outros desempregados e os pequenos dando trabalho.
A passos lentos, enfim, chegava minha
vez. Passei meu cartão com meu CPF. Isto me dava alguns descontos em razão da fidelidade
ao supermercado, como cliente VIP. Minha fidelidade, tenho que ser honesta, se
restringia à proximidade do mercado e ao meu comodismo, em vez de buscar melhores
preços. Qual não foi o meu espanto quando o monitor do caixa exibiu meu nome em
letras grandes e cores variadas, emitindo um sinal de parabéns; afinal era meu
aniversário e eu era um cliente preferencial. Foi assim que a fraternidade
nasceu de um impulso artificial de um computador com todos os meus dados. Não
tinha mais dúvida. A máquina se confraternizava afetivamente comigo e era quase
humana, cumprimentando-me. Sim, eu estava vivendo o futuro, em meio à primavera
parisiense, à Copa das confederações, às obras do Rio de Janeiro, aos desmandos
da inflação, à expectativa da Jornada Mundial da Juventude, à Edição 2013 de
Roland Garros, ao Grand Prix de Mônaco, à vigilância internacional de meus
emails e minhas ligações e aos vasos de flores geneticamente acelerados. Os
vasos de azaleias, lírios, gerânios e tantas outras flores agora são
feitos para nascer, crescer, florescer e morrer em uma única estação. Duram o
tempo efêmero que dura o Dia das Mães... Ah! O ciclo de vida das flores...
Bom, ao menos isto não fizeram conosco...
Ainda temos tempo para nascer, crescer, multiplicar e para viver um dia de cada
vez, mesmo que os dias pareçam mais curtos. Mesmo que invadam as nossas vidas,
nossos celulares, nossos computadores para nos darem um número no cadastro
mundial de máquinas humanas, ou um código “X,” ainda seremos humanos e
viveremos o tempo que Deus permitir. Mesmo que tenhamos que repor uma peça de
titânio aqui e outra ali, ainda assim seremos humanos. Por enquanto, é claro!...
Valéria Áureo
08/06/2013
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