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quinta-feira, 23 de maio de 2019

Arquivos e Dispositivos


 Quando meus filhos me ofereceram um celular novo, foi a pretexto de eu ficar mais conectada com o mundo, e para que eu saísse do marasmo. Para me convencer, disseram-me que se se tratava de um aparelho que prometia milagres e tornaria a minha vida mais divertida. Eu, que sou boa de rezas, conversas e prodígios, aceitei na hora a ideia de andar conectada com um apêndice poderoso, que se encarregaria de todas as minhas preocupações. Eles diziam que a tal geringonça iria compensar a minha perda de memória, fato que os deixava bem inquietos e eu poderia recarregar a minha bateria de energias. Eu ficaria mais segura, disseram. Argumentei: se é para o meu bem, pensei, que mal tem? Aceitei!

         Eu tentei viver muito bem e em harmonia com um desses milagrosos aparelhos de última geração, colado ao meu corpo. Era um luminoso multimídia e tão diferente dos velhos e ultrapassados telefones, que eu me encantei. E eu esperava tudo dele e nada menos do que tudo mesmo. Eu o carregava de energia (e chamegos e boas vibrações, como passes de mágica) e o deixava dormir ao lado de meu travesseiro. Cor-de-rosa prateado, uma graça! Ali ele me embalava com vídeos de barulho de chuva, para estimular o meu sono e me fazia companhia. Mais perfeito? Eu queria! Que me despertasse com uma sinfonia clássica. Eu pretendia mais... Que ele fizesse café e torrasse pãozinho pela manhã, além de me acordar com um beijo na testa, depois de um emoji risonho. Narcísico, o aparelho assumiu autonomia e adorava fazer selfies; indiscreto, me acompanhava até mesmo no banheiro e se conectava a outros dispositivos em infiel Bluetooth. Não podia ver um espelho, que disparava um flash. Tocava música, me cumprimentava com um sonoro bom-dia e me enchia de mensagens otimistas e de autoajuda. Ele abria a minha agenda e me traçava a rota do dia. Falava em religião, e prometia milagres em correntes e mais correntes. Ele contava piadas, divulgava os encontros e programas de família, buscava os amigos distantes e reunia todos em conversas. Dava-me aula de inglês, francês, italiano e até latim. Aliás, qualquer idioma, até mesmo o mandarim, além de discutir política e me atualizar com todos os noticiários. Ele me avisava a hora dos remédios, a chuva, a temperatura, as condições do trânsito, a tempestade de areia em Dubai, quem casou e quem descasou. O celular me avisava quantos passos eu tinha dado no dia e me elogiava como ninguém enaltecendo a regularidade de meus batimentos cardíacos. Organizava as fotos de família, fazia álbuns, vídeos e divulgava eventos. Contava fofocas de celebridades e resumia novelas, marcava e desmarcava encontros e dizia quem traía e quem era traído.

          O celular tomou conta de mim, a tal ponto que eu parei de me preocupar com tudo que dizia respeito a mim mesma. Não anotava mais nada. Larguei tudo por conta dele. Descartei lápis, caneta, papel. Não me ocupava com mais nada. Esqueci-me de datas, nomes, pessoas, lugares, fatos. Bastava um clique e o mundo descortinava-se na tela luminosa e me oferecia todas as respostas. Tudo agora era por conta dele, transmutado na minha memória artificial e meu íntimo amigo. Um leve toque, um dedo arrastado na tela e a minha vida estava lá. Era um perfeito assessor de imprensa, um personal stylist, um fisioterapeuta a me indicar a postura na cadeira, um cardiologista a medir a minha pressão e a contar os meus batimentos. Era conselheiro, psicanalista, orientador. Minha vida, meus passos, meus gostos, meus risos, meus segredos, tudo ficou aprisionado no celular, ou melhor, nas nuvens. Se eu quisesse saber alguma coisa de mim teria que consultar o celular. Assim eu passei a viver nas nuvens!

          Um dia, sem qualquer aviso respeitoso para o meu espírito, recebi a seguinte sentença: desculpe! Este arquivo não existe em seu dispositivo! Tentei entender aquela mensagem trágica, que me deixou sem rumo e destruiu o meu mundo perfeitinho. Tive que desligar e reconectar. Nova mensagem: não é possível baixar os arquivos, pois não há espaço suficiente na sua memória interna. Por favor, remova-os da memória de seu telefone e tente novamente. Fiquei desesperada. Em vão! O aparelho não suportou a carga da vida real e sucumbiu.

          O melhor que consegui foi rir de meus filhos, tão preocupados comigo, ao constatar que a máquina também tinha perdido a memória. Confortei-me em saber que todos nós, homens ou máquinas, temos o nosso prazo de validade. Estou pronta para me reprogramar. Voltei ao lápis e papel.



Autora Valéria Áureo

In Docilidade de Sobreviventes

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Abrigo


                        

Ilustração: Internet


          
A menina não se lembrava de muitos eventos da infância. Entretanto, o que marcara sua alma foi a simplicidade de um presente. Ela havia ganhado de sua mãe uma bolsinha cor-de-rosa, com alças de fita de seda. Na mesma hora o objeto delicado se transformou em um cofre, cheio de preciosidades; um broquel de aço, embora fosse feito de cetim, que passou a ficar grudado em sua pele. Tinha o cheiro, a maciez das mãos da mãe. A bolsinha era um ninho tenro do lado de fora do corpo da menina. Dentro havia complementos para seu exterior: escova de cabelos, batom incolor, pó de arroz, rouge, esmalte e lencinhos de papel. Coisas de menina pequena. Havia ainda uma surpresa: na bolsa se escondia o coração da criança: muitas emoções misturadas, um espírito brilhante, esperanças embrulhadas em papel de balas de hortelã. E as duas, menina e bolsinha, não mais se separaram.

Ali dentro, quando a menina saía, podia levar consigo pertences que a faziam se sentir segura. Levava chaves, muitas delas, que colecionava como medida de precaução. Assim, afastava de si a possibilidade de perder-se ou ficar do lado de fora da casa. Se fosse o caso, então, de alguém conseguir desgrudá-la das saias da mãe e levá-la para passear longe de casa, colocava seu ninho no colo e o abria de tempos em tempos, para se assegurar de que estava ali tudo o que lhe era essencial. Bastava abrir a bolsinha e lá de dentro podia ouvir a voz de seu interior, mandando-a se acalmar. Ela via as suas coisinhas, as chaves de gavetas e portas, a maquiagem e os lencinhos. O papel prateado de bala de hortelã refrescava-lhe o hálito e uma luz intensa, esverdeada, irradiava de dentro, chamando sua calma de volta. Ventos de hortelã eram calmantes e diluíam o amargor do medo.

Ainda hoje ela carrega nas bolsas da maturidade, os suprimentos de primeira necessidade, além do terço, ao qual dava destaque primordial nesse farnel de apoio do corpo e do espírito. Tudo naquela bolsa tinha o poder de fazê-la acreditar que sobreviveria se fosse pega no caminho por uma situação de emergência. Mas aquele sentimento de proteção eterna nunca mais foi igual, como no tempo em que viveu sua mãe.






Autora Valéria Áureo

In: Docilidade de Sobreviventes


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O Jogo


                                          Ilustração:  Internet
Por que ele olha assim, desse jeito direto e quente? A quadra, a rede, a raquete cabiam dentro dos olhos espertos. Por que ele olha assim? Assim ela pensava, enquanto ajeitava o saiote e os cabelos amarrados por uma fita. Sentia-se observada de forma especial. Ela podia jurar que pressentia o hálito de clorofila na nuca durante a partida. Nunca se enganava. Ela imaginava que a aula de tênis faria o instrutor notá-la de maneira única. A bola era rebatida sem direção, da mesma forma que os seus pensamentos e seus olhos não tinham rumo. Os competidores novatos desconheciam os recursos que estavam disponíveis na quadra. O sucesso, a falha, o fracasso faziam parte do jogo. O propósito era dar o melhor de si, naquela saia plissada, branca, curta. Ela se exibia e a equipe não dava espaço na rede. Todos se divertiam na dinâmica tarefa de atacar e defender. Apenas ela não compreendia as regras da busca destemida por Roland Garros, porque só lhe bastava a íntima proximidade com o corpo do instrutor. Ela sabia tudo de ataque; na sua cabeça o jogo já estava ganho.


Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes