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sábado, 16 de dezembro de 2017

O Encontro com Rêve ( encontro à meia-noite)


Januário entupia o estômago de comida, se embriagava, xingava, badernava, beijava as mulheres, amaldiçoava os homens, batia o carro e se desculpava: - É Natal, tempo de alegria!... E assim foram mais seis dias de comemorações e embriaguez, alternando os últimos dias do ano. Árvores, enfeites, presentes, bebida, comida, muita comida... Não havia lugar para as preces e o perdão. Ele vivia uma desmedida solidão. Sua vida nunca tivera sentido e nunca clamava por Deus, Nosso Senhor...
Januário clamava por uma noite de sono, depois de dias de intensa comemoração e folia. O corpo já não suportava os desmandos da cabeça vazia. Finalmente ele assumiu estar no limite da exaustão. Januário dizia estar no bagaço...
- Acorda, está na hora. Um toque suave de mão leve e fria nos pés de Januário adormecido o fez estremecer. Está na hora, vem comigo, vibrava a voz sussurrante e morna em seus ouvidos!... São 11 horas e quarenta e cinco minutos... Não tenho mais tempo, ou vou ter que arrastá-lo pelos cabelos?
- Ei, que é isso? Quem é você? Ir para aonde, a estas horas da noite? Eu quero é dormir! Deixe-me quieto, porque preciso descansar. Suma logo daqui, com esse hálito macabro, que estou perdendo a paciência. E Januário voltou a ressonar, variando entre a lucidez e o sonho.
- Já dormiu demais nessa vida, falou o jovem sacudindo-o com força. E vai ter todo o resto para descansar. Agora é hora de sair comigo. Vamos embora, que tenho gente para levar. Vamos parar com essa indolência e sair logo daqui, porque nosso compromisso é inadiável. Estamos perdendo preciosos minutos, não vê?...
Januário, mais desperto, olhou apavorado para o desconhecido que o apalpava com a mão fria; na outra mão ele segurava uma taça de champanhe e falava:
- Nosso encontro está marcado, desde sempre. É uma data prevista, marcada no calendário. Deixa de inventar pretextos para não me companhar!... Chegou a hora! Já estou perdendo a paciência! Tenho muito que fazer.
- Chegou a hora! Chegou a hora de que, afinal? Januário arregalou os olhos assombrados. O coração acelerado fazia seu corpo estremecer, a ponto de ter um infarto. Não vá me dizer que... Não! Não pode ser!... Não, eu não vou com você a lugar nenhum. Afinal, que roupa é essa que está usando? Você não é aquela mulher que só usa roupa preta e um capuz a lhe esconder a face desgraçada? Mãos magras, unhas longas e dedos finos e firmes a empunhar uma foice afiada? Ou vai me dizer que a dama maldita de negro também é transformista?... Não me admira nada. Um terno branco, alinhado, engomado, na maior estica!... Virou homem, é?... O mundo está mesmo virado. Até a “indesejada das gentes” não é mais a mesma. Vou nada! Está louco?
- Mas o que é que você está inventando agora? Não fantasie motivos para não me acompanhar. Trate de se levantar e se arrumar em cinco mintos, pois a hora está chegando. Meia-noite é o meu tempo exato de... Meia-noite e nem mais um segundo! Aliás, meia-noite, nem mais e nem menos. Eu sou preciso como um cronômetro.
- Nem amarrado eu saio daqui. Está louco? Só saio daqui morto, está ouvindo? Bem, morto não! Nem morto eu saio daqui; nem morto! Sai pra lá, Dona morte! Sai pra lá em busca de outro distraído, porque eu não vou, de jeito nenhum! Valei-me Nossa Senhora, São Pedro e São João! Valei-me e me livre dessa maldição! E retirou-se voando, rezando, gritando escada abaixo, em direção à rua toda iluminada.
- Mas que sujeito louco esse Januário! De onde tirou a ideia de que sou a morte? Sou Rêve, o Ano Novo. Eu só queria levá-lo a 2018.

Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Vovô é trans...











Há tempos tenho notado que vovô não está bem. Tem-se perdido nas palavras e nas ideias, o que me deixa muito preocupado. Ele começa a falar, mas não completa a palavra, como se não houvesse sentido concluir o que diz. Em razão desse sintoma estranho, que sempre nos deixa sem entender o que ele fala, marcamos uma consulta com seu geriatra. Preservando os últimos ensaios de autonomia, ele insistiu em ir sozinho ao consultório. Para nosso sofrimento, el...e voltou triste e intimidado do médico. Voltou com menos palavras ainda.
Eu insisti: - Vovô, o que o senhor tem? O que o médico disse? Alguma coisa séria?
- Bota sério nisso. Ele disse que eu sou trans! O que é que os meus amigos vão pensar de mim? Na minha idade virei trans. Eu sou trans! Foi isso o que ele disse, na minha cara.
Eu dei um pulo do sofá, percebendo que realmente meu avô não estava bem. Como assim, vovô? O senhor é trans?! Que maluquice é essa agora?
- Foi exatamente isso o que o médico disse. Eu sou trans! Estou acabado!
Eu o deixei na sala, cabisbaixo e envergonhado. Fui ao quarto de vovó e falei do resultado da consulta. Ela perdeu o ar e emendou assim que pode falar novamente. Que conversa é essa, agora? Como é que o seu avô pode ser trans?
Eu ainda me arrisquei, perguntando: - a senhora nunca o viu usando uma roupa sua, pegando um batom, uma calcinha, um brinco, um sapato alto, se depilando?...
- Deixa de safadeza, menino! Seu avô sempre foi um ogro, barbado, peludo dos pés à cabeça; se fosse trans eu seria a primeira a saber... Que caduquice é essa? Eu estou dizendo; ele não está nada bem!
Vovô ficou revoltado com o médico, dizendo que ele era uma besta, que não sabia de nada, que tinha comprado o diploma. Trans, veja só! Ele disse que eu sou trans! E nada mais o acalmava. E eu, intimamente a observar cada detalhe do corpo e dos gestos de meu avô, tentando identificar algum sinal estranho. Naquela idade?
Diante dessa consulta desastrosa, decidi acompanhá-lo ao geriatra, para que esclarecesse o diagnóstico.
- Como está, seu Agenor? Qual o motivo de sua volta? Não marcamos consulta só para daqui a três meses? Está tomando o Diazepam que eu lhe receitei? Já sentiu melhoras? Vai dormir bem melhor. Vovô prontamente respondeu: eu vim aqui para deixar de ser trans.
- Como assim, deixar de ser trans? Que novidade é essa agora?
- O senhor é quem disse que eu sou trans.
- Mas de onde tirou isso? O senhor nunca foi trans... Eu disse que o senhor anda transtornado. Transtornado, seu Agenor! Trans-tor-na-do!


Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes

sábado, 28 de outubro de 2017

Novos Matusaléns em Balbúrdia


 



 

Finalmente pude conhecer a tão propagada Balbúrdia, o que eu já tinha tentado algumas vezes. Houve um arrefecimento nas crises internas e o país abriu as portas ao turismo novamente. O governo precisava arrecadar mais tributos, com os visitantes ocupando a sua rede hoteleira, que até então tinha sofrido um grande desgaste. Estrangeiros insistiam em conhecer as ruelas, que mesmo em guerra estavam acessíveis aos turistas. O risco de uma bala perdida fazia parte do pacote de emoções oferecido pela agência de turismo. Estrangeiros vinham em busca de vertigens e adrenalina, alinhavadas com teses de estudos antropológicos. Também vinham em busca de artesanato em gesso e mármore só encontrado no local.

Devo dizer que o país, de certa forma me encantou, pois tinha se tornado referência mundial, com a ajuda do prêmio Nobel de Medicina, de origem em Balbúrdia. Havia festejos e muita esperança, afinal Balbúrdia tinha conquistado para o seu povo, mediante muita pesquisa científica e medicina de ponta, um título Nobel e a tão perseguida “ longevidade humana”, que agora atingia a faixa etária de no mínimo 140 anos. Balbúrdia era um expoente, recentemente notável em todo o mundo. Jovens que tanto temiam envelhecer comemoravam efusivamente. Idosos, agora com muitos anos pela frente, não deixavam um só instante de celebrar o futuro pleno de saúde. E assim, diante de tantas conquistas, não se incomodaram em contribuir com as reformas que estavam por vir. Por conta de muitos anos maravilhosos em uma pátria tão hospitaleira e cuidadosa com a sua população, o governo propôs uma reforma na Previdência social chamada Requiescat in pace;  tudo com o objetivo primordial de prolongar as benesses que o governo já oferecia aos seus contribuintes, desde o nascimento de um balburdiense, até a sua aposentadoria gloriosa, a partir do centenário do contribuinte.

Balbúrdia rompeu a barreira dos 60/70 anos de vida do homem; mais que dobrou a expectativa de vida do balburdiense, garantindo-lhe o melhor para a tão almejada aposentadoria. Há muito tempo os cientistas e alquimistas de Balbúrdia dedicavam suas vidas à busca da poção da juventude eterna. E, em meio às atribulações que uma crise econômica e moral provocam, o cenário se descortina agora, para notícias promissoras. Agora não se trata mais de mitologia grega, em que se creditava a certos alimentos uma relação estreita com a juventude, tal como ocorreu com a ambrosia – o manjar dos deuses no Olimpo; alimento tão poderoso que conferia a um mortal que o comesse, a imortalidade. Nem se trata de mitologia nórdica, onde as maçãs, colhidas pela guardiã Iduna, podiam dar aos deuses (então mortais), a vida eterna. Nem se trata do ouro dos alquimistas chineses e o elixir da longa vida. A solução para o dilema da morte está em Balbúrdia. Pelo menos, é o que anunciam as autoridades, garantindo vida longa ao povo. Não se sabe ainda se na água, no ar, nos alimentos, ou nos remédios oferecidos pela rede pública. O certo é que os governantes de Balbúrdia mantém o segredo a sete chaves.

Então, vamos lá, rumo aos cento e quarenta anos! Tudo sob o patrocínio da Previdência Social, pacote Requiescat in pace*.

*Do latim - Descanse em paz.

Divindade Ladrax e cântaros




 

Estão perguntando se tenho endereço fixo, uma vez que tanto viajo. Moro em Pasárgada, na Pérsia; (A Persia, correspondente, hoje, à moderna província iraniana de Fars). É meu endereço oficial, para citações e intimações judiciais, pois sempre sou processado.  E, por incrível que pareça, aqui no Irã eu tenho paz, onde posso escrever tranquilamente e conviver com os amigos. Fui por muito tempo vizinha de Manuel Bandeira. Depois nos distanciamos, pois ele era amigo do rei, tinha muitas mulheres e vivia um mundo à parte. Só pensava em ginástica, andar de bicicleta, montar burro brabo, subir pau de sebo, tomar banho de mar e deitar na beira do rio.  Sou mais reservada e quieta.

Passarei algumas semanas em casa, onde a calma impera e depois irei às Ilhas Canálias e Ilhas Temerárias. Fiquei sabendo por correspondentes internacionais que as Ilhas Temerárias e Ilhas Canálias são lugares notáveis e de piada pronta ( não confundam com as Ilhas Canárias - As Ilhas Canárias são um arquipélago espanhol no Oceano Atlântico, ao largo de Marrocos, constituindo uma Região Autônoma da Espanha. Aqui eu nem entrarei no mérito da vizinha região da Catalunha, onde o tempo ferve e o povo domina as ruas.

Eu, que adoro histórias engraçadas, vou gostar muito de Canálias e Temerárias, ao leste de Cretínia e Cretineia. As ilhas praticamente pertencem a duas famílias que formam dois grupos com concessões portuárias e tornaram a região um paraíso fiscal. Um grupo importa couro do curtume mais famoso do mundo, o de Fès, de Marrocos, também chamado de tannerie. O couro marroquino é feito com peles de cabra, de  vaca ou de ovelha, tingidas do lado do pelo, com um formato irregular e granulado, de toque agradável e altamente resistente. Malas resistentes, maleáveis e leves e muito utilizadas no transporte de valores, o que se tornou uma prática muito comum entre os homens do governo.  Malas à primeira vista frágeis, mas que suportam pesos incalculáveis, o que tem sido o diferencial de outras marcas. O mais interessante é que o comércio de importação de malas cresceu assustadoramente, o que, aliás, beneficiou a família Gerder. Em contrapartida a família Temel fundou uma fábrica de tornozeleiras personalizadas: Lar & Cela, hoje de fama internacional devido a demandas originárias de Banânia, Parvópolis e Cretineia. O negócio prosperou e superou as expectativas. Enfim, são dois empreendimentos muito prósperos e os donos das fábricas decidiram por formação de holding familiar. Isto se deu por causa de um problema fiscal, em que o presidente da Fábrica Temel foi acusado de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. O julgamento do dono foi bem estranho e ocupou o noticiário de muitos países. Foi constituído um tribunal de exceção para julgá-lo, o que é bem compreensível nessas duas ilhas longínquas. Os constituintes do tribunal de exceção eram também sócios das duas empresas: Lar & Cela e Gatex Malas.  Eles também estavam envolvidos em pendências judiciais; apesar de notório estranhamento do povo, nada os impediu de julgar. Temel foi absolvido e continua na presidência da Gatex Malas. Não restou outra solução, senão decidir pela constituição do Holding Familiar, uma solução para os empreendedores que pretendem prolongar a existência de suas atividades comerciais com resguardo patrimonial, planejamento tributário e sucessório, evitando conflitos entre familiares e concentrando todas as forças para o crescimento e profissionalização do grupo. O mesmo se deu na Lar & Cela, que também se constituiu em holding familiar.

Canalias é um arquipélago de 171 ilhotas, que fica mais adiante, próximo à região dos mares Boba e Tremebundo. É quase uma aldeia com tendas típicas, onde se vendem flechas, bombas e cântaros. Canalias é cheia de turistas que ficam nas praias a espera das gaivotas atraídas pelos pescados; a pesca é uma grande riqueza para os nativos.  O povo é humilde e mantém casas esparsas no arquipélago, construídas com barro e bambu. Os habitantes são muito fervorosos e creem nos poderes de uma anciã adivinha, que funciona como a porta-voz da divindade Ladrax.  Eles confiam cegamente nas previsões da anciã e a ela recorrem cada vez que há conflitos entre as ilhas e questões pessoais. As mulheres a visitam para pedir ajuda para encontrarem maridos e fortuna.  Os homens buscam respostas para os negócios e as carreiras políticas. Eles levam os cântaros onde são recolhidas as águas do riacho Propinuz, para seus banhos no altar do Planalto central do arquipélago. Há filas enormes em Canalias para a visita à anciã; muitos pretendem ter respostas para 2018. Eu entendi porque se vendem tantos cântaros em Canálias, uma vez que são muito utilizados nos cerimoniais do Planalto, em presença da anciã profetisa, mas ainda não pude compreender por que vendem flechas e bombas. Será que são oferendas à divindade Ladrax?




 

sábado, 14 de outubro de 2017

Cretineia





Saí de Parvopolis (Parvópolis) ao entardecer e fui para Banânia, com escala em Balbúrdia. No aeroporto alguns parvopolenses (parvopolitanos) ainda fizeram selfie comigo. Saí de lá com fama de artista genial, depois de meu vômito no mármore branco do museu. Nem desci do avião na escala em Balbúrdia, pois o clima estava bem desfavorável e chovia!
A viagem foi de pequena duração e pude apreciar o voo sobre o oceano. Viagens longas me aborrecem e essa estava perfeita. Parvopolis, onde se fala o parvopolês, tem ótima relação comercial com Banânia; os dois países se complementam economicamente. Banânia exporta fumo, biquínis e instrumentos musicais, além de banana, é claro. Parvopolis, por sua vez exporta cultura, como lhes disse. São grandes produtores de arte, no estilo vangard escatologique e vangard déchets. Tal arte lhes tem dado fama internacional, mas não dinheiro. Por isso sobrevivem com exposições itinerantes pelo continente.
Passei poucas horas em Banânia, cujo idioma oficial é o bananês, pois havia uma crise política no país. Uma investigação tinha descoberto políticos honrados, incorruptos, no senado e na câmara, o que levou o governo a um constrangimento internacional jamais experimentado, além de descrédito dos bananienses. Trataram logo de deportá-los para a Île Honestus onde cumprirão pena. Diante dos protestos do populacho clamando por guilhotina para os políticos honrados, eu decidi partir para Cretineia, outro país bastante curioso.
Em Cretineia, onde se fala o cretinês, o que mais me impressionou foi a educação; os pais entregam os filhos para o governo assim que desmamam; cabe ao governo central de "La Maison de Mère Joanne" educá-los e os inserir na sociedade, bem como lhes definir o sexo, uma vez que é proibido aos pais divulgarem se tiveram menina ou menino. Só recebem o registro de definição do sexo ao completarem seis anos, quando eles mesmos optam a que “gênero” querem pertencer. Assim que atingem a maioridade estão aptos a voltar para casa dos pais. Os educadores de "La Maison de Mère Joanne" usam a medicina de chás, infusões e inalações, o que torna os jovens mais dóceis e maleáveis e o processo educativo é mais eficiente. Tais medidas arrancam-lhes quaisquer tentativas de subverter a ordem. Assim são facilmente educados em conformidade com os preceitos da Pedagogia do governo Herr Fresh. Cretineia era uma democracia até pouco tempo. E como democracia o presidente e pedagogo Herr Fresh propôs plebiscito para que o povo decidisse sobre manter ou não o policiamento de qualquer natureza, bem como as forças armadas. Todos foram votar depois de dose extra de inalações medicinais distribuídas pelo estado. A grande maioria decidiu pelo fim do policiamento, pelo fim do Ministério de Defesa, pelo fim do Exército, Marinha e Aeronáutica. Assim se instaurou um novo ordenamento nas cidades. Isso desencadeou no caos. E, para conter o caos, o presidente Herr Fresh instaurou a ditadura.
Bom, vou continuar minha viagem, pois há muitos países a conhecer.
Autora: Valéria Áureo

sábado, 7 de outubro de 2017

Viagem a Parvopolis




 

          Cheguei a Parvopolis depois de treze horas de voo. Tomei café no avião. Cheguei ao hotel e fui dormir, pois ainda era de madrugada. Acordei às duas horas da tarde. Tomei meu banho e fui dar uma volta pelas redondezas. Cidade calorenta! Entrei em um restaurante de comida típica local; muito tempero, pimenta e excesso de gordura. Deixei um pouco de comida no prato e fui conhecer o tão famoso Museu.

          Entrei. O Museu era enorme. Havia artistas fazendo performances. No primeiro plano uma jovem se apresentava com uma lata de molho de tomate e um abridor. Ela tentava abrir a lata e demonstrava total inabilidade para fazer isso - abrir uma lata. Os minutos passavam e ela se atrapalhava sem conseguir; finalmente abriu a lata e todos os parvopolenses aplaudiram efusivamente. Eu ainda pensei: se ao menos ela tivesse simulado um suicídio e jogasse o molho vermelho sobre o próprio corpo, teria um enredo. Mas, enfim, fui para o outro lado da sala. Um modelo nu esfregava a imagem de Nossa Senhora na genitália. Todos em torno reagiam: os parvopolenses aplaudiram e os estrangeiros ficaram atônitos. Ele continuou a apresentação; pegou um ralador tão grande que pudesse encobrir a genitália desnuda e se pôs a ralar a imagem da Virgem Maria. Parvopolenses em suas parvoíces aplaudiram, assoviaram, gritaram eufóricos. Os estrangeiros se mantinham calados. Em outro ponto do museu um homem representava Cristo e palitava os dentes com um espinho arrancado da coroa. Outro performático distribuía hóstias escritas com os nomes dos órgãos sexuais e outras bizarrices. Os parvopolenses aplaudiam. Um macaco foi colocado no colo da Virgem Maria, substituindo o Menino Jesus; o Cristo foi mimetizado com uma divindade hindu com muitos braços. Em cada mão um apetrecho. Outra artista em cócoras retirava o crucifixo das entranhas. Os parvopolenses comemoravam. Um grupo fazia pinturas escatológicas em um grande mural; usavam chocolate como fezes e lambiam os dedos com gestos tribais. Os parvopolenses aplaudiram estrondosamente. Eu nauseada vomitei no piso branco de mármore. A comida e a arte de Parvopolis me fez muito mal. Eu vomitei no chão e os parvopolenses me aplaudiram de pé e gritaram viva, viva, viva! Eles tiraram muitas selfies comigo e disseram que eu era uma artista fantástica.

País muito estranho Parvopolis! E mais estranhos ainda são os parvopolenses!

 

Autora: Valéria Áureo

         

 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O Homem que usava armaduras



 

 

          O homem de armadura empurrou a porta do consultório suavemente e entrou na sala atapetada, que amortecia as suas passadas pesadas. Sempre teve pavor de médicos e evitou visitá-los o quanto pode. Diante da insistência da mulher, decidiu se consultar. Ultimamente sentia o corpo cansado, as juntas inchadas e doloridas, dor abdominal e um aperto no peito, como se estivesse sem ar. Também notou queda de cabelo e constante mal humor. Vivia carrancudo. Havia outros desconfortos com os quais não se incomodava mais. Foi ao Dr. Bernard, o melhor médico do mundo. Ao menos era isso o que diziam dele.

          A armadura pesada era de cortes de malha de ferro, peitorais de aço,braçadeiras, luvas, caneleiras e botas; por baixo dessa armadura o homem usava uma camisa e uma ceroula de tecido macio como algodão, para reduzir a fricção da malha, mas principalmente para reduzir a força de impacto dos golpes. A vida dava golpes de todos os lados e ele devia amortecê-los.

          Apesar de se acreditar que armaduras imobilizavam o usuário, na verdade, a armadura medieval permitia o seu movimento fácil; o que o limitava era o peso e o desconforto causado por usar tal vestimenta constantemente, além do barulho e da dificuldade na hora de dormir.

          Ele entrou na sala e ficou de pé, ao lado dos demais clientes do Doutor Bernard. Ele não se movia e observava todos que esperavam a sua vez. O rosto continuava encoberto pelo capacete de metal, mas isso não impressionava ninguém. Aliás, ninguém parecia notar que ele usava uma reluzente armadura. Usava também um elmo com uma plumagem vermelha que lhe garantia altivez, mas parecia que ninguém notava.

          O homem de armadura tinha se colocado próximo ao corredor, o que atrapalhava a passagem dos demais, porque suas longas pernas rígidas tornavam o lugar mais exíguo. Ele retirou as luvas metálicas com cuidado, pois havia notado que o ar condicionado não estava ligado e ele estava suando. Havia muitos clientes e, provavelmente o Dr. Bernard tinha se atrasado.

          À sua direita notou uma mulher de cabelos pintados, ainda úmidos, que lia uma revista, ou a folheava distraidamente, para se ocupar com a espera. Ao lado dela uma senhora mais velha lia uma revista alemã, de modas. Como a primeira mulher, ela também não usava joias.  A mais jovem fumava um cigarro americano encaixado em uma piteira dourada. À sua frente um senhor bastante idoso usava chapéu e tinha um guarda-chuva no colo. Ele olhava o chão sem se mover. O homem de armadura resolveu se acomodar na cadeira, fazendo um barulho distinto dos demais. Assim deixava mais livre o espaço para os clientes. Era um ranger de metais, como as dobradiças enferrujadas de uma porta. O barulho fez com que todos olhassem para ele, o que o deixou constrangido. Em segundos todos se voltaram aos seus interesses sem se importarem mais com a sua presença. Pouco caso faziam de sua armadura, seu elmo e capacete, porque parecia que não os viam.

          A campainha tocou e o velho que estava imóvel, usando chapeu foi o primeiro a entrar. Ergueu-se lentamente sem fazer barulho. Permaneceu trinta minutos na companhia do médico. Ao sair o velho acenou lépido para todos da sala se despedindo. Saiu sorridente, dando a impressão de que a notícia tinha sido boa. A enfermeira conduziu a segunda paciente, que era a moça de cabelos pintados. Levou-a para dentro do consultório. Ela também saiu sorridente meia hora depois, com um sorriso radiante.

          Enfim a enfermeira se dirigiu ao homem de armadura. Ela o guiou até o interior do consultório. Conduziu - o por um labirinto e o deixou diante de uma porta onde estava escrito HOMENS. Ela disse para que ele entrasse no banheiro e se despisse e ficasse à vontade. Ele se perguntou se ela tinha notado a sua armadura. De qualquer forma ele se preparou para a consulta; afinal o Dr Bernard  era o especialista mais renomado no assunto. O melhor médico do mundo, afirmavam.

          Ele notou os cabides de acrílico presos nos azulejos, mas eram inúteis para sustentar as peças de seu vestuário. Retirou o capacete, o elmo com plumas vermelhas, dando enfim liberdade ao seu rosto bem barbeado; libertou os cabelos louros já embranquecendo. Torceu as roscas com ruído e desencaixou as mangas, libertando os braços. Depois as depositou no chão, apoiadas na parede. Desencaixou as pernas e as botas de pontas estreitas com um pouco mais de dificuldade, ferindo-se levemente nos joelhos. Restava apenas a proteção do tronco. Desvencilhou-se dessa última peça com certa dificuldade. Retirou a roupa de malha que ia sob a armadura. Finalmente ficou completamente nu. Sentiu-se leve sem o peso dos metais. Deu alguns saltos, girou o tronco para a esquerda e a direita, abaixou-se, levantou-se, flexionou braços e pernas.  Respirou fundo. Acomodou todas as peças de sua armadura sobre a cadeira e saiu do cubículo para a consulta.

          Finalmente estava diante do melhor médico do mundo. O médico perguntou quanto tempo havia que ele não se consultava, advertindo que com a saúde não se brinca. Depois afirmou: um metro e oitenta de torax, o senhor nunca terá problemas de pulmão. Suba nessa balança! Peso ideal, nem gordo e nem magro. Diga trinta e três! Pressão arterial normal, temperatura normal. Gânglios normais... Vamos colher o sangue, urina, esperma. O resultado sai em algum tempo, pode ficar aqui mesmo e aguardar. Hoje é tudo muito rápido com exames feitos por computador. Faremos radiografia, ultrassonografia e o que mais eu achar necessário, já que o seu plano cobre tudo. A enfermeira vai conduzi-lo e é só ficar tranquilo.

          O homem nu foi conduzido pela enfermeira por inúmeras salas; em cada uma delas se submetia a um exame sem qualquer constrangimento. Assim que eles terminaram ele retornou à sala do Dr. Bernard. Ali ele ficou a espera do médico e do resultado com certa apreensão. Acabou dormindo na cama do consultório; depois o Dr Bernard retornou com um ar suave no rosto e o acordou.

          O senhor está em boas condições, meu caro. Apenas um valor maior de ferro no organismo, facilmente tratável e nada mais.Não deve se preocupar. O excesso de ferro no sangue pode ser tratado com o uso de medicamentos que diminuem a quantidade desse mineral no corpo, com alterações da dieta e com uma sangria terapêutica. A melhor forma de corrigir isto é fazendo doação de sangue. Faça isso agora! Vou chamar a enfermeira!

           A enfermeira prrparou o paciente e retirou a quantidade de sangue que o médico havia prescrito. Depois disso ela o liberou, orientando-o para que voltasse a cada seis meses.

           O homem que estava nu sorriu para o médico e se despediu muito satisfeito com a consulta e com o seu imediato bem estar. Era muito bom saber que não tinha nada de grave. Ele passou calmamente pelos outros clientes da sala, despedindo-se de todos com cortesia. Foi capaz até de sorrir. Esqueceu-se completamente de vestir a sua armadura, largada definitivamente sobre a cadeira do banheiro e saiu dali mais leve do que nunca; leve de corpo e de alma.

Autora: Valéria Áureo – 28/09/2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Conjugando o amor líquido



 

                                                          


          Helga era alemã, Pétros era grego. Eles se conheceram em um cruzeiro marítimo. Um mergulho na mesma onda... Um não sabia falar o idioma do outro, mas se gostaram profundamente e se entenderam. Com um simples olhar, ou um toque, eles se comunicaram mais do que se tivessem palavras em comum. Em tempos de amor infinito, decidiram pelo infinitivo ficar, namorar, beijar, pedir, dar, amar, casar...

Em tempos de amor líquido viviam se derretendo um pelo outro, tocando-se, se olhando com carinho, preenchendo os vazios do coração com o amor que estava entornando nos silêncios. A cada dia iam sorvendo a paixão um pelo outro.

          O amor era líquido e estava contido em um recipiente aberto dentro do peito. Pelo vão do coração rasgado o amor escapava; ia escorrendo pelo corpo e pela alma em gerúndios... Longos gerúndios na gramática dos sentimentos. Amando, querendo, esperando, sorrindo, desejando, dando e recebendo amar...
          O tempo, levando os toques e os olhares, ia alongando o afeto sem palavras para um lugar desconhecido.
          O tempo foi passando, passando e passando... E eles, que outrora se amaram no presente, caíram no precipício da rotina e no particípio do verbo: amado, querido, desejado, sofrido, pedido, negado, abandonado.
          Eles foram ao gerúndio mais doloroso, em tempos de amor líquido: sofrendo, chorando, mentindo, traindo, acusando, odiando, pedindo, negando, esquecendo, esquecendo, esquecendo...
          Chorando, porque o amor líquido gosta de provocar lágrimas, Helga saiu de casa no meio da noite, sem falar para Pétros que partia.
          Chorando, porque o amor líquido gosta de provocar dilúvios, Pétros saiu na mesma noite, sem falar para Helga que a deixava.
Ambos tinham sofrido; ambos viveram mortificados; cada um se acusando, remoendo a culpa de ter deixado o outro sofrendo.




terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Metafísica do Amor





                                                      Ilustração: Fonte Internet


          - Você me dá o seu coração? Você me dá o seu coraçãozinho?


          Eu nem me atrevi a olhar para o lado e interromper o idílio entre duas pessoas apaixonadas. Permaneci  imóvel e em silêncio. Seriam dois jovens descobrindo o primeiro amor? Ternuras trocadas com olhares lânguidos e promissores de beijos juvenis?... Pensei no amor de juventude, que acomete a todos. Pensei em todas as suas possibilidades... Amor, entrega e paixão.


          Ele repetiu: - Você me dá o seu coraçãozinho? Fui além em meus devaneios e pensei no amor e na sexualidade. A metafísica do amor... Ele queria uma entrega absoluta; a entrega do coração.  Não sei se pedia a alma, mas tenho certeza que desejava o corpo com todas as suas minúcias e os seus sentimentos. E, para minimizar essa entrega, esse desprendimento radical da mulher amada, ele usava o diminutivo do coração. Pedia da amada a renúncia do próprio ser, tão poderosa e dizia: me dá o seu coraçãozinho?... Com o coração viriam os braços, as pernas, as coxas, os seios, os lábios?...


          Lembrei-me das lições de Schopenhauer, que traçou uma investigação sobre a sexualidade humana baseada na metafísica da vontade, articulada às suas observações da vida. Ele apresenta o amor como um instrumento da vontade, e não de uma escolha pessoal ou racional.Sua conclusão pode chocar as concepções mais otimistas e ingênuas sobre o amor, pois a paixão nada mais é que estratagemas da vontade da natureza, ou espécie, impostas à vontade dos indivíduos. Os indivíduos acreditam que têm alguma vantagem pessoal no prazer físico e que escolhem racionalmente seus pares. Na verdade, diz Schopenhauer, eles são marionetes do gênio da espécie, um grande manipulador que se esforça por iludir os amantes com o gozo físico, ou mesmo com beleza visual que só o apaixonado enxerga. Tal fascínio atende ao propósito da conservação da espécie, que também é a perpetuação do sofrimento, através do nascimento no mundo dos fenômenos.


           E, enquanto eu voava em minhas considerações sobre o amor e suas dores, doçuras e vicissitudes, novamente eu o ouvia dizer:


          - Vai me dar o seu coraçãozinho? Vai me dar?...


          Ele repetia e ela dava risadinhas quase pueris. Devia estar enrubescida, tímida, mãos suadas e frias.


          Ah! O amor e suas peripécias... Um segredo aqui, um beijo roubado ali,  ciúmes e mais ciúmes acolá. E lá se iam os pares de mãos dadas, buscando o infinito. Amor cego, amor surpreendente, amor das idades mais inquietantes: alvoroços, suspiros, risos, afagos e lágrimas.


          - Você me dá o seu coraçãozinho, ou terei que roubar?


          Ela não respondia, apenas ria... Ele insistia: - vou roubar seu coraçãozinho!...


          Notei que o impasse se alongava e a moça não se decidia em dar o coração ao apaixonado. Decidi olhar para o casal embevecido em ternuras, com certa inveja... Também eu sou sonhadora. Eu também queria ter um amor assim, de entrega absoluta e visceral do próprio coração... Senti inveja da mulher da mesa ao lado.
          O homem com um golpe certeiro e definitivo espetou o garfo em um coraçãozinho frito no prato da mulher e o abocanhou de uma só vez.


          Ah! O amor é surpreendente.


Valéria Áureo
In: Conjugando O Amor Líquido


08/09/2017

domingo, 6 de agosto de 2017

Gelosia - O que vai na alma?


 


                                                    Ilustração: Fonte Internet


 

- Em que você está pensando? Olha para mim... Dentro dos meus olhos.

 - Eu? Não penso em nada especificamente. Penso nas questões do dia-a-dia. Casa, filhos, o que fazer para o jantar; nada de especial. Como posso olhar para você e dobrar a roupa, ao mesmo tempo?... O que você quer?

   - E por que você está com esse olhar perdido? Aconteceu alguma coisa? Onde estão os seus pensamentos?

- Como assim, olhar perdido? Estou olhando para as roupas. Estou atenta, ocupada, não está vendo? Lavo, passo, dobro, guardo a roupa toda. Quer me ajudar?

- Olhar assim, perdido, como se estivesse pensando em alguém...

- Mas não estou pensando em ninguém! De onde tirou isto agora? Estou ocupada, não me venha com besteiras! Não tenho tempo para conversa sem sentido. Ajude aqui, que será mais útil!

-De onde eu tirei? Você não me engana, com esses olhos perdidos e esse sorriso escondido.

- Não vá começar de novo com essa bobagem de ciúmes. Tem graça mesmo, querer adivinhar os meus pensamentos. Nem eu mesma me dou conta do que se passa em minha cabeça no momento em que eu dobro as roupas. São milhares de pensamentos ao dia, tão insignificantes e sem nexo que nem me dou conta. Só sei que penso, porque é normal para todo mundo pensar o tempo todo. Daí a saber tudo o que penso, já é demais! Talvez eu até pudesse pensar como os meninos estão crescendo, que preciso comprar mais blusas de frio para eles, olhando esta pilha de roupas, mas não posso afirmar.

- Está pensando em alguém, tenho certeza!

- Não diga bobagens. Pensando em quem? Não diga asneira! Deixa de falar bobagens. Eu aqui tão ocupada com o serviço da casa... Não tenho tempo nem mesmo de pensar em mim.

- Você não me engana; eu conheço esse seu olhar!  Esse seu silêncio. Vamos, fale comigo! Viaja para um lugar em que eu jamais posso entrar. Diga em quem está pensando de uma vez! Diga! Estava sorrindo, estava cantando. Diga com quem estava sonhando! Eu não suporto mais isso. Você me atormenta com esse seu olhar que nada me conta... Um olhar intraduzível. Vive escondida nesse sorriso incógnito. Não é sublime um olhar que me deixa de fora!

- Que questão mais metafísica!  Não estou rindo, nem pensando, nem nada. Estou respirando, se é que isso você me permite. Deixe dessa loucura de traçar a anatomia dos sentimentos e venha me ajudar!Você está infernizando a minha vida com essas desconfianças. Eu preciso é de paz, está ouvindo? Eu preciso de paz!

- Eu queria encontrar o lado bom da vida ao seu lado, mas você não compartilha o que vai à sua alma... Preciso saber o que vai à sua alma!...

- Minha alma precisa é de sossego! Deixe de asneira e vai procurar um serviço e me deixa trabalhar em paz!

Valéria Áureo

6/08/2017

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Persuasão


 
Ilustração: Internet

 

         - Então, é seu primeiro assalto, já respondeu por alguma coisa?

         - É, sim senhor! Só fui pego na malandragem antes, coisa de moleque “di menor”. Mas a minha ficha está limpa.

         - E o que pretendia com isso?

        - Tô sem dinheiro, senhor, sou trabalhador. Os coroas estavam aqui perto, deram oportunidade e eu me senti desafiado. Bolsa, colar, relógio celular, tudo dando mole, me chamando pro combate. Foi convite pra ação, sabe como?

        - E por isso acha que pode sair roubando por aí? Ainda mais um casal de idosos? Não tem vergonha não?

        - Eu tô na noia, senhor! Mas eu não judiei de ninguém não; foi tudo na diplomacia. Foi no diálogo, no argumento, na inteligência, doutor!... Não mostrei arma nenhuma não, porque respeito os cabelos brancos. Velho me comove! Não mostrei arma não! Ficou guardada na cintura só para a minha segurança; é que eu estava muito nervoso. Olhei para os dois velhinhos e me lembrei de minha vó. Sabe como é, a primeira vez a gente titubeia. Se ficasse pensando muito na minha velha, aí é que eu não conseguia mesmo fazer o assalto e  nem conseguia desvendar o bagulho. Ela não ia gostar de me ver nas quebradas, aprontando. Mas eu agi com cuidado, com respeito. Não agredi e nem ofendi; até chamei de senhor e senhora... Foi tudo no respeito e elegância. Só entrei na mente do sujeito para ele me dar o dinheiro, não teve agressão. Sou um cidadão educado, só entrei na mente dele com muita diplomacia, dialogando, senhor!.

        E como é que você faz para entrar na mente da pessoa?

        - Ah! Senhor, aí eu digo que vou fazer isso e aquilo e aquilo outro. Eu não boto terror! É um trabalho de persuasão, está me entendendo? Na eloquência! Falo, mas nem grito, só trabalho no contexto da paz e do amor. Falo assim: - Se não der isto, já sabe o que pode acontecer, meu bom! Eu aviso! Não ataco e nem machuco ninguém. Eu convenço a pessoa a me dar o que eu quero, mas eu não toco em um fio de cabelo dela, nem falo palavrão. Chego ao assunto com o cliente, com cordialidade, argumento e domino a mente dele, olho no olho. Nem mostro a arma, porque eu ajo com a cabeça e as palavras, tá ligado? Arma só em último caso, se o sujeito for mesmo cabeça dura; mas, se ele está pronto para o diálogo tudo acaba bem. É tudo na diplomacia, doutor! Não sou sujeito de violência não!  Eu só trabalho na mente do sujeito. Tem que ter retórica, doutor! Tem que ler Aristóteles, esses caras, tá ligado?Agora eu posso ir embora, doutor?

    Autora: Valéria Áureo

01/08/2017

segunda-feira, 31 de julho de 2017

A Arte de Furtar Palavras


 

 




 






Minha mãe dizia: - Antes dos dezoito, nem pensar! Não há de ser com o meu consentimento  que você vai fazer uma loucura dessas. Nem adianta me pedir, pois eu não deixo.

Acatei, como boa filha. Assim que veio a minha maioridade, finalmente liberta, minha mãe disse que nada mais poderia fazer por mim. Ela disse ao meu pai: - Não dou um dia e nossa filha vai aparecer aqui cheia de garatujas e desenhos por todos os lados.

O fato é que não, não apareci! Ou melhor, não tatuei desenhos em minha pele. Comecei pelas palavras...  Uma, outra, mais outra. Nos braços, nas costas, na barriga, nas coxas... Palavras, mais do que escritas, eram santificadas com o meu sangue, na minha pele. Fiz de meu corpo um santuário para elas. Um santuário ornado com rosas e espinhos. Eram sacramentadas com as minhas lágrimas. Eram palavras de dor, cruentas, nos quadris e nos altares. Eram palavras de consolo, calientes, tatuadas nos seios. Eram palavras de paixão tatuadas nas nádegas.  Palavras de fuga tatuadas nas pernas e nos pés. Escondi o quanto pude. Tatuei palavras pesadas escritas nos ombros e difíceis de serem carregadas, como a dor e o medo. Palavras esculpidas nas costas serviam-me de agasalho, como uma segunda pele. Outras tantas escrevi no peito, bem próximas do coração: orações, versos, salmos, súplicas, pedidos, ordens, preces... Fiz do meu corpo um mosaico.

Não é que eu tivesse o dom de furtar palavras, como costumava dizer. Furtar exige aptidão e inclinação e eu não tenho nem uma e nem a outra. Exige outro tipo de personalidade.  Para a minha defesa posso dizer que não furto, mas as palavras me alcançam, fogem de onde estão e colam na minha pele, como se eu fosse imantado e elas de aço. Palavras – confusas, estrídulas, exóticas – que me tocam, chamando a minha atenção. Se eu as ignoro elas se apresentam e grudam em minha textura; o alfabeto insuspeito, lineado em vocábulos enternecedores, me convida ao furto. São palavras vorazes, audaciosas que me tratam como rainha exótica das ciências ocultas dos signos. Elas criam comigo um mundo coeso, apropriado para os meus propósitos de colecionador. Eu, honesta, até tento me desvencilhar das palavras furtadas, das palavras dos outros, que ouço em todos os lugares. Tento me bastar com o meu alfabeto, o meu dialeto, mas sou um perigo quando escuto conversa alheia, trazida pelo vento. Não adianta. As palavras me querem. Elas se desprendem de onde estão e vêm comigo. Por isso eu decidi tatuá-las em meu corpo.


Quando as minhas palavras não puderam mais ficar escondidas, minha mãe se surpreendeu:

 - Cadê os desenhos? Eu respondi:

-  Não são desenhos! São palavras! Estão aqui, impregnadas na minha pele, como rendas, em um lindo bordado.

- E por que faz isto com o seu corpo, minha filha?

-Ora, mãe. Eu sou um livro aberto!

 

Autora: Valéria Áureo

31/07/2017