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segunda-feira, 6 de março de 2017

Diálogos Poéticos ( Ele em si... Ela em ti)




Minha querida Condessa Du Brassica,



Eu ainda não li a poesia que me mandou. Na verdade  tenho que lhe dizer que não sou  muito amigo delas. Por muitas vezes eu as acho incompreensíveis, sem nexo; por mais que eu me esforce. Elas me fazem lembrar o meu tempo de estudante; qualquer coisa bem confusa das aulas de literatura, ou qualquer coisa que eu não pudesse compreender nos meus dezessete anos. Compreender o que é sem pé nem cabeça? Meu corpo pedia esforços físicos e poesias naquela época eram para as mocinhas. Onde encaixar poetas naquele tempo em que estive tão ocupado entre  treinos de natação, luta, corridas de moto, equitação, passeios de veleiros e mergulhos no mar? Agora tenho  mais tempo e liberdade, mas... Eu ainda nem li a mensagem. Desculpe-me, talvez nem leia! Era um poema? Parecia-me. Houve um acidente. Rasguei um pedaço da carta ao abrir o envelope; usei um punhal de meu querido pai, que continua muito afiado e que cortou-me a palma da mão. Pois tratei de deixar o poema para bem depois e o coloquei de lado, para cuidar do ferimento. Quem sabe, depois... Nunca, se não fosse muito indelicado dizer. Nunca! Poesia é para moças. Mas está aqui guardada, na pasta, em minha escrivaninha, entre tantas correspondências que trocamos. Ao abrir a carta o delicado papel de seda rasgou-se  e lá se foi a imagem do poeta impressa bem no alto da folha, com gotículas de meu sangue. Também umas linhas foram " decapitadas". Creio que um ou dois versos apenas; perdoe-me. Como já lhe disse, minha cara senhora, tentei tantas vezes escrever poesias, na ilusão do primeiro amor, mas nunca consegui terminar uma sequer. Não sei se por acaso, ou mesmo por enorme afeição, gosto da maioria das que você escreve e quando elogio, é pura sinceridade. Será que eu misturo o sentimento pela poetisa àquilo que ela escreve?

Eu não sei se a decepciono, mas não me agradam as poesias; menos ainda as que eu não entendo. Esse poeta em especial é muito misterioso, pois se diz suportando o peso do mundo. E quem não suporta o peso do mundo? Era esse o título, não era? Sinto tê-lo cortado do meu caminho a um só golpe e tê-lo guardado na gaveta, faltando dois ou três versos e a cabeça separada do tronco do pobre autor... O poema está arquivado e pronto. Não está inteiro, mas está aqui. Assim, nada poderei dizer da poesia que eu não li e  provavelmente não lerei. Devo ser justo: o mal de não entender poesias está em mim e não em quem as escreve. No caso deste aqui, em particular, todos o amam e especialmente você. Acho que a minha antipatia vem desse seu amor exagerado por ele. Agora me lembrei... Devo confessar uma diabrura da juventude. Quando eu passava de bicicleta por ele no calçadão da praia de Copacabana, lhe fazia umas divertidas caretas. Por certo eu estava protegido pela falta de óculos do poeta e por minha falta de juízo. Era por brincadeira, apenas. Um pouco de irreverência. Na verdade eu via que todos o reverenciavam. Eu os contrariava; coisas de menino. Mas, volto a lhe dizer: não posso entender o que é a imaginação, muito menos na cabeça alheia... Será que lhe cortei a cabeça para ver o que havia dentro? Seria mesmo engraçado. Sei que muito do meu desagrado é fruto de meus ciúmes.

Do seu fiel amigo


Conde Du Marrot




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Meu querido Conde Du Marrot, 


Eu não sei como agiste... Se à maneira barulhenta do Barbeiro de Sevilha, ou se  no silêncio do malandro de subúrbio carioca em esquina da madrugada, usando uma navalha ou estilete. Certo é que em uma só cartada acabaste com a fantasia longeva da ilusão, do fantasioso, do onírico, do simbolismo de cabeça branca... Pobre poeta que tanto adoro e hoje dormita inteiro e petrificado no calçadão e acéfalo em tua escrivaninha! É... Sem tirar o chapéu, ou a camisa de cambraia, deste-lhe um só golpe... Um apenas, mas certeiro e definitivo golpe capaz de lhe cortar alguns versos. Cortaste ainda a cabeça do notável poeta com a tua imperícia e avidez. Bela arte a tua, a de arrancares os últimos pelos, fio por fio, bem lentamente da calva quase já totalmente exposta, para lhe expor a imaginação a ti tão incompreensível. Deixou-me sim, no fio da navalha, perplexa. Será que expondo o cérebro do artista tu  farias brotar a imaginação do poeta e assim poderias compreendê-lo? Qual! Tão violento como se fora em um golpe de Estado tu agiste, meu rapaz! Com tamanha destreza ou artimanha, acabarás tomando mesmo o poder à poesia e dando-o à razão, usurpando-o da imaginação. Agindo assim estabelecerás que a razão se sobreponha à minha imaginação; seja à navalha, seja a fuzil, vai ao chão a fantasia de criar sonhos e histórias. Enfim, tu me deste qualquer resposta ao poema de Drummond sem sequer o ler. Eis que tu te comprometes, irremediavelmente, a infiltrar em meu coração a razão pura e simples, onde a palavra só é o que é; tudo em verdadeiros golpes, guerrilhas urbanas, marchas noturnas em um imenso campo minado, invasões subterrâneas e espreitas noturnas, sem um toque sequer de poesia. És um conspirador? Depões os inimigos imagináveis e imaginários com a mesma desenvoltura de menino desenhando aviões e navios, na pueril inocência de consertar o mundo fazendo guerras, sem poesia? Pois ignoras o velho míope e cabeçudo, quase que com prazer. Desprezas o inocente. Ora, tu continuas então, atrevido, a fazer-lhe caretas de descaso... Ah! Se soubesses o quanto amo o velhote, terias cuidados a ele, só por mim, só por me agradar. Ficarias ao lado dele no Posto Seis, só para protegê-lo, para mim, com toda tua estatura e conhecimento naval, contra a ardilosa malícia dos salteadores, dos vândalos e larápios de óculos da amada escultura, comerciantes vis de bronze... Também o protegerias dos degoladores, por certo.


De sua saudosa amiga


Condessa Du Brassica


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Minha querida Condessa Du Brassica,



Depois de sua mensagem com uma “suave” advertência, então movido pelo remorso, eu me comprometo a tentar ler, reler e por via das dúvidas, tornar a ler  mais uma vez, só pra não dizer, simplesmente, gostei dessa poesia do velhote de óculos e cabeça grande. Ou quem sabe e até mais provável, sem dar muitas explicações, confessar simplesmente como é ingrato esse mundo da arte. Nele vale qualquer jogo, até de palavras, ainda que muitas das vezes, vãs, mas só se forem ditas por um artista sempre amado e consagrado, deitado na relva e abraçado por todas as mulheres. Não, não há lugar para principiantes como eu. Como eles seduzem eu não sei! Já começam maduros, experientes, sábios e mágicos feiticeiros de palavras. Nascem prontos. Que ninguém se atreva a falar isso ou aquilo que seja de um deles, e todas elas, as sonhadoras, já se doem. Sei que nos falta mesmo é coragem de tentar compreender a perfeita combinação de autor e obra e seus mistérios... Eles são os reis de ouros e sou mais um vassalo de paus, entre tantos outros. O jogo mais uma vez está na mesa, manejado com habilidade e destreza e logo sai o primeiro "não quero carta", displicente. Pra mim chega! Não pago pra ver, é blefe, tenho certeza de que não há jogo possível para mim; não com um poeta que todas amam e que eu não compreendo. Não sou de poesias, não insista! Isto seria um duelo perdido por mim. Ainda estou em dúvidas se lerei e digo-lhe mais:  estou muito ocupado em fazer o meu jardim.


Do seu eterno amigo


Conde H. Du Marrot


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Caro senhor Conde H. Du Marrot,



Depões a palavra do poeta, jogas no arquivo morto, como a um inimigo abatido, tombado no forte. Fica esquecida a poesia em mensagem ignorada, meu rapaz? Quanta distração!... Mas hás de pensar assim mesmo, que também os teus ombros suportam o peso da vida; o poeta assim o diz de si mesmo. Ele, de carne e osso e seus ombros suportam o mundo, como todos nós. O velho burocrata é real e apaixonado pela amante da vida inteira; tem a sua poesia, a sua casa, a sua cama, a alcova e o seu segredo... E que da esposa não se fala em livro algum, ou pouco se fala. Contudo à amante dedica seus impublicáveis poemas eróticos, (impublicáveis enquanto vivo). Também ele perdeu a cabeça por outra mulher. Assim como agora, quando a degolas implacavelmente. O velho de cabeçorra, de desejos e de segredos sensuais, quem diria? Era humano e bem humano, como todos nós, dentro e fora dos livros; ardia de amor na vida e na imaginação... O amor não tem mesmo idade e não mede consequências!


Sei, eu te entendo; tu não és um homem de palavras; tu és homem de ação e solução. Ao poeta cabe sempre lançar dúvidas, desvendar equívocos. Melhor que te mates de trabalho braçal, que assim aplacas teus anseios longe das palavras. Que vás ao mar, aos mergulhos e às árduas batalhas do quotidiano, assim como faz o poeta e todo homem comum. Então... Avante, comandante, em terra ou no mar, a combater escudado com armas que não são palavras. Trabalha equipado de ganchos, estruturas metálicas, andaimes e luminárias para teu jardim. Não é  com o teu jardim que te ocupas tanto? Pois então!... Mas não te esqueças do mais importante para teu recanto: não te esqueças das flores. E deverás plantá-las com a sutileza de um poeta quando escreve, ou quando vive um amor escondido. Por enquanto o suor goteja de tua fronte, te esforças e te empenhas em arquitetura e argamassa, como um escravo, pois tombaste silente ao meu pedido de sonhos. E nos sonhos, não és o escravo que ergue as colunas do palácio, és o rei que descansa no  trono. Impertinente. Tens dúvidas em conhecer o poema... Ora, tu te dedicas inteiro, teu corpo e tua alma, mais ao conflito do dia-a-dia e ao prazer de construção de grades, canteiros e jardim, do que a um pequeno devaneio. E o fazes com mais empenho e arte, que ao poema que te propus... Poesia. A poesia de teu jardim são as flores. Tola, esqueço-me do quanto conheces das estratégias de lançar mísseis nas profundas águas do oceano. As palavras não te fazem tanta falta e nem te convencem. És submarino imerso e camuflado em vigília. Quieto, escondido, mudo, espreitas e aguardas o ataque. Que arte esta, tu tens de minar aos poucos a alma despreparada para qualquer combate? Luta verdadeiramente injusta! Ao teu alcance todo um arsenal, toda a estratégia e a argúcia de um combatente experiente. O teu adversário é indefeso ante tua estatura, é incauto ante tua precaução, é despreparado ante tua argúcia e só tem palavras, devaneios e ilusão. Ao mar! Jogo-me nesse embate na mais completa escuridão, sem saber sequer nadar...


De sua saudosa amiga,


Condessa Du Brassica.



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Minha querida Condessa, 


Sei que ama Drummond, muito acima das minhas humildes possibilidades e bem fora do meu reduzido universo de entendimento lírico. Morro de ciúmes. Esta é a verdade. Morro! Está bem, fui vencido! Estou derrotado! Enfim... Foi ouvindo o seu conselho com muita calma, sem preconceito, que li e reli tantas vezes o seu poeta velhote que me curvei diante de “os ombros suportam o mundo”. Eu cheguei a achar defeitos, só para me justificar e depois, bem mais calmo nessa aflição dos sentidos e na árdua missão de compreender o incompreensível, como num passe de mágica, a luz se fez em minha pobre mente. Talvez resquício coruscante do tal relâmpago cifrado que por mim, finalmente decifrado, me fez mudar de opinião. Não é que eu gostei? Sim, posso afirmar que gostei! Rendo-me, portanto, aos seus apelos e à inegável sabedoria e camuflada arte do poeta. E mais... Sabendo que ficará muito feliz, eu juntei a cabeça ao tronco do retrato no leve papel de seda. Pronto, cá está o homem inteiro. Inteiro no papel e na vida. Inteiro na vida e nas paixões. Inteiro e frágil  como todo homem, capaz de perder a cabeça por uma paixão. Inteiro de corpo e alma. Nem se nota a emenda que fiz. Também os versos que faltavam eu pude salvar... O que não consegui mesmo foi apagar os meus ciúmes e nem as manchas de meu sangue.


Do seu eterno,

Conde H. Du Marrot




Sob o ponto de vista




                                                                                   Ilustração: Internet

         A vida tem fragmentos de coisas comuns, como poeiras que repousam sobre um móvel. Aqui e em qualquer outro lugar, tudo parece igual. Imóvel parece que está  o solitário homem na sala... Sentado está o velho diante da televisão. Ora... Tudo é sempre possível quando nos lembramos de sonhar, ou se apenas respiramos. E, por ironia, parece que nos lembramos de sonhar, quando não mais dispomos de tempo, ou  temos poucas chances de viver com prazer.

         Há os que nunca imaginam outras possibilidades, senão a de continuarem sentados na cadeira da sala, respirando...

         O velho, sempre sozinho na sala, se desinteressa do que vê na televisão. Onde estão os irmãos, os filhos, a esposa, os netos? Chama por alguém e ninguém responde. Procura no bolso a bula do  remédio para hipertensão, e do spray para falta de ar; lê com seus óculos bifocais que escorregam na deselegante e enrugada curva do nariz. As letras minúsculas no papel escondem incontáveis males; afinal, tantos nomes difíceis, tantos efeitos colaterais. Melhor seria não ler... Se não sabe, não sofre.
    ...Advertências peremptórias: não tome remédios sem o conhecimento do seu médico! Ele deve se perguntar: - quem está aqui para me vigiar? Como se isto fizesse muita diferença, ou alguém se importasse. Farmacocinética... Ética... Cinema e ética. Farmácia? Que coisa mais esquisita... Parece complexo, mas essa palavra recorda-lhe o movimento do cinema... Nouvelle Vague. La Jeunesse, Bardot... A tela da TV projeta o filme “Parente é Serpente”, do cineasta italiano Mario Monicelli. O velho se pergunta, num lampejo de lucidez:-  Por que o cineasta de tantas comédias desistiu de viver?... Será que não achava mais graça na vida? Quando  foi que parou de rir dela? É, perdeu a graça de questa vita maledetta! Vita maledetta!... Não, melhor não querer saber, por que motivo ele se jogou da janela de um hospital na Itália, aos 95 anos. Melhor não pensar nisto! Teve suas razões, o poverello... Quem sabe foi culpa de algum parente serpente, ironiza, pensando em si mesmo...  Prudente é deixar o coração tocar por si, no ritmo que melhor encontrar e seja lá o que Deus quiser. Escrita sombria ou brilhante em papel fosco, ou um pensamento que evoca Inglaterra e afasta a França de Bardot e Belmondo, a Itália de Monicelli, não se sabe a razão, enquanto olha perdido, palavras mínimas na bula, que indicam sintomas indecifráveis... Apoplexia... À mente lhe vem cinema, Apolo, apologia, geografia! Dislexia, dislexia! Dislexia!... É isto! Inglaterra! - Nunca estive lá... Corticosteroide, mas que diabos será isto? Corticoides, asteroides cortam o universo. É um bom verso. Devia olhar mais para o céu... Um corpo celeste? Um satélite? Pode cair em qualquer lugar. Quando morrer, quero ir para o céu... Melhor tomar o remédio de uma vez, porque há uma confusão mental a ponto de explodir as têmporas. Esta falta de ar não combinaria com Londres...

          Uma investigação envolvente de um lugar desconhecido, da mesma forma que não conhece o campo minado da mente e da alma, que nunca sabe onde pisa, ( pois é, posso visitar a Torre de Pizza) desce com o comprimido pela garganta. Um gole d'água, dois, três, quatro. Uma bula de remédio nas mãos... Anúncio de muitas impossibilidades de viagens futuras, porque, se tivesse dinheiro, iria sim para a Inglaterra, ou Itália... Ou seria França?... Mas agora, cardíaco, com falta de ar, abandonado pelos parentes, tudo ficava mais difícil. Azar, azia! Viajar de avião? Não teria mais tempo. Por que não pensei nisto antes, quando era jovem? O que tinha feito com todos os dias, a saúde  e o dinheiro? Dinheiro tinha até como arranjar, se o sonho de conhecer Londres e a rainha da Inglaterra o seduzisse continuamente e não tardiamente. Mas, saúde?... Não tinha como resolver. Ou tinha? Matar-se aos 95 anos, quem diria? Pobre Monicelli de sua Itália. Mas eu queria Inglaterra... França não! Uma Inglaterra é tão envolvente e humana, quanto  a convincente sensualidade de Copacabana cheia de corpos suados e seminus. É uma investigação coordenada pelo preço da ambição e o desejo de tudo conhecer. Preço da passagem pode até ser parcelado em suaves prestações, mas sonho não! Sonho é para ser inteiro. Hoje já não poderia mais pensar em arrumar a bagagem e pegar um avião. Cardíaco! Foi o que  sentenciou o médico implacavelmente, sem ao menos olhar para meus olhos. Cardíaco! Aquele safado! Velhaco! Só queria o meu dinheiro. Aliás, há muito não me olhavam de frente e muito menos nos olhos.

         Humanos, como qualquer um de nós, sábios, loucos, líricos, desiludidos vagam pela noite, ou permanecem imóveis diante da  televisão. Todos com sentença  de dias contados. Os estudantes, os mendigos, os empregados, os desempregados, os músicos e as professoras... Parece que a semana pode ser tranquila, porque a segunda-feira acorda quase silenciosa, rente ao sol. O velho toma um remédio para a pressão à noite e outro pela manhã e segue a vida, dormindo diante da televisão, como se nada tivesse mudado fora dele. Por dentro a cabeça cogita mil possibilidades e outros pontos de vista. Mais uma noite, mais um dia, mais um filme. Não entendi o final do filme! Por dentro, mais uma desilusão, uma impossibilidade e muita falta de ar. Quem diria, cheguei! Cheguei aos 95 anos... Ninguém se lembrou.



Autora||: Valéria Áureo.

In Sortilégio dos Signos