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quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

SZOMORÚ VASÁRNAP Domingo Sombrio






É a menina de dentro que ilude a mulher de fora.

As amigas não compreendem o que se passa com ela. Apaixonada, quem pode acreditar nisso? Deduzem que anda esquisita, arredia, sem paciência para os velhos hábitos. Jogar paciência, nem pensar... Uns poucos amigos dos que restaram daquela antiga rotina de devorarem juntos os dias com sofreguidão, ainda a procuram. Os amigos, aos poucos, foram sumindo sem aviso; Perderam-se em sucessivas mudanças os que viviam de aluguel... Uns casaram-se, outros tantos se divorciaram; casaram-se e amigaram-se outras e outras vezes mais...  Alguns morreram. A morte de alguns alarmou os que gostavam da rotina de levantar cedo, ir ao calçadão, voltar para o almoço, tirar a sesta, ver novela e jantar; dar uma volta depois da janta, voltar para a televisão e dormir. É... A vida ficando cada vez mais repetida ou resumida, igual; sei lá! É...  As amigas não compreendem o que se passa com ela.

Anna ouve inúmeras vezes Szomorú Vasarnáp, uma música triste, que a deixa ainda mais melancólica; insuportavelmente melancólica... Influência da amiga húngara, cantora lírica, soprano ligeiro, que a agradava com saraus. É com Tanitoné Lovcsanyné, senhora Lovesani, para simplificar, que Anna pode mais conversar.

A menina de dentro deu-se de parar no tempo e imaginar uma idade tanto tola, tanto generosa, para si mesma. Tornou-se cúmplice das maluquices de quem pensa estar se despedindo de tudo e decidiu parar de envelhecer. Lipoaspiração, botox, preenchimento de rugas... Passou a valorizar todos os comerciais de clínicas de estética. Tratamento de varizes a laser, medicina orto-molecular, clareamento dos dentes, alongamento de cabelos, luzes, hidroginástica, massagem, implantes... Por isso quer tudo que há de novo, de novíssimo; procura tudo na Internet, vive tudo que encontra no caminho até a exaustão: tanto faz se alegria descontrolada, se tristeza passageira, se paixão fulminante, se beleza em frascos e odores em spray... Ah! Feromônios adquiridos em farmácias e sedução garantida, afirma o comercial...  Vai do copo à ultima gota, porque o deserto é bem ali. Anna deve ter ficado louca, diziam os mais próximos. E aquela música, repetida tantas vezes, principalmente no domingo, que é dia mais longo e solitário... Por que ela insiste tanto nessa melodia?

Alguns anos apenas ela se dá, para aquilo que viveu: uma reengenharia, uma transformação em busca da juventude. Alguns anos apenas ela se dará, para o que ainda vai viver. Mas, diz ela, vale a pena correr o risco... Sem tempo para desperdiçar, ela diz. Natural que se ache ainda jovial, quase bonita. Rugas ela diz ter muito poucas; são contratempos, armadilhas que o espelho inventa só para aborrecê-la, se a verdade é que se deteve nos quinze; vá lá, dezesseis anos... Ao menos na cabeça e na imagem que tem de si. Está segura de si e afirma:- O que importa agora é o tempo presente dentro da cabeça; por fora, pouco importa, ou, de um jeito ou de outro, se arranja nas clínicas de estética. Mas considero que tenho no máximo dezessete. E, como todo jovem, quero viver... Repetia aos amigos; quero viver! E ria, ria, ria...

Ah! As gordurinhas fazem parte do corpo que se imagina ainda adolescente, quase infantil. E, é próprio do que se considera jovem estar onde se fazem as tais gordurinhas e as inevitáveis espinhas. Pois, se você olhasse com bastante cuidado, as encontraria bem ali no queixo; isso toda vez que exagera no chocolate, ela afirma convicta dos inconvenientes da idade. Quanto aos cabelos, é verdade que já não eram tão nítidos e abundantes; nem eram mais longos. Nada que um bom especialista em new visage e em coloração não pudesse resolver! Queda de cabelos? Culpa da inquietação, do alvoroço, hormônios e pressa que tinha em viver; quem sabe culpa do xampu de PH errado? - Oh! Meu Deus, eu não tenho mais vinte e cinco anos...

Por dentro se sentia dourada de sol, resplandecente, como se a praia de Ipanema fosse só para ela, para o violão de Vinicius e as poesias do Chico Buarque. Tinha a alma ainda imaculada, porque o pecado ainda não morava ao lado...


 Dores inexplicáveis do coração, às vezes a acometem, mas, quem não tem seus dias de amargura? Ora, um homem mais velho é o ideal para compreendê-la. E ainda há aquelas aflições, as que fazem bater paixões no peito atacado por pedras de gelo. Muitas delas fadadas ao insucesso, mas que devem ser integralmente vividas. Como aquelas primeiras por versos, pinturas, filosofia e amigos, que aos poucos vão se dispersar ao longo dessa história. Não havia riscos em ter tantos amigos... Mesmo porque apareciam e desapareciam de um dia para o outro, restando apenas uns poucos... Os de sempre, é claro. Mas, atualmente, com quem poderia falar de Kafka e o Processo? Quem entenderia Sartre e o Muro, a Náusea? Baudelaire? Nietzsche? Paul Valéry? No máximo ouviria: - Que mulher mais pedante! Até parece que leu mesmo todos eles!...

Anna se sentia tão sozinha com seus autores mortos... Ela sim eternizava os poetas... Trazia-os à vida, especialmente quando chovia. Quando não, ficavam expostos, mumificados em livros nas prateleiras empoeiradas da biblioteca. Os poetas mortos dependem dos vivos para existir; do contrário são exclusivamente papel, livros. Cada dia tendia a ressuscitar um deles. E, do seu jeito ímpar de viver, sobrava quase ninguém para conversar. Ainda podia salvar-se nas tardes com a senhora Lovesani, ouvindo Mesze a Nagy  Erdó (Longe no imenso bosque) ou Addio Del Passato, da Traviata. Falavam de quê, mesmo?... Ah! Dos Concertos no Teatro Colon, em Buenos Aires; nas apresentações na Itália no Lyceum di Milano; falavam de Veneza, no Circolo Artístico delle Vecchie Prigioni; nos Concertos, nas apresentações camerísticas, nas temporadas líricas.

  Os outros amigos a advertiam: - Não devia ouvir tantas vezes Szomorú Vasárnap, domingo sombrio, a música húngara dos suicidas! Anna não se importava, embora achasse muita graça no presságio.
Abraçava todos. Ninguém extrapolava a confiança dela. O respeito vinha do jeito manso de sorrir e falar, porque ela sabia muito bem se cuidar, mesmo brincando sem jeito, tentando falar francês. Não a oprime a saudade das formas antigas; tanto não, que as deseja de volta! Não se demora padecente diante do espelho. Acredita firmemente na sua juventude, como se não tivesse passado. Achou melhor aceitar o corpo como está. E está muito bem, decidiu por si. É a menina de dentro que ilude a mulher de fora. A menina de dentro deu-se de parar no tempo e imaginar uma idade tanto tola, tanto generosa, para si mesma. - Oh! Meu Deus, eu não tenho mais vinte e cinco anos... É... Um homem mais velho há de me fazer feliz!

Afinal, a vida é o que é e está acabado! Além de música, gosta muito dos jornais, principalmente quando reportam a vida como ela é... Anna aprecia as histórias de cada um, grudada no televisor, acompanhando detalhes, ora coadjuvante, ora autora, embevecida com os rumos da narrativa. Afinal, era da vida nua e crua que tais programas tratavam. E, o que ela poderia viver de realidade, trancada no seu apartamento? A vida dos outros tinha graça, movimento, fogo. Os escândalos surgem e desaparecem com muita abundância e audiência. Isto é o tempo presente na sua cabeça... A vida em alta definição!
Daí para cá, ninguém mais soube dela.
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Os antigos amigos, na incansável rotina de acordar, andar no calçadão, almoçar, veem a história de Anna pela televisão. Todos estão aturdidos. Transmissão em HD...  Quem diria? A amiga desaparecida tinha virado notícia de domingo. E, que notícia! Espetacularmente transmitida em close a sua imagem: pele claríssima, sem manchas ou rugas, sobrancelhas erguidas e lábios carnudos! Seus caríssimos tratamentos estéticos tinham valido a pena, comenta a amiga invejosa do sucesso breve da mais recente celebridade. Deu-lhe um belo rosto, conveniente para uma última imagem. Como podia continuar assim, tão elegante, tão bela, mesmo morta?
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   Às três horas da tarde Jonas recebeu a notícia da morte de Anna. Jonas é o nome do homem por quem a sonhadora tinha se apaixonado. A última vez que Jonas esteve com ela reclamou da cor claríssima dos cabelos. Disse que tinham envelhecido seu rosto. Não era verdade! Era exatamente o contrário. Eram inquietantes, ofuscantes fios dourados, contrários aos ideais de sigilo conveniente ao amante. Ela não poderia chamar tanta atenção; ela não poderia deixar fios de cabelos louros; ela não poderia deixar sinais, vestígios de sua presença... Anna precisava ficar ofuscada no anonimato, nos cabelos escuros, no rosto escondido por imensos óculos. Chegar e sair à noite, depois do sol posto, para que não a vissem... Anna precisava abaixar-se no assento do carro. Ah! Quem dera se Anna pudesse ficar invisível!... Era o que pensava o amante.

Jonas também reclamou da fotografia que Anna tinha posto no seu perfil. Não estava bem na foto, alegou... Ria demais, dentes demais, alegre demais, viva demais... Melhor que não tivesse amigos na Internet. E que acabasse logo com aquelas besteiras de blogs. Ou isto, ou o fim do relacionamento.

 Ninguém nunca o vira.  Todos os amigos, aliás, só ficaram sabendo de sua existência no dia em que Anna apareceu nas manchetes dos jornais. Pelo tal sujeito deixara os companheiros de caminhadas, os saraus da Tanitoné Lovcsanyné, as novelas, os programas de “mundo cão” e jogos de paciência. Em compensação, fez da clínica de estética o seu santuário de oração diária. Pelo telejornal Jonas vê atônito o rosto estampado do que sobrou dela. Seus olhos admirados se detêm apenas naquela fisionomia surpreendente. Seu coração dói enquanto ele busca o ar. Estranho!... Ela agora já não tem os cabelos tão claros... E continua tão viva!

Jonas sente-se mal. Falta-lhe a respiração e lhe invade um medo sem tamanho. A fisionomia dela está irreconhecível. Não que tivesse mutilada ou desfigurada pela dor daquela morte inesperada. Ao contrário, parecia mais infantil, mais terna e bela do que nunca. Um semblante afetuoso e pueril que o encantava sempre que a via feliz agora resplandecia. Parecia iluminado, ar translúcido em torno da face que ele dizia amar. Para ele Anna sempre seria uma menina, como naquela tarde em que, radiante, ela lhe mostrou um ensaio fotográfico. Intimamente ela desejava que Jonas lhe roubasse uma fotografia, mas isto não aconteceu. Ela se sentia tão jovem, apesar dos maldosos insinuarem que o fotógrafo tinha sido hábil e generoso no Photoshop.

Dias mais tarde Jonas veria a carta que tinha escrito para ela em todas as manchetes, expondo suas entranhas publicamente. Jonas recolheu-se se esquivando do escândalo fomentado por jornais populares do Rio de Janeiro. Não tinha que tomar posição do infortúnio de Anna. Agora precisava apenas manter-se distante daquela espécie de câmara de acusações, onde ele poderia ser o herói ambíguo desse caso, que fazia pulsar as bases do conservadorismo das famílias tradicionais. Algumas vezes tentou só ser um espectador esperando as horas para entrar à frente de uma multidão de curiosos ou mais um jornalista se revezando para colher os melhores lances. Mas Jonas era parte daquilo que tinha acontecido com ela e estaria, a qualquer hora, desnudando-se numa exígua sala de julgamento. Repetia para si reiteradas vezes: - não era para ela ter-se apaixonado de verdade... E, para ela, insistia em dar o status de amante oculta simplesmente.
O nome de Anna aparecerá na primeira página dos jornais do dia seguinte e, depois de uma semana, no máximo, não aparecerá mais. Todos os amigos terão tempo bastante de revê-la na TV. As fotos do estúdio são realmente belas. Assim, propagadas na tela, dão certo toque de graça à morte... Os escândalos surgem e desaparecem com a mesma velocidade. Anna é o nome que preenche o topo das manchetes como a vítima do mais recente escândalo. Na Audiência todos ignoram o que Jonas pensa dos acontecimentos. Só ele sabe o que se passa em sua cabeça. É o conhecimento da lei, da fria lei que o aflige tanto.
A Lei, a fria Lei voltava à tona, vinha aos miolos de Jonas tão quente como brasa... Existiu de fato razão para aquela morte tão estúpida? Ciúmes, ódio, traição?... Ela não era mais uma menina para se deixar enganar...
O papel de Jonas cessa depois que ele declara tudo o que viveu com Anna. Na Avenida Erasmo Braga, no centro da cidade, o trânsito para em torno do Fórum. Os jornalistas se comunicam com suas bases, dando detalhes dos depoimentos que corroboram cada vez mais com a versão de suicídio. Todos quase unanimemente descartam a hipótese de homicídio. Parece que toda a violência está justificada no desejo de a vítima acabar com a própria vida.

Ao menos para ela, para Anna, era impossível disputar com a jovem morena de cabelos escuros. Covardemente linda... Cruelmente e mortalmente linda. Verdadeiramente linda! Lolitamente linda! As lentes das filmadoras já procuram outros ângulos; quem sabe os olhos verdes e oblíquos de Mércia... Em outras circunstâncias ela seria convidada para posar nua para revistas masculinas, como sempre ocorre com a celebridade relâmpago. Quem sabe não era hora de aproveitar tanta exposição na mídia e levar vantagem?... Era extremamente bela e muito, muito mais jovem que a vítima. Muito conveniente para a alucinação midiática e a imprensa marrom.

No momento em que está diante do magistrado Jonas já passou dos sessenta anos. Trata-se de um homem maduro. Era na idade dele que Anna se fiava: um homem mais velho e um amor sem medos... Não havia riscos, imaginava. Era de fato um sujeito que queria mais do que a seriedade da vida costumava oferecer. A ascendência nobre era abonada pelo matriarcado sisudo, austero, parecendo querer conduzi-lo à monotonia de vida eclesiástica que a mãe possuía; em contrapartida o pai o encorajava a uma melhor vida. Ao menos mais alegre, sugeria. Assim foi desde cedo um jovem que trabalhava, mas transformava os ganhos em bens aproveitáveis. E seriam elas, as mulheres que conduziriam sua vida para aqui e ali, até ser finalmente arrastado para os tribunais. Agora parecia desmobilizado por problemas emocionais. Os opositores que insistiam em responsabilizá-lo pela morte de Anna eram taxativos: - ele a levou ao suicídio!

No momento em que Jonas se coloca diante do Juiz, já se passaram longos meses desde a morte de Anna, a amante. Foi intimado no dia três de fevereiro, exatamente cinco anos depois de tê-la conhecido. Em nenhum dos pontos acusatórios de que Mércia, a esposa de Jonas, foi objeto, aflora a intervenção direta de Jonas. Ele se atém a contar a verdade e não se aproveita para condená-la ou acusá-la com um testemunho rancoroso e vingativo. Quer apenas que se faça justiça e parece sem forças para voltar sua ira contra ela. Mas, o que Mércia teria dito para Anna, momentos antes de sua morte? Por que havia tantas chamadas de Mércia no celular de Anna?

Na antevéspera do seu depoimento Jonas apareceu nas telas da televisão negando todas as acusações que Mércia lhe fazia. Não era responsável por nada daquilo que a moça alegava: sedução, grandes festas para amigos, cercado de encantos femininos e bebidas. Ela insistia no escândalo. Queria aparecer em todos os programas, posar para fotos, vender revistas, comprar um apartamento e um carro. A história precisava render o máximo. Ela exagerava. Ela mentia.
Cada amor que Jonas vivia era único, dizia para si mesmo; época em que existia exclusivamente para a amada. Vivia romanticamente o amor. Ao menos era o que aquelas tolas acreditavam...
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No dia do julgamento reconheceu formalmente ter sido o autor da carta e ter sido o amante de Anna. Confessou ter mentido no seu depoimento para o delegado, quando negara qualquer ligação amorosa com a mulher encontrada morta no apartamento. Na verdade já temia as calúnias e injúrias contra ele, que Mércia fazia circular pelos jornais. Era imoral o conceito que implantava a respeito dele, como se difamá-lo fosse servir para retirar dela toda sua responsabilidade sobre seus atos. Sabia que a esposa não tinha como provar as calúnias, mas as sórdidas insinuações deveriam ferir profundamente sua honra. Tudo aquilo o enojava.

Tudo corre no julgamento para responsabilizá-lo pelas torpezas de um escândalo de grande envergadura, que deixa às claras a vulnerabilidade da instituição familiar. Depois de prestar juramento senta-se ao lado de seu advogado e respira profundamente, como se antecipasse uma sessão de tortura.

O Juiz não tem por objetivo revolver os detalhes da ligação amorosa. Deve verificar se as argumentações da testemunha corroboram com outros indícios para fazer o assassino ser condenado pelo seu crime. A vida privada de Jonas está em jogo porque o advogado de Mércia faz questão de revolver o pântano que sua cliente criara. Age, entretanto, como se tomasse todo o cuidado para preservar a testemunha de maiores constrangimentos:
        - Peço que poupem a digna senhora, perfeitamente honrada, que é a vítima neste caso. Vamos respeitar sua memória. Diz isso com o lábio vergado para baixo em estampado sarcasmo. Então, vejamos como se comportava a nobre senhora: ela frequentava a casa de campo do casal... O senhor dormia com sua amante na mesma cama de sua esposa?!...
            - Protesto, Meritíssimo!
            - Vou reformular a pergunta...
            - De acordo, responde o advogado de Jonas. Já existe bastante publicidade neste caso. Ademais se tratava de uma mulher respeitável. Parece que as partes se entendem, mas o advogado de Mércia usa de extrema ironia para se referir à vítima e se propõe a enumerar as indignidades e torpezas presumíveis de Anna. Jonas se exalta:
          - Não é verdade, senhor! Ela era uma mulher admirável!... Murmura violentamente e é impedido por seu advogado com uma pressão na sua perna direita. Volta-se para dentro de si, declaradamente triste, diante da memória aviltada de Anna. Sente náuseas... Não podia se sentir responsável pelo nefasto fim dela. Seu advogado o aconselha a só responder às perguntas do Juiz, sem se ater ao que fala o advogado de Mércia. Há várias semanas as cartas publicadas de Jonas ganham a companhia de suas fotografias. O rosto sempre sério, as sobrancelhas levemente erguidas dando-lhe um aspecto inquisitivo, como se estivesse se perguntando por que tudo aquilo estava acontecendo com ele. Não merecia ser castigado assim pelo simples fato de amar uma mulher...

-         Quais eram as suas relações com a senhora Anna?

        -    A princípio era minha Ghost Writer... Aos poucos nos envolvemos e acabamos apaixonados. Tornou-se minha mulher, embora não vivêssemos juntos. Eu sempre dizia para ela que eu era seu marido. Dizia que ainda viveríamos juntos... Ela gostava de ouvir isto. Era romântica, sensível e muito carente. Sentia-se segura e correspondida nos seus sentimentos. Ela sim era minha mulher... Na sala de audiências há sorrisos irônicos. Murmúrios arrastam discretos comentários: Idiota, não passava de uma vagabunda!... Vagabunda e crédula. Algumas mulheres que compõem o corpo de jurados estão inquietas em suas cadeiras. Parecem incomodadas com as declarações de Jonas que narra pormenorizadamente a existência dessa relação que foi, pouco a pouco, se tornando tão íntima e prazerosa.

- Com que frequência se encontravam?

       -  De início foram poucos e breves encontros. Nós nos amávamos nos compreendíamos, nos completávamos. Nós juntos nos ajudávamos e podíamos suportar os revezes da vida... Falávamos coisas compreensíveis um para o outro. Era uma mulher com quem podia ter amor, prazer e horas e horas de conversas... Anna tinha suas tristezas e seus mistérios. Dizia que precisava deles para escrever, para sobreviver. Eu tinha os meus...

- Mas, e a carta que o senhor lhe enviou?
        - É o que está ali publicado em todos os jornais. Foi consequência de um dos nossos telefonemas. Levamos muitos meses só nos falando ao telefone, sem nos conhecer pessoalmente. Tínhamos prazer em nos falar por horas intermináveis, no meio da noite. Acabamos com a solidão que sentíamos. Até que um dia eu me inspirei em escrever. Era o que eu sentia...

        O primeiro depoimento de Jonas já servia de alguma forma para se deixar conhecer. A voz impressionava... As palavras firmes e a sua postura lhe garantem dignidade.. E é digno de fé o seu breve discurso sobre a forma como se conheceram. No momento em que faz suas declarações já é uma celebridade. Uma editora acaba de comprar por um preço elevado as suas “memórias” Tal preço já se justifica como um bom investimento, pois a tiragem dos jornais aumenta assustadoramente. Todos afinal publicaram a carta que os mais românticos acabaram por decorar. Uma carta convincente, capaz de encantar. Os jornais, a princípio temeram difundi-la, receando um processo por difamação. A partir do momento que Jonas assumiu tê-la escrito e autorizou sua divulgação, não representou mais perigo. A carta “À minha querida...” produz efeito, apesar de tudo.

          Por si só a carta não compromete em nada, a nenhum dos dois; nem a Jonas, nem a Anna. Afinal chama “querida” a toda mulher... Nunca diz a ela seu nome; apenas “querida”, como se fosse um cuidado para não pronunciar o nome errado, para a pessoa errada. Depois, trata-se tudo aquilo que escreveu como resultado de projetos e intenções que ele discorre no texto da instigante missiva. Na carta não havia menção ao nome de Anna. Apenas “à minha querida”. Uma carta muito, muito  perigosa para as incautas.

De qualquer forma o Ministério Público tem claros os indícios que podem fundamentar o crime, com base nos ciúmes e na declaração da jovem esposa Mércia; indução ao suicídio?

           - Sim, afirmou Mércia, eu telefonava para ela e a chamava de velha ridícula! Ela era uma velha! Uma velha que não sabia o seu lugar. Ela não tinha autocrítica. Uma velha horrorosa, ridícula! E se achava uma menina...

O idílio a partir do primeiro depoimento fica confirmado. Partia-se do universo das abstrações, dos desejos e das fantasias de um homem apaixonado, para a sua efetiva confissão:

             - Sim, Anna era minha mulher! A minha vida era tranquila, até que Mércia se deu conta de que eu tinha alguém. Mas, eram tão diferentes... Mércia tão prática, objetiva, decidida, realista, seca! Anna tão romântica, tão sonhadora... Então?Como explicar esse amor tão doido e desencontrado, se quem os vê confere que não combinam quase nada um com o outro, quando estão separados, mas juntos criam uma terceira forma de ser: nem a dele, nem a dela, mas um desempenho dos dois juntos num novo jeito de ser, onde se recriam como se novos e outros fossem. Então, é assim que ela passa a ter um jeito de sorrir que foi feito para o jeito dele acolher. Forma insinuante que o deixa imobilizado, o beijo dela doce e prolongado como são os dos jovens... Tão avassalador, como foi o primeiro beijo. Ele fica tonto se não se apodera da boca da amada, enquanto ela adora e finge brigar porque está atrasado ou esqueceu-se do encontro marcado. É ela quem briga e é ele que adora implicar, fingindo que se explica e confundindo mais a cabeça dela... Já dizem até que foram feitos um para o outro. Pois então... Isso tem nome parecido com o sentimento de amor.
As amigas agora concluem: - Anna amava aquele cafajeste! A mulher dele acabou com ela, isto sim! Também diriam muitos que leem sua história nos jornais, contrariados ou invejando as grandes paixões que Jonas carrega nas costas. Tem um passado negro, esse Jonas, como dizia a primeira das mulheres; um passado negro... Culpado! Os homens asseguravam aflitos, querendo salvar as filhas e irmãs daquela óbvia tragédia. Paixões por todas as mulheres que encontra; mulheres da idade dela, mais novas, mais velhas, enquanto Anna vivia acreditando que precisava dele para respirar. Ele dizia, com certeza que iria ligar e não ligava, enquanto ela não saía do lado do telefone e a pouca juventude ia se esvaindo vertiginosamente ao lado do aparelho mudo. Nele não havia pressa para viver. Nunca saía com ela em lugares públicos... Ele escutava Ella Fitzgerald em Sugar Blues e se emocionava e chorava como um menino, não sabendo muito bem a razão... Ele tinha alguma aptidão para compreender as tristezas de Anna, mas não poderia ser um príncipe encantado que viesse resgatá-la; mas ainda assim ela não conseguiu desvencilhar-se dele. Ele ouvia saxofone enquanto ela escrevia seus poemas; e aí sim passavam a ser aquela terceira pessoa tão harmoniosa... Nem um, nem outro, mas aqueles dois que se davam tão bem. Os dois juntos. Por que Anna amava esse cara? Não via que era um cafajeste?
Ah, o amor, esse desassossego, esse mau presságio, essa maldição!... Ainda vai acabar com sua vida, foi o que a amiga confidente sempre repetiu, pensando protegê-la, antecipando a imagem do desfecho. Tanto que avisei!... Declarou para o jornalista. Mas o amor acontecia independentemente de nós, ao acaso, por empatia, por aflição, por desespero, por glamour, por bruxaria ou conjunção estelar, não se sabia dizer; tenta entender a amiga. Ama-se por muitas razões incompreensíveis: pelo cheiro que a pele do outro tem, e ninguém mais percebe; pelos mistérios que dele vêm com os movimentos e os lábios, pela calma que o outro lhe dá ou lhe tira, ou pelo tormento que o outro provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos se envolvem, pela fragilidade ou força que se revela quando menos se espera. Ama-se, mas o amor é indefinível. Quando se ama, ninguém se dá conta da própria idade... Jonas repetia para si um milhão de vezes: ela se sentia tão jovem e feliz... Eu não queria que ela morresse! Não era para ela ter-se apaixonado de verdade!...
É a menina de dentro que engana a mulher de fora. A menina de dentro deu-se de parar no tempo e imaginar uma idade tanto tola, tanto generosa, tanto eterna para si mesma. Parece que preferiu parar no viço que ainda lhe restava.
Mércia tinha dado o tiro certo, incitando-a todos os dias, desde que descobriu o caso do marido. Ligava no meio da noite, gritando inúmeras vezes ao telefone: - Você é uma velha! Não vê quanto está acabada? Acabada! Velha ridícula! Ridícula! Toda esticada!... Assim também foi a última ligação feita para o celular de Anna.
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A menina de dentro deu-se de parar no tempo e imaginar uma idade tanto tola, tanto generosa, para si mesma. Ouviu a mensagem de Mércia pela última vez. Desligou o celular. Ligou o som e colocou sua música preferida: SZOMORÚ VASÁRNAP. Abriu lentamente a caixa de calmante e engoliu um a um os comprimidos minúsculos. Depois disso foi só o tempo de adormecer.

  No Domingo Sombrio, mais uma morte prosaica.

Suicídio! Declaravam os jornais em nota minúscula do dia seguinte. É o que ficou definido, liquidando de vez o assunto. Não houve incitação ou induzimento ao suicídio, como queria o promotor.

No dia seguinte a morte suspeita de um senador e uma modelo em quarto de Hotel de luxo era a nova ocupação da mídia. O resto da mídia se ocupava das eleições para presidente da república.

Mércia logo posou nua para uma revista masculina e a vendagem foi estrondosa. Atualmente está cotada para o próximo reality show e fechou alguns contratos de propaganda de cosméticos. É o tipo ideal para produtos de beleza. Parece que guarda a juventude eterna. Namora um jogador de futebol da Espanha e vai constantemente à Europa divulgar uma clínica de estética. Comprou um triplex no Recreio dos Bandeirantes, uma casa em Angra dos Reis, um carro blindado e nunca mais soube de Jonas. Quando se fala no assunto ela aprecia solenemente seu Veuve Clicquot La Grande Dame 1995 e diz não saber de quem se trata. Ela afirma categoricamente: - Era apenas um velho. E não suporto velhos!
É a menina de dentro que ilude a mulher de fora.

Autora : Valéria Áureo  in Fragmento do livro - Do Secreto ao Indiscreto
Rio / 2008 - To: Anthea Claudia ( cantora lírica -soprano)