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sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Viajando para Angústias (botas e dentaduras)


Já lhes contei de meu percurso via aérea e marítima, passeando por Parvopolis, Cretineia, Cretínia e Balburdia. Hoje vou para um vilarejo bem próximo de Balbúrdia, nos confins de Canálias e Temerárias, lugares já descritos por mim em outra narrativa. Uma falta de logística nesses países me faz ir e vir, incessantemente, viajando em círculo, graças aos improvisos das companhias aéreas. Quando não há uma rota definida, desviam um avião de seu destino e logo arranjam um “quebra galho”. Sei que é perigoso, mas é o que há disponível na região. Creio que esse vórtice desgovernado tem o objetivo de deixar o povo tonto e sem senso de direção. Povo tonto é mais fácil de governar. Nunca sabe para onde vai.
Apesar de meus receios, a viagem me surpreende; é suave, o clima é agradável e os nativos são acolhedores. Uma coisa os une no mesmo espírito de urbanidade: todos são muito pobres e ainda usam do escambo como dinâmica econômica. Uns produzem cestos, balaios e os trocam por banana, abacaxi ou outra fruta do lugar. Todos se unem também na insatisfação com os governantes que formam uma grande família, cujos membros se alternam no poder. Morre o pai e elege-se o filho. Os “fiotes” dos governantes não se preocupam muito com a vida, pois contam com a ingenuidade do povo, que lhes garante existência pública fundamentada no DNA. Atualmente os moradores do lugar são visitados por pessoas estranhas, que jamais souberam da existência deles. É a corrida ao ouro, ou melhor dizendo, é a corrida eleitoral.
Angústias é aprazível e acolhedora e está em polvorosa. Escolhe-se um novo líder em meio ao caos dos mais recentes acontecimentos. O que não falta é gente para se oferecer de corpo e alma, para resolver os problemas da população esquecida. É como se estivessem falando em nome de Deus; são arautos angelicais distribuindo “santinhos”, porque fórmulas milagreiras proliferam e o eleitor é o grande alvo. O objeto de desejo – o voto – que até então era trocado em Angústias, por um par de óculos, botinas, ou uma singela e sorridente dentadura, teve seu valor disparado no mercado. Ninguém mais quer a dentadura, o que tem bastante lógica. A dentadura, depois das eleições, nunca mais sorri, pois não lhes cabe na boca e o povo continua desdentado. Se cabe bem rente, a ponto mesmo de machucar, algumas vezes a dentadura tem o efeito de mordaça e torna o presenteado um conivente. Recebe o presente e fica calado para sempre. E, calado, consente! Quando a dentadura se ajusta na boca, não tem serventia, pois falta ao povo o que mastigar.
Acreditem, Angústias pode mudar de nome depois das eleições e dependendo do resultado, isso já é esperado. Uns sugerem Catástrofe, outros mantêm a esperança e desejam que seja Colossus. Vai depender da maioria. O voto, essencial para a grande mudança, vale muito mais do que o tapinha nas costas, dado pelo candidato com nojo de gente, espanando a caspa dos ombros do homem vergado pelo peso da existência; vale muito mais do que o sorriso platinado em prótese, o elogio fácil e a elevação do homem comum ao status de cidadão em dias de campanha. Considerem isso.
Parece-me que os moradores locais de Angústias chegaram ao limite e descobriram que o voto vale o peso de cada um em ouro. Vale quanto pesa! Sim, se você está com setenta e dois quilos, em Angústias, isso equivale a setenta e dois quilos de ouro e não mais um pé de uma botina. Sim, pois o eleitor até então, valia um só pé de bota, tanto quanto valia a perna única do Saci Pererê. E, como Saci Pererê é uma ficção, considero que o homem comum é visto assim – não existe na realidade. E, lembrando sempre que o par de botas só era formado se o “padrinho” ganhasse a eleição. O povo continuava a andar com um pé descalço em terreno árido e sem direção certa. Claro, sem resolver o seu problema, criava outro muito maior, porque com um só pé da bota, passava a mancar e ficava coxo. E assim tem sido! Andando, capengando, se arrastando e caindo... E correndo o sério risco de nunca mais se levantar.
Autora: Valéria Áureo -
In: Docilidade de Sobreviventes

Intimidade


Havia invejável intimidade entre minha mãe e Deus. Ao longo da vida ocorreu essa comunhão, que foi se solidificando cada vez mais. Por mais que parecesse fraca e oprimida, Deus a considerava forte e especial e assim a tratava, como filha amada. Da mesma forma ela devotava a Ele amor imensurável. Ambos eram fiéis. Conversavam todos os dias. Mesmo quando ela se perdia em lágrimas, havia o diálogo silencioso que só as almas sagradas decifram. Talvez as lágrimas fossem rios navegáveis que a levavam ao Pai. Ela conhecia o caminho e com Ele chegou ao seu destino, sem nunca ter perdido a direção.
Antes de partir minha mãe decodificou o enigma da oração para seus filhos.

Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Quem é ela?


Estamos nos conhecendo. Amorosamente, nos conhecendo nas primeiras carícias na pele. Tudo em torno é suavidade e primeiro olfato. Ela ocupa um espaço pequenino, mas o mundo é ainda menor para tanto. Ela ocupa tudo. Não é mais a ideia de sua vinda do universo da concepção, mas a concretude de sua existência física, palpável, nas delícias do tato.
Ela é! Respira, tem hálito e alma, desde o momento em que se instalou no pequeno berço do corpo materno, onde fez ninho... Ah! O amor que se vai construindo a cada expectativa do que virá a ser, a cada toque, a cada sorriso, ou inquietação... Por que chora? Por que as lágrimas são tão grandes no rosto tão pequeno? São os primeiros rios de água doce a ocupar o sal de minha alma.
Ah! Ela chora porque ainda não me conhece na minha amplitude serena da idade, no outro extremo de sua chegada, na alma plenitude conseguida com tempo e adequação. E nem eu mesma sou aquela que acreditava ser ainda ontem, e que ainda me descubro refletida nos olhos dela, onde me procuro nadando, nadando, nadando...
A pequena que se faz na urdidura dos afagos, do leite, do amor, ocupa o universo já na sua tíbia percepção e me olha profundamente e ri. Ela investiga o meu rosto, eu investigo o rosto dela e assim nos reconhecemos: eu, a mãe do pai, no outro lado da linha, sou ponto de uma tapeçaria. Reflito sobre a calmaria dos anjos enquanto ela dorme. Sou ponte e sou porto. E nessa costura de ternuras, ela me mostrará a cada dia quem eu sou - pois me faço diferente todos os dias. Hoje eu sei que sou avó! Avó da Maitê!


Autora: Valéria Áureo
To: Hubert, Carol, Maitê, Candice e Luiz Fernando

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Provisão



          Chuva de Prata
Se quiser uma aguinha gelada, um algodão doce, pega aqui comigo!...
O ambulante movimentava a rua parada com sua voz estridente. Tudo estava em seu lugar; estranhamente em seu lugar de segunda-feira, terça, quarta... De ágil mesmo, só palavras ressoando na rua vazia. Uns poucos transeuntes falavam ao celular e deixavam mensagens aflitas: temos que estocar mantimentos! Não se sabe quanto tempo essa paralisação vai durar. E se faltar?... E divulgavam as suas necessidades e intenções de água, comida, material de higiene, aos gritos nervosos. E nada mais se poderia ouvir, senão os interesses individuais.
Pensei no que eu poderia querer, para fazer um estoque, uma reserva de bens de primeira necessidade. De que eu precisaria e por quanto tempo?Talvez eu começasse por um arsenal de palavras, para depois pensar no resto. Estranho, não é? Eu e o meu vício de colecionador de palavras. Na verdade, eu gostaria mesmo é de uma chuvinha fresca de palavras como: país / mais/ provisório/ louco/ onde/ previsão/ mistura/ urnas / gente/ fatídica/ se / entende/ tem/ /mais/ caos / fome/ confusão / presidência / previdência / social / inocência / indecente / eleição / corrupção / socorro!...
Socorro, vou morrer afogada! Não contava com esse temporal! Eu só queria uma chuva fininha, de prata...
Valéria Áureo

terça-feira, 10 de julho de 2018

Segunda Pele


                                                               Ilustração: Internet


          Eu usava jeans lavado, rasgado; um adereço para se ajustar ao coração desbotado de juventude sem paradeiro. Havia tempos que eu vivia nesse desleixo, quase despido de energia e voz, sem saber sequer sonhar. Um ser adoecido, rebelde, cinza, apagado, produto da moral do país. Mais um ser aniquilado pela decepção; constatação da destruição e caos. Sabia que meu coração estava sintonizado in blue, apesar de sons irreconhecíveis entrando pelas janelas. Todo dia uma melodia de escárnio rasgava a minha pátria. Ó Pátria desvalida! Ó Pátria desditosa! Ó Pátria que desconheço! Pensamentos arrancados de um novelo embaraçado de ideias me enforcavam.
Vesti amarelo. Tênis azuis com faixas verdes e o hino reverberando no crânio.  E, a partir disso, minha identidade aflorou, irrigando os meus poros em uma explosão. Saí e gritei em defesa da pátria aviltada. E não tirarei a camisa da Pátria, até o fim das eleições ( e dos meus dias). Vesti a Bandeira do Brasil, agora morando em mim, se tornando a minha segunda pele.

Autora: Valéria Áureo

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Premonição Genial


O menino era tímido e bem arredio. Nunca falava. Nas raras vezes em que tentava falar, se arrastava nervosamente, salpicando as sílabas em tropeços angustiantes para quem o ouvia. Quando a família constatou que ele era gago, tratou de levá-lo a uma fonoaudióloga. Apesar disso, não houve jeito. O garoto era tímido demais até mesmo para tentar corrigir o problema. Os pais temiam que a gagueira pudesse comprometer o seu futuro. Eles sonhavam sempre o melhor para seus filhos. Que o menino conquistasse o mundo era o que ansiavam.
Na escola deu-se uma revelação. Ele não se comunicava verbalmente e apenas balbuciava uma sílaba em vã tentativa: Gu... Gu... Gu... E não conseguia ir adiante. Os colegas se davam por satisfeitos em chamá-lo Gu, o gaguinho. Afinal Gu era um prodígio e demonstrava saber mais do que professores e mesmo o diretor, um renomado doutor. Gu era accessível e atencioso e não se incomodava em ajudar. A tudo respondia em uma velocidade inimaginável e sem pestanejar. O único ponto interessante é que só respondia por escrito. Já tinha desistido de falar. A primeira vez em que seus colegas ouviram palavra diferente foi em um jogo de futebol. Misteriosamente ouviram-no gritar Gol! Gol! Gol! Todos ficaram com a impressão de que Gu adorava futebol. Assim, em troca de conhecimento privilegiado, Gu, o amigo gaguinho, era levado aos campos de futebol, onde assistia aos jogos, dando em troca o seu imponderável saber. Enquanto acompanhava o jogo ele fazia por escrito os trabalhos dos colegas com grande presteza. Um fenômeno, diziam todos maravilhados e agradecidos, porque já não sabiam mais viver sem recorrer a ele. Gu só parava de escrever quando acontecia um gol. Era quando gritava sorridente. Gol! Gol! Gol!
Os anos se passaram e Gu foi para Stanford, onde se comprovou que ele sabia muito mais dos que os mestres, os doutores, os reitores. Gu era um gênio! Em Stanford Gu conheceu um brilhante colega russo, Sergey com quem se identificou de imediato. Gu não falava nada e Sergey falava russo, o que poderia ser um grande empecilho para a comunicação, mas ambos escreviam em todos os idiomas do planeta e se comunicavam muito bem e com agilidade. Os dois jovens eram ilustres estudantes da Universidade de Stanford reconhecidos como geniais. Tornaram-se tão amigos que criaram um projeto de doutorado cujo foco era criar um buscador que fosse muito rápido no resultado. O buscador tornou-se um sucesso e a empresa que eles criaram recebeu o nome Google. Descobriu-se que Gu, que sabia gritar gol, se chamava Larry Page. Ambos ( Sergey Brin e Larry Page) ficaram milionários. Gu, para os colegas, seria sempre o amigo gaguinho, o sábio. E, como todo gênio, o seu saber se espalhou pelo mundo inteiro. Os pais de Gu não se decepcionaram, apesar da gagueira do menino.
Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes
Publicada em O Imparcial de Rio Pomba

Ligações Reconfortantes V


                                                                              Ilustração: Internet


          - Oi, aqui é Eduardo, o seu atendente virtual! Você sabia que a sua casa já tem banda larga ilimitada, para acessar de qualquer ponto? Eu posso...
          Eu interrompo o Eduardo e deixo o telefone fora do gancho. Eduardo, do outro lado da linha continua falando, falando... Minha cabeça acelera e faz considerações. Um atendente virtual? Banda larga ilimitada em casa? Minha cabeça tresloucada já entende que talvez Eduardo seja virtuoso. Teria eu entendido errado?Ando confusa... Um atendente virtuoso! Virtudes cardeais, teologais, humanas? Ou seria um virtuose? Um desses que tem uma banda de rock?  Quem sabe pianista, saxofonista, que faz soar ao longe as notas da felicidade de um blue.  Penso em música. Penso no azul, no sereno som combinado com neblina. Flerto com a ilusão de uma ligação amorosa. Penso em virtudes. Mas seria muita sorte minha um atendente virtuoso, ao menos, e dono de atributos que já não constam mais nos hábitos e condutas.
          Voltei o meu pensamento para as quatro virtudes cardeais, como as estações do ano, os quatro elementos, as quatro fases da vida, os quatro pontos cardeais, os quatro cavaleiros do apocalipse... Eu e minha mania de associação de ideias... Já é outono, mas imagino viver uma tarde de verão em que cobro virtudes de um atendente virtual. Quem sabe ele seja dono de prudência, a primeira da lista. Como é difícil Eduardo, ser prudente. Se o fosse não ligaria para mim, pois sou muito crítica e inoportuna. Sou impaciente! Posso perder o controle até mesmo ao telefone. Não, Eduardo não é prudente. Prudência é sabedoria, previdência, precaução. A prudência coloca a nossa atenção na preparação dos fatos e eventos e nunca na precipitação nem no amadorismo ou improvisação. Eduardo, o atendente virtual não improvisava, porque o texto era gravado. Não se colocava ao pé do precipício. Contudo aposto que ensaiou uma dezena de vezes, antes de gravar a mensagem. Precavido era.
          Quem sabe, o Eduardo da Vírtua tenha temperança. A segunda virtude trata do autocontrole, autodomínio, renúncia, moderação. A temperança ordena afetos, domestica os instintos, sublima as paixões, organiza a sexualidade, modera os impulsos e apetites. Abre o caminho para a continência, a castidade, a sobriedade, o desapego. Bom, eu concluo a favor do atendente: temperança ele deve ter, pois autodomínio e moderação são para poucos e ele demonstra na voz certa cautela. A temperança não permite que sejamos escravos, mas livres e libertadores e nos encaminha para o cumprimento dos deveres e para a maturidade humana. Sem renúncia não há maturidade. Grande fruto da renúncia é a alegria e a paz. Não sei por que, mas me veio à cabeça a ideia dos temperos e sabores e contrastes: doces, salgados, amargos, ácidos... Não seria a temperança a arte de saber misturar tudo isso, na dosagem certa e preparar uma ceia deliciosa? Sabedoria para tirar o amargor da vida e colocar a doçura na medida certa para não enjoar. Parece-me que a temperança é a medida certa para todos os prazeres.
          Fortaleza. Sim, eis a terceira virtude. Eduardo, o atendente virtual seria uma fortaleza? Faz-nos fortes no bem, na fé, no amor. Leva-nos a perseverar nas coisas difíceis e árduas, a resistir à mediocridade, a evitar rotina e omissões. Pela fortaleza vencemos a apatia, a acomodação e abraçamos os desafios e a profecia. É virtude dos profetas, dos heróis, dos mártires e dos pobres. Mais uma vez a minha cabeça foge... Não tenho coragem para os grandes desafios e me confesso afeita às acomodações. Se eu pudesse escolher teria sido um gato (quieto sossegado no meu canto, sem qualquer tipo de amolações, a começar por telefonemas...). Acredito que o Eduardo da Vírtua também esteja acomodado no seu canto, repetindo, repetindo, repetindo... Coitado do Eduardo! Seu mal será a intemperança? Pode ser...
          E lá vou eu à última virtude cardinal: Justiça. Ela regula nossa convivência, possibilita o bem comum, defende a dignidade humana, respeita os direitos humanos. É da justiça que brota a paz. Sem a justiça nem o amor é possível. Agora eu passo a me lembrar de todos os amores impossíveis e concluo que fui muito injustiçada nesta vida. Não tive paz nos meus afetos. Há uma lista de possibilidades, com as quais sonhei e, no entanto... Bom, a culpa foi minha, pois eu não tive a tal coragem, advinda da força. Já notei que as virtudes andam encadeadas; se falta uma delas, nós já flertamos com as desventuras. Talvez me tenham faltados os temperos; aqueles que a baiana tem... Mas, sejamos justos: quem respeita os direitos humanos, afinal? E a justiça, como anda? Talvez devesse perguntar ao Eduardo, que continua a falar ao telefone, enquanto eu analiso todas as possibilidades.
          Retomo o telefone e coloco o aparelho ao ouvido. Meu atendente virtual diz: para consertos, digite o número quatro! Mas, não me provoque, Eduardo!
          Bom, Eduardo não teria ido tão longe, pensando em Platão ou São Tomás de Aquino ao fazer sua gravação para a Vírtua. E ele, Eduardo, ainda me diz que minha casa tem banda larga ilimitada. Que nada! Nem banda, nem bateria, nem cozinha, nem sax. Aqui há muito não se ouve um blue ou um jazz. Aqui não há concerto! Bem, não sei muita coisa de meu atendente virtual, mas afirmo que ele é fiel, lá isso é, pois me liga todos os dias, impreterivelmente às dez da manhã, às quinze da tarde e às dezenove horas. Já é um conforto ter três ligações ao dia, porque, pelo menos assim alguém me liga.

Valéria Áureo

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Ligações Reconfortantes IV


                                          Ilustração: Fonte: Internet


- Alô, com quem falo?

- Com quem deseja falar?

- Com o responsável, ou a responsável pela linha telefônica. Ele está?

- Sou eu, pode falar. O que deseja?

- Olá, como vai, tudo bem? É um prazer falar
com a senhora. Aqui é da VIVO. É uma ligação referente a planos...
- Planos, é? Já imaginava! Vivem ligando para mim todos os dias. Só vivo liga para mim. Morto não se comunica; abandona de uma vez por todas... Dizem até que tem outra vida depois da morte, mas não sei se tem telefone, chamada, essas coisas... Meu médico disse que é até bom eu atender ao telefone, pois vivo muito sentada, disse que vida sedentária me prejudica; a VIVO liga toda hora e eu me levanto e atendo; me levanto e atendo... Sou uma senhora de 85 anos e meu geriatra disse para eu não me aborrecer, porque o exercício é bom para o meu coração e para as pernas. Disse que preciso de fisioterapia.
- Sim, mas vamos ao que motivou a ligação da VIVO. A  empresa VIVO está lhe oferecendo um plano fidelidade.
- Fidelidade, é? Fidelidade de VIVO? Eu só acredito em fidelidade de morto. Pelo menos, quando o sujeito morre, a esposa sabe direitinho onde está o safado do marido e tem certeza que ele está sozinho no caixão. Mas enquanto o marido está vivo, minha senhora, eu não coloco a minha mão no fogo por ninguém. Como é que pode me garantir fidelidade de VIVO?
- Bem, minha senhora, não é esse tipo de fidelidade de casal, entende? É fidelidade de plano de telefonia... Vou lhe explic...
- Eu sei. Fidelidade é não trair, não é? É ficar com um só e pronto! Eu vivo na fidelidade! Só tenho um telefone. Sou mais fiel do que um cachorro.
- Mas minha senhora, como é difícil falar com você e lhe explicar o plano.
- Se tem algum plano, já não é fidelidade; tem alguma coisa tramada já para enganar o outro. É assim mesmo, na moita, no telefone, no zap. Quando a esposa abre os olhos, o marido já foi.
- A senhora é muito confusa! Dá-me paciência, senhor!
- Paciência e fidelidade! Vivo dizendo para a minha filha: - calma, calma, calma! Tenha paciência comigo, porque sou uma senhora idosa. Minha filha Candice vive me dizendo que eu estou muito dispersiva, confusa e até inconveniente com o que eu falo. Ela se preocupa com o que eu digo e diz que eu posso até apanhar na rua, com essa mania minha de falar o que me vem na cabeça e parar para conversar com todo mundo que atravessa o meu caminho; mas o que eu posso fazer, não é? É a idade! Sabe me dizer se o nome da VIVO foi escolhido para obrigar os velhinhos a se levantarem toda hora para atender ao telefone e se manterem vivos? É ginástica? É algum programa, um plano do governo para a terceira idade? Ouvi o presidente falar que podemos viver até os 140 anos... Já imaginou? Que marido vai aguentar ser fiel mais de um século? Não há fidelidade não, minha filha, que dure mais de cem anos...
- A senhora está brincando comigo? Estou falando sério e a senhora vem com brincadeira?
- Não! Não se aborreça comigo; estou falando muito sério; ainda mais quando me promete fidelidade. Não tive fidelidade nem do meu marido e o assunto mexe com os meus sentimentos. Mas já que falou em brincadeira, vamos brincar? Eu falo morto e a senhora se assenta; eu falo vivo e a senhora fica de pé. É assim: - morto! Vivo! Morto! Vivo! Vivo!  Morto! Morto! Vivo!... Ai, já estou ficando cansada desse senta e levanta; Ufa!...
- Bip, bip, bip...
- Que pena, agora que a gente ia brincar, desligou! E ainda promete fidelidade!... Aqui, ó, fidelidade!

Autora: valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Ligações Reconfortantes II


- Alô, com quem falo?
- Com quem deseja falar?
- Com o responsável, ou a responsável pela linha. Ele está?
- Ele não vive mais aqui. Quer deixar recado?
- Aqui é do auxílio funeral! Estamos oferecendo um plano "Golden for ever"! Temos também o plano "Só os diamantes são eternos". Com quem estou falando?
- Com a defunta!
- Quem?
- A morta! Agora eu sou a responsável pela linha telefônica. Do que se trata? Quer falar comigo? Vivo muito só e não tenho com quem falar...
- Bip...Bip... Bip...
- Que pena, desligou!


Autora: Valéria Áureo
In: Cartas da Condessa de Brassica

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Indubitavelmente – o bastante

                                                                      Fonte: Internet
Tudo o que Antonio tinha era a sua dor, desde o dia em que ficou só. Não queria se livrar dela, a sua dor, mesmo que todo o resto estivesse destruído. Em volta de si só havia escombros provocados por um bólide. Ela, a sua dor, era a única que lhe fazia companhia e ocupava todo o ar vazio deixado pela mulher. Ela, enquanto presente, o entorpecia!
Não, não... Havia outras coisas, que poderiam ser muitas, centenas, milhares a lhe fazer companhia como estrelas. Ele tinha uma coleção de palavras, como se fossem estrelas. Entre tantas ele poderia escolher aquelas mais novas, que preenchessem o nada com inspiração etérea; quem sabe escolheria uma palavra diferente a cada dia; precisava descartar: bruno, taciturno, mórbido, sorumbático, pois estas o deixavam acabrunhado e vergado, sem coragem para reagir no luto. Ela, enquanto presente, era a escuridão!
Antonio sempre foi um excelente conciliador das negociações de paz entre o casal, porque era muito apaziguador e inspirava serenidade. Era transparente. Muitas palavras, mas sempre em tom baixo. A mulher sempre tinha sido afeita aos arroubos e arrebatamentos da linguagem. Não usava palavras em profusão, como ele; ela gritava. Chega! Chega! Chega! Gritava ela diante da prolixa alma do marido amante das palavras ternas. Ele falava muito, mas era silêncio. Ela falava pouco e, enquanto presente, era tempestade!
Agora nem esse exercício existia, porque tudo seria um monólogo. Sem as palavras macias e mornas ditas a ela, Antonio sentia-se letárgico. Nenúfares... Sempre gostou dessa palavra. Queria que a mulher fosse um nenúfar dando flores na superfície da água. Ele a ouvia, apesar dos gritos dela e tantas vezes ele disse a ela: calma! Calma! Calma!... Calma minha flor de lótus! Ele só se irritava com a incapacidade dela para tomar partido e atuar, em qualquer circunstância, com sabedoria e vocabulário pacificador! Não sabia se ela era indiferente, ou se, na verdade, era só temperamento. Bom, disse para si, isso é passado. Agora ela, a partir de então, é o silêncio eterno!
Para salvar-se ele precisaria de uma nova coleção de palavras fulgurantes... E que o passado ficasse para trás.
Ele tomou gosto pela sedução de palavras impronunciadas. Buscou uma palavra tão luminosa, reverberante, que não se apagasse, de jeito nenhum. Ele passou a querer mais palavras incandescentes, de neon, claras e quentes. O alcance delas ia além de sua cabeça e o erguiam como guindastes invisíveis, fazendo-o levitar. Ele sentia falta de luz e agora voltava a sorver o ar com sofreguidão. Como era bom respirar fundo, erguendo o peito, enchendo-o de ar. Também podia fitar o céu azul sem interrupções.
Enfim, daria fim ao silêncio, pois o silêncio era ela. Bastaria uma só palavra para desencadear o turbilhão delas levando ao novo mar de ternuras em suas vertentes descomunais.
Trouxe à tona a palavra amor. Uma forma de ter esperança com poucas e com todas as palavras. Amor! Indubitavelmente! Agora que ela se fora com os seus gritos ele estava preparado para as ternuras silenciosas do amor.
Autora: Valéria Áureo
In: Pretextos Para Tomar Vinho

LIGAÇÕES RECONFORTANTES III


                        Ilustração: Internet


- Alô, com quem falo?
- Com quem deseja falar?
- Com o responsável, ou a responsável pela linha. Ele está?
- Sou eu, pode falar. O que deseja?
- Olá, como vai, tudo bem? É um prazer falar com a senhora. Aqui é do Auxílio Funeral. Tudo para o seu conforto!
- Auxílio Funeral, é? Meu conforto? Mas que beleza!...
- Sim, Auxílio Funeral, a seu dispor. A senhora tem um minutinho?
- Bom, eu desejo ter bem mais que minutinhos; desejo ter horas, semanas meses e longos anos de vida ainda.
- A senhora não entendeu. Minutinhos para uma conversa. Aqui é o Auxílio Fun...
- Já estão ajudando a gente a morrer com conforto, é? A senhora quer abreviar o meu tempo de vida?
- Não, minha senhora. Na hora da dor pela morte de um ente querido!... Facilitamos a sua vida.
- Não facilitam a morte não? Não é Auxílio Funeral o nome da clínica?
- Vou explicar com calma. Nós assumimos a dor, o desconforto da perda, entende? Auxiliamos na hora da morte.
- Ah, entendi! É uma clínica de Eutanásia.
- A senhora não entendeu!...
- Entendi sim, morte com auxílio e conforto é coisa de eutanásia. Faz o seguinte: pode me ligar lá pelas vésperas das eleições, no final do ano; conforme for eu vou precisar dos serviços da sua clínica. Por enquanto ainda está dando pra levar, ainda mais depois de ontem, com os 3X0. Tive uma boa melhora; não precisei nem dos meus remédios de pressão, pânico, depressão, ansiedade... Vou anotar aqui o seu telefone. Se eu precisar de Auxílio Funeral eu ligo para você, combinado?
- Mas, senhora, entendeu tudo errado.
- Até logo, passe bem e boa morte, ops, boa sorte.

Autora: Valéria Áureo