Todos imaginavam que Rita Cândida estava no fim, desde que apareceram os
primeiros sintomas do Mal de Alzheimer; ficou alheia ao mundo, costumavam
dizer... Coitada, dá até pena ver. Às vezes fica fora do ar. Antigamente lia
tanto, tocava piano, era tão culta e não parava um instante. Ah! O idioma... como
se orgulhava de falar tão bem o idioma. E como falava bem e como declamava.
Tinha uma memória privilegiada para os poemas. Agora mais essa; deu para ficar
calada, triste, sempre absorta, abandonada na cadeira de balanço. Isso é o que
a família pensava. Realmente, tinha seus momentos de isolamento sim, mas...
Que pouco enxergava,
isso lá é verdade, mas nada que óculos não pudessem resolver. No entanto não
tinha ficado surda como acreditavam... Ouvia e ouvia muito bem; pra seu
governo, dizia... Nem surda, nem caduca e muito menos burra; só um pouco mais
lenta, um pouco esquecida e desanimada. Arrastava seus noventa e três anos com
paciência e sobriedade e até delicadeza, porque não adiantava se revoltar
contra a vida e nem mais correr. Cansada, sim... Não era pra menos; tinha
atravessado o século, mas com as próprias pernas, dizia orgulhosa. Não se
servia nem mesmo de bengala. De uns tempos para cá começou a se perguntar:- para
onde foi o futuro? Sim, repetia, andando sozinha pela casa:- o futuro, onde
está?
Ninguém tinha muita paciência para explicar. Talvez o neto mais novo,
mais chegado a ela pudesse esclarecer.
- Vó, gritava o menino, o futuro já chegou. Antigamente
era o passado e hoje é o seu futuro e o meu presente. Não vê na televisão?
Realidade aumentada e inteligência artificial, 4G, facebook, redes sociais,
câmeras por todo lado, como se a vida fosse um grande Big Brother? Pois é, vó,
o futuro já chegou... É tudo muito diferente do seu tempo. Lembra-se no seu
tempo como era? Pois então, tudo mudou. Agora é muita informação em poucos
segundos, todos conectados com o mundo inteiro. O fato “ vai estar acontecendo” lá na Austrália e em pouco tempo a notícia “ vai estar se espalhando” como um vírus. O celular “vai estar mostrando”
onde eu estou agora. Veja só, que legal! “Vou
estar arrastando” o ícone aqui no Google Earth, para a senhora ver. Está vendo? Isto é o futuro. Já imaginou os carros?
A senhora nem imagina, vó... Em muito pouco tempo os donos de veículos em vez
de guiar, “vão estar sendo guiados”,
enquanto “vão estar vendo”
televisão, “vão estar falando” ao
telefone… Esses carros “vão estar
sendo orientados” pelo GPS e pelas placas de trânsito, para reduzir a
velocidade e pelos sinais luminosos, para estacionar. O carro do futuro “vai
estar sendo conectado” a uma espécie de internet das estradas. Vai ser tão
inteligente que “vai estar conversando”
com os outros veículos para decidir quando e por onde “vão estar ultrapassando”,
diminuindo o número de acidentes nas estradas. Sem contar, vó, que os carros
têm a capacidade de estacionar sozinhos. Não “vão estar precisando” nem de motorista. Viu aquele carro que
derrubou a Ana Maria Braga? Acho que era dirigido por comando mental... A vó
olhava em silêncio...
Coitada da vovó... Parou no tempo, concluiu o
menino, já desanimado... E o neto saiu sem paciência, acreditando que a avó não
compreendia nada do que ele falava. A vó “tá” longe, no passado. Mas a vó ainda
insistia nas suas elucubrações solitariamente: - onde está o futuro? O
futuro... O futuro, meu Deus?... O futuro do presente do indicativo dos verbos:
eu amarei, eu andarei, eu viajarei, eu escreverei, eu sorrirei, eu agradecerei,
eu acreditarei... Por que todos falam: eu vou estar escrevendo, eu vou estar
fazendo, eu vou estar lendo, eu vou estar comendo? Afinal, onde está o bendito
futuro do presente do indicativo?... E depois dizem que eu estou ficando gagá e que vivo no
passado. Quero saber é do futuro! O que aconteceu com o futuro?.... Qual, meu
Deus do céu. E ainda acham que eu sou surda, coitados!
Valéria Áureo
23/04/2013
Publicado em O Imparcial
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