Apresentação

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sábado, 22 de fevereiro de 2020

Carnaval


Largue tudo de uma vez, sob os olhares estupefatos à sua volta. Estupor composto de uma cara de louco, de espanto, ou de horror. Você assegurou que faria isso, caso perdesse a aposta. Pois perdeu! Não tenha dúvidas do que a sua decisão vai provocar, mas não se importe tanto assim. O importante é pagar a aposta. Em torno de si, haverá falatório, ou um silencio irrequieto e perigoso para endossar a estupefação geral. Quem diria! ... Vestido de mulher!
Com gestos mais calmos que todo o assombro que vai provocar, dê um largo adeus ao trabalho do dia, ao rigor da rotina, ao peso do mês, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora marcada pelos amigos gozadores. Afinal, aposta é aposta! Os que estiveram em casa ocupados indagarão sobre você e a absurda novidade; e sua performance será propagada aos quatro ventos pelo Instagran, com sussurros de recriminação ou aprovação. Quem diria!
Convém não responder aos olhares interrogativos, com ofensas, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instalará sobre a sua vida. Mas não exagere na medida de sua atuação e suba sem demora ao quarto, libertando-se aí das meias e dos sapatos apertados, tirando a roupa suada do trabalho, como se retirasse a gravidade das coisas do seu escritório. Ponha-se enfim em vestes mínimas, coloridas e rendadas, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido e o nosso), aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Isso é uma brincadeira! Feito uma estrela em ascensão, de rumo incerto, assome depois com a discreta nudez da perna em meia fina, no alto da escada e avance dois passos como se fosse desmoronar em um salto mortal, silenciando de vez, o surto abafado dos comentários e risos. Não seja caricato; seja natural. Aposta é aposta! É carnaval!
Nada de grandes ousadias, que possam ultrapassar o limite dos longuíssimos cílios postiços, as unhas vermelhas, a peruca loura, o vestido longo. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (incrédulos!) dos pobres familiares e dos debochados amigos, que cobrem a boca com a mão, para estancar o grito de repúdio, ou a gargalhada, enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, exalando brilhos de estrasse e lantejoulas; circule pela casa toda como se andasse em um palco e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto das pessoas divertidas. Afinal, comporte-se, você perdeu a aposta.
Largue-se no meio do bloco das drag queens, como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: goze a fantasia de se sentir livre, embalado pelo mundo, não devendo nada para ninguém, nem mesmo a aposta, que agora está paga. Divirta-se, pois é carnaval. Permita-se rir um pouco.

Autora: Valéria Áureo
In Entre Mentes e Corações