Ana
estava decidida a vingar-se do marido.
Por tudo. Pela solidão, pela beleza que tinha ido embora, pela tristeza
de ter vivido tão solitariamente naquela cidade. Ela ansiava viver, seguindo o
ritmo do coração. Realizar os sonhos que atormentavam sua cabeça. Queria mais.
Sempre quisera mais. Ele nunca percebera o seu tanto querer. Queria
incriminá-lo, desvencilhar-se dele complicando o resto de sua existência.
Morreria, porque era inevitável morrer. Todos morrem um dia. Ela anteciparia a
morte, só para ele perceber que ela estivera viva todos esses anos. Ele a
fizera morrer. Na verdade sempre se sentira meio morta, desejando a vida. Ele,
ocupado demais, acreditava fazê-la feliz.
Ana
pensou em um jeito de morrer. Jogar-se do alto da Avenida Paulista não lhe
faria justiça. Perderia num segundo a sua beleza, a leveza do rosto, a
delicadeza dos movimentos, esmagada por carros velozes. E, nos jornais, seria
uma notícia minúscula, no meio de tantas manchetes. As pessoas passariam
indiferentes, apressadas, diante do corpo inerte, coberto por plástico e só.
Ela
queria mais, bem mais. Deixaria uma carta, de um possível amante, manchada de
vinho, só para o marido sofrer, imaginando sua vida plena, embora ela só
tivesse em torno de si um vazio. Ana queria incriminá-lo e numa última carícia,
tocava as costas de seu amor, arranhando-lhe a pele, para que sob suas unhas
restasse uma gota de sangue. Um último poema de amor, tecido fragilmente entre
seus sussurros e sua solidão. O toque dos lábios dele, as lágrimas dela, os
sonhos dos dois. O marido acreditou que ela estava feliz e abraçou-a com
ternura, porque sempre a amou, e voltava todos os dias para ela. Depois saiu,
engolido pela cidade, deixando-a só, querendo a vida.
Ana
guardava uma gota de sangue, para que o legista encontrasse os vestígios do
criminoso. Faria tudo para que não tivessem dúvidas: o marido é o assassino. Da
janela podia ver a rua, os carros com seus faróis acesos, no final da tarde.
Sentindo-se cada vez mais aprisionada, riscava com a ponta dos dedos um último
poema na vidraça embaçada da janela, traçando uma sentença de morte. As
partículas de sangue coagulado serviam de tinta para o poema da libertação.
Aprisionada na arquitetura feminina, sempre ansiava habitar um corpo de
aventuras. Fazer-se outra... Viajar sozinha e, no caminho, desviar-se no
aeroporto, e nem ouvir a última chamada para o avião. Perder-se no saguão.
Fugir... E então perder toda a bagagem, e perder-se entre desconhecidos e
decidir mudar o rumo da própria vida. Só por prazer. Sem lágrimas. Essa
autonomia assustava Ana. As saias nada lhe conferiam. Só a fragilidade e o
sorriso fugidio. Se assim não fosse ela poderia, cercada de amigos, sair, beber
à noite, vasculhar o proibido, provar o que não prova, disfarçando a solidão.
Ter histórias, cicatrizes, nódoas, mágoas de amantes, lenços e saudades.
Mas
Ana repete-se na repetição de sua mãe, refazendo diariamente a alma na costura
de meninas, desejando o jeito masculino de querer. Ana queria muitos países;
outras pessoas, distantes línguas. Queria a multidão da metrópole. Ao menos São
Paulo, se o mundo fosse impossível. Queria romper com o dia, deleitar-se na
noite, andar sozinha pelas ruas da cidade, buscando viadutos. Queria muitas
histórias, acontecendo com ela. Queria ficar no bar, fumar, tossir, se
embebedar, só para sentir-se livre e viva...
Ana
tinha seguido a vida. Todos os dias eram iguais, no previsto e inevitável
desempenho de primeiro ter o sol e ao fim da vida a lua. Ana sofria. Ela sabia
que existe o mundo... Ao menos São Paulo. Sabia que precisava romper a proposta
da casa, de levantar-se, de arrumar, de cozinhar e pôr a mesa, de repetir-se a
mãe, a avó na filha. Assim, restava-lhe a poesia, em uma gota de sangue, sob
suas unhas, descrita no diário ou no vespertino, à luz do sol, às claras, no
brilho do talher, no tempero, na fruta dura. Ana e o bordado, o fio de lã, a
costura, o assoalho, as meias de pares dispersados, a alvura da toalha, o móvel
encerado. Lá fora a cidade espreitava a
indecisão de Ana pelas ruas, arranha-céus ou pelo rio. Talvez se afogar no
Tietê, porque ele também morria. Sim, afogar-se, só para ser levada livremente
para onde ele bem quisesse. Mas Ana queria a cidade, queria o rio, queria
vingar-se.
Assim,
restava para Ana a poesia pura. Escrita com uma gota de sangue. Refletida no
cristal do lustre, repartida na janela, na íris, na cabeça, na divisão da hora,
no meio do asfalto. Ela sabia, o mundo existe aqui dentro. Ela sabia, existe o
mundo lá fora e decidiu partir, levando consigo uma gota de sangue como um
poema. Sob as unhas, a última lembrança. A do amor que não deu certo. Nos pés
as antigas águas do Tietê correriam com ela pela cidade, para se libertarem.
Ana decidiu navegar...
E não mais morrer. Navegar nas águas dos seus olhos, afogados no encantamento.
Livres. Navegar no rio que se reflete n’água, espelhando nostálgico desejo de
querer ser parte dele, afluente seu, seu leito, sua foz, seu nascedouro, para
se proteger... Tietê que liberta Ana e que aprisiona Ana. Ela e seu corpo
compõem a margem, refazendo com a pele branca a ordem natural das coisas
depositadas no seu leito, composição e decomposição de seus extremos e de seus
limites, longas pernas e moldura do rio.
Ana,
inconstante, se esqueceu de morrer, perdida na superfície da água escura. Quis
sorrir para clarear as águas. Perdeu-se no seu céu, repartindo-se por toda São
Paulo, como se seus dedos longos e finos, fossem afluentes do amor, enquanto
via nuvens entre intervalos dos edifícios. Ana repetiu-se na sua trajetória,
apaixonada pela cidade, sob a dor de seu cristal partido, do seu peixe
aprisionado e seu anzol. Ana vergou-se sob o peso das lágrimas comprometidas
com outras águas da terra, ameaçadas, esperando os carros passarem; ela parada
no semáforo. Sozinha, lembrando o amor que não deu certo, o Tietê corre, porque
dentro de Ana também correm lágrimas.
Ela trouxe
o rio no coração, para não ter que se matar. Trouxe o Tietê, no seu último
canto, no seu testamento poético, meditando sobre a própria existência,
indagando sobre a aspereza e a indiferença do mundo, diante da morte dos dois,
querendo saber se haveria vida melhor, prenunciando seu último mergulho. Parece
que de seu rio recebeu o alento do último canto. Ana, sozinha, queria o
primeiro canto, construir-se ribeirinha, nascida para o poema e suas águas. Ela
queria afogar-se só em palavras, para dizer: amo-te São Paulo. Meu rio, nós somos
iguais...
Ana,
sozinha, quis sobreviver da profundeza de sua solidão. Quis da cidade o
primeiro sonho sem acordar, o primeiro mergulho sem afogar-se, o primeiro amor
sem se perder. Ana e o primeiro corpo nu, o primeiro coração parado. Ana, sozinha,
quis do rio o primeiro coração batendo forte, a primeira arritmia, a primeira
distância percorrida, a primeira volta para casa.
Resoluta Ana saiu pela cidade, tentando explicar-se,
tentando recolher-se num copo de águas cristalinas. Aquelas do Tietê. Para não morrer, para não ter que se matar e
incriminar o marido pela solidão repartida. Ana libertou-se, aprisionou-se no
rio, em papéis, em letras, para preservar águas e fluxo, correnteza e
corredeira, redemoinho e movimento, debilitada no seu limo, seu seixo perdido,
enquanto escrevia um poema com gota de sangue, do último encontro com o seu
amor.
Ana
carregou lágrimas, recolhidas na calçada, enquanto via os outdoors. Carregou mágoas como o rio carrega águas que
foram puras, mas decidiu viver, trazendo nas unhas um poema de sangue e a
esperança de ser feliz e os seus cabelos são ondas que invadem o oceano.
Onde ela pode desaguar-se, se é distante o oceano,
senão em outro rio?
Ana
navegou no Tietê de São Paulo e sorriu. E o rio clareou.
Autora: Valéria Áureo
Prêmio 450 Anos de São Paulo - Coletânea de textos premiados.