São quatro irmãos reunidos naquela casa antiga de
sobrado. Três homens e uma mulher. A
irmã já não contava mais.
Agora só restavam os três homens. Cada um com a sua
guerra particular e seus ressentimentos. Tinham raiva um do outro e mostravam
os dentes uns aos outros. Havia muito tempo que não visitavam o casarão. É como
se não soubessem mais para que lado a vida tinha seguido, sem saída e sem
paixão. Todos eles, coincidentemente tinham afeição aos cães. Como não
conseguiam amar uns aos outros, amavam exclusivamente os seus bichos de
estimação. Eles sim eram depositários de todos os afetos de cada um deles.
Todos os levavam a passear na pracinha iluminada da cidade. Cada dono com o seu
cão; e nem os cães se entendiam com os demais cachorros, nem com os outros
irmãos, como se a amizade entre eles fosse uma traição aos donos.
Os cachorros saíam à noite e os seus donos aceitavam felizes
serem arrastados pelas correntes, cada um para um lado diferente do outro. Os
cães não eram os únicos a usar coleira. Seus donos sempre tinham um entrave na
garganta. Era um nó, um espinho pontiagudo que descia até o peito. Depois do passeio os cachorros decidiam que
era hora de ir e os donos voltavam submissos ao casarão.
Chegaram! Vamos jantar! — disse a mãe. Há tempos não
comiam juntos; cinco anos... Eram
ocupados demais, cada um em sua cidade e em suas mágoas... Mágoas e nem se
sabia mais a razão delas, naquele momento; apenas foram se acumulando como o
mofo nas paredes da velha casa. E quando se deram conta, não se olhavam mais
nos olhos. Mal se falavam, depois de anos e anos distantes.
Cada um olhava e conversava apenas com o seu cão. Há
muito tempo não detinham a imagem de afagos e declarações de amor do passado.
Perderam-se cinco anos antes, depois do enterro do pai, disputando seu espólio.
O pai era um numismático, um colecionador de moedas e cédulas. Tinha uma caixa
grande onde guardava dezenas e mais dezenas de cédulas no estado de “flor de
estampa” (novinhas em folha, sem dobras e com alto relevo preservado). A caixa
foi a razão de toda a discórdia. Agora a irmã era uma só chave para abrir os
quatro mundos e libertar os espíritos aprisionados no passado.
Hoje foi inevitável se encontrarem. Deviam se
perguntar ao verem a irmã pela última vez: por que ela está dormindo nessa
caixa? (Silêncio). Por que ela está dormindo nessa caixa toda enfeitada de
flor? (silêncio). Puderam pensar que ela mais parecia uma cédula preciosa no
estado de “flor de estampa”. Todos pensavam que seria melhor se ela acordasse e
saísse da caixa!Tão jovem, tão linda, tão perfeita em seu estado virginal. Sim, uma preciosa flor de estampa.
Assim sobraram os três irmãos para repartir a vida com
ela, a mãe já envelhecida. Nada mais fazia sentido depois do espólio do pai. Cada
um com seu cão e a imagem da irmã naquela caixa de flores.
Pela manhã, no
café daquele dia do enterro da irmã, dividiram os sonhos, como nunca tinham
dividido. A vida lhes parecia nova, apesar do reencontro em uma circunstância
tão triste. Uma caixa triste, onde não havia mais nada a repartir, senão a
irmandade em flor. A mãe chorou muito e perdoou. Conversaram as antigas saudades. Eram
tentativas de amizade e do estreitamento do amor fraterno. Quem sabe se
tornassem amigos? Riram, conversaram e se abraçaram. Olharam-se profundamente
nos olhos, tocaram-se, perdoaram-se, beijaram-se, enquanto os cães ficaram do
lado de fora do sobrado... Os cães enciumados mudaram com os seus donos...
Começaram a ter raiva e a mostrar os dentes.
Autora:
Valéria Áureo