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sábado, 5 de novembro de 2016

Estrela Solitária


                                                          Ilustração: Internet

          

        

Ela nem sabe mais o dia em que colocou aquele vestido azul; sapatos de salto fino, prontos para dançar... Taças de vinho, aniversário de casamento. Perfume e batom de suave brilho e sabor. Alice foi ao salão e cuidou-se de maneira graciosa. Tinha uma sensação promissora de aflições, embora houvesse estrelas cintilantes dentro dos olhos. Ah! A esperança é a última que morre... Alice permaneceu quieta no sofá, pensando no tempo em que não sofria. Nesse tempo o amor era sempre tão quente. Ela sonhava e sonhava... Muitos passos encadeados, dedos entrelaçados, cabeça repousando no ombro dele, para sentir o cheiro da pele quente, logo depois da “pelada”. O braço dele contornava a sua cintura fina e a rodopiava no pátio do colégio, pela avenida, pelo estacionamento, pelo corredor, pela sala até o sofá. Todo lugar era bom para estreitá-la nos braços vigorosos e seguros e girar, girar, girar... Dançar... Um Fogo. Que fogo! Sim! Quanto tempo não o via ir-se, depois da horinha de namoro sob o olhar atento da mãe de Alice. O namoro tinha hora marcada, mas ele e Alice prorrogavam os encontros. Na hora de ir embora, ele saía acelerando o carro, queimando pneu, depois de uma longa despedida; Alice ainda sentindo o mais recente beijo de labaredas e o calor da camisa listrada de preto e branco. Os dois eram tão jovens. Dois estudantes guiados por uma brilhante estrela emoldurada no tempo em que bastava um pequeno aceno suplicante dela, para ele voltar voando. Um fogo!... O hábito de dar marcha ré, só para dizer novamente, mil vezes: meu amor, eu te adoro, eu te quero para sempre, volto logo, não me esqueça, I Love you e me espere minha vida, senão eu morro; minha estrela da vida inteira!... Ah! Quanto tempo o telefone não fica ocupado, arrastando o: desliga você, eu não tenho coragem, vou morrer de saudades, não me deixe um segundo, vamos desligar juntinhos, dorme bem meu amor, está quente, sonhe comigo, até amanhã; beijos queimando em brasas, num gestual de românticas criaturas que temem se perder... Ah! Quanto tempo ele não a olha pelo espelho retrovisor do carro, só para enquadrar o balanço das suas coxas, o volteio da cintura fina e a inspiração para viver feliz o dia inteiro... Ah! “O amor é fogo que arde...” Para onde aponta o seu amor, agora tão distante, que deixou de ser amante, que deixou de amar e o transformou num homem ausente, sem o fulgor da estrela?

Agora Alice só fala, fala e fala. E ele se cala, cala e cala. Ela quente. Ele gelo.

Mas, que pena; ela acordou com pensamentos inoportunos, dizendo para si mesma que hoje é difícil viver com ele. Mudou tanto! Para ele o mundo se resume a: sim, não, talvez. Para Alice, o mundo é um labirinto de palavras labaredas, que não se apagam. Alice se queixa de segunda a segunda, porque ele não cumpre as promessas que faz: jura que na segunda-feira termina o trabalho demasiadamente árduo, mas a tempo de ter o divertimento com ela, que está sempre pronta a amar. E ela espera que ele chegue, até cair adormecida. E ela aguarda, enquanto o coração acorda e ele nem contempla a beleza desnudada nos lençóis. Do mesmo jeito ele promete que verão um filme a cada terça-feira, mas é incapaz de cumprir essa jura também. Depois destas desaprovações que seu coração denuncia, ele explica que na quarta-feira virá jantar e vai fugir da rotina do escritório. Na quinta, com toda certeza, deixará o chope e o “Comida di Boteco” depois do expediente, só para ter com ela aquele tempo passado de namoro. Na sexta-feira, quem sabe, será um dia especial; ele tenta se justificar.

No entanto, a rotina de seu relacionamento é demasiada para ela, estrela solitária e apagada no amor com ele, há tanto tempo, que o romance perdeu o destino de sua casa. Nem sexta-feira. Nem sábado. Nem domingo... Esfriou. O coro de anjos na sua cabeça alerta para a desafinação e desarmonia da sua vida; a tristeza continua, tornando-se aparente no rosto brasa. Ela queima, queima.

Alice, mais dia, menos dia, vai deixar de... Vai deixar de... Vai deixar de... É uma questão só de definir o dia da semana.

Ele não se dá conta de nada... Nunca a vê do jeito que Alice queria ser vista. Nunca a ouve como gostaria de ser ouvida. E, se ouvisse, não adiantaria, porque ele não entende o que ela quer. Não entende uma só palavra do que ela diz... Porque ela fala tanto? Não a vê, nem escuta e nem sente o seu perfume. Sim, não se dá conta de nada, porque a vida é mesmo uma droga, uma porcaria, um inferno: o trânsito, o chefe, o salário, o cartão de crédito, a rotina, a hora extra, a crise, as passeatas, a confusão, os filhos, a política, o governo. E por que ainda não prenderam aquele safado? O que está faltando?Política! Filhos! Ah! Os filhos!... Tem mais: os blás, blás, blás de Alice. Insuportáveis!

- Estou morto! Entra em casa, monossilábico e sem entusiasmo. Passos de autômato. Músculos enferrujados. Calva... Barriga. Impaciência. Cansaço. Morno. Larga os sapatos na entrada. Liga a televisão. Vai ao banheiro. Chuveiro! Água gelada. Toalha. Bermuda. Chinelos. Cigarro. Volta à sala. Joga-se no sofá. Grita para ela: - Minha cerveja!... Deixa claro que não vai jantar; já comeu qualquer coisa na rua. Uma paradinha no Caneco Gelado. Azia, má digestão. Boca amarga. Grita: - Pega o controle remoto! Alice guarda a comida feita com cuidado para tratar da dor de estômago do marido; agora o avental esconde o vestido azul. Ela arruma a cozinha e a pele perfumada vai se perdendo no aroma do detergente. A maquiagem desliza arrastada pelas lágrimas, descompondo a esperança de uma noite diferente. Perde-se na água que escorre em redemoinhos pelo ralo. Perde-se na solidão morna. Perde-se nas bolhas coloridas de sabão.

Ele se acomoda no sofá, moldado com as suas formas e suor. Agora sim... Um profundo suspiro e a entrega solene ao futebol. Ternura em seu olhar, só quando seu time entra em campo e a bola rola no gramado... Esquenta. Põe a mão no peito e canta o hino do time. Sente-se bem, sorri. A bola em campo traz a mesma alegria e vigor da juventude.

- Juiz ladrão! Safado! Foi falta! Está cego? Marca! Marca! Seu corno! Vagabundo! Segura! Passa a bola! Falta! Chuta, passa a bola! Fecha a retaguarda! Corre atrás da bola! É pênalti! Juiz ladrão!... Cartão vermelho! Cartão vermelho! Expulsa este perna-de-pau!... Está cego? Vai, vai, vai! É gol... É gol... É gol! E o grito vibra na sala. FOOO GOOO!... Fooo Gooo!... Fooo Gooo! Fooo Gooo! Hoje ele vai dormir feliz. Ela não. Alice chora.

O futebol é a verdadeira prorrogação da vida e da esperança. Alegria e prazer, só mesmo quando ele liga a televisão. No campo não tem patrão, não tem horário, não tem pressa. Não tem cobrança e falatório. Ah! Não tem os blás, blás, blás de Alice. Se a vida é um jogo, quem sabe ela melhora no segundo tempo? Prazer?... Só com o Botafogo e a sua imorredoura Estrela Solitária. Ah! O amor é eterno. O amor é fogo...

Vai chegar o dia em que ela...

Entre outros desatinos que passam pela cabeça de Alice ela pensa em botar fogo na televisão, na sala, na casa, na rua, na cidade inteira. Ela, mais dia, menos dia, vai deixar de... Vai deixar de... É uma questão só de definir o dia da semana.

Domingo: sirene, bombeiros, gritos... Socorro!... Fogo! Fogo! Fogo! 

“O amor é fogo que arde”...  
                            

Autora: Valéria Áureo