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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Dos Arcos à Travessa dos Poetas de Calçada






Travessa dos Poetas de calçada. Hoje eu estive lá... Verdade. Estive lá! Não, melhor dizendo, outrora vivi tantas noites ali, em horas aproveitadas nas incontáveis luaradas, bêbado tremulando pernas e ideias noviças em minha juventude. O corpo naquela ocasião pedia todas essas irresponsabilidades que acometem os rapazes. Não sei muito bem por quantos anos seguidos andei alvoroçado atrás de belas mulheres, porque era ali que elas povoavam de fascínios as janelas e meus desejos; elas atrevidas, trazidas de todos os cantos da Terra.

Travessa dos Poetas de Calçada, bem composta à Rua Senador Dantas, junto com as mil lembranças misturadas dentro da cabeça que não mais sabia qual esquina habitar. Não sei ao certo o lugar da cidade, quando distante dela, de olhos fechados... Do outro lado a Lapa! Tantos lugares... Sei que eu me sentia bem naquele encontro da esquina com a alma da Cinelândia e um remoto adocicado de uvas. Sim, ali mesmo, onde tanto percorri até me doerem as pernas... Eu amo essa rua batizada pelos milhares de canecos de vinhos e cervejas que emanavam das inspirações das penas e das longas noites de orgias... Saudáveis noites de contemplação divina. Um copo meu, ao menos, um poema meu, ao menos. Um amor, ao menos, pensava que era meu... Quem não se abatia mortalmente satisfeito na cidade enluarada, voltando-se sensual para os Arcos? Eu sonhando servi também para dar nome à rua com minhas carraspanas justificadas nas incontáveis paixões. Ora uma, ora outra a me arrebatar os sentidos. Servi ao beco, à Travessa dos loucos com meus arroubos e gargalhadas com iguais amigos, por onde devíamos nos esconder. Tudo juvenil e permitido.

É íntima esta infidelidade do beco dos poetas ora comigo, ora com outros, traindo-nos a todos como uma volúvel cortesã. Também o traí, devo confessar, porque o deixei há certo tempo, depois que os idílicos poéticos se afastaram de minha cabeça. Infelizmente fui me tornando com a maturidade um homem sem sonhos, sério, apático... Eu me mudei de lugares e mudei minha rotina Tudo por culpa de uma ilusão, que eu cri mortal e do remédio do tempo. Depois de muitos anos acabei sucumbindo aos apelos das noites enluaradas e violões.

Mais um Zé eu sabia que era. Tinha nascido assim: José, nascido em Viana do Castelo, em uma cidade que fica ao norte de Portugal e que se chama Minho; torrão também encravado na memória e eu chorando a infância, pois se tratava mesmo de um minhoto nato, apaixonado de Portugal, nascido um Cerqueira Lima por raiz da mãe, avós, bisavós. E o que eu fazia aqui então?... A mãe da minha mãe era Aninha; era o nome famoso dela. Aninha era Ana, mas o sobrenome dos mais antigos suspeita-se Carvalho; não se sabe ao certo. Donana, Donaninha... Branquinha, clarinha, pequenininha, dos olhos muito azuis. Vieram todos para cá e eu já fora da barriga, carregado pelos braços dela. A família não era famosa, era humilde da qual as pessoas falam muito bem, que tinha o nome a zelar, por causa da honestidade, mas que não tinha muitos bens materiais; eram pessoas simples e eu realmente só vim a conhecer pelo que falaram os mais antigos. Tantas terras eu deixei por lá sem percorrer, para me entregar aos prazeres das ruas daqui, pelo prazer de correr a cidade, na esquina do Beco e à sombra dos Arcos... Tantos foram os lenitivos do álcool e favores que consolaram meu coração e hoje a rua não me reconhece. Devo confessar que eu também não a vislumbro com os mesmos olhos. Agora o que me toma é uma dolorosa nostalgia, lembrando-me o quanto estou velho, o quanto a vida fez o que bem quis em mim. Um apaixonado, certamente. Também vejo a rua cercada por construções esquisitas, contrastando com sua arquitetura de meu tempo de risco só de navalha e soco na cara, nada mais. Tudo em torno emoldura a Travessa; atravessa a minha memória como se contivesse na mão aquele último copo de vinho, a mesa recoberta pela toalha branca de linho desfiada nas pontas manchadas de azeite e brumas. No centro o prato de fiambre e minhas mãos ainda firmes em torno do garrafão do vinho tinto, enquanto eu não ficasse bêbado. Mágoas... Verdadeiras feridas mal cicatrizadas em torno dele; é... Feridas do meu machucado coração. Confundiam-se as nódoas de vinho, as queixas que serpenteavam os adornos das mulheres da mesa ao lado. Fiteiras, todas elas... Nunca pude confiar. Alcoviteiras! Minha rua mudou-se quase de lugar entre estranhas edificações... Veio toda ela para dentro de mim, se cá fora não a encontro mais. Não era assim no meu tempo; quase não a reconheço tão afrontada por arquiteturas indiferentes ao seu glamour. Esse sentimento de natureza toda íntima não seria revelado por mim se não julgasse que fosse fazer muita diferença, mas faz. Puro amor pela cidade! E razão eu não tenho para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado ao antigo lugar é partilhado por todos os que perambularam perdidos pelas pedras daquele canto da cidade... Tanto caminhei sob os Arcos da Lapa, que acabei sem saber onde fui parar. Por certo não diviso os meus amigos. Tantos mortos eu tenho amealhado nesta maldita vida. Nós somos irmãos nisto, habituados a nos perder... Mas nos reencontraremos na Lapa, tenho certeza. Vamos morrendo pelo caminho, mas... Nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, confusos com a lei e a polícia, as gangues e as quadrilhas, mas porque nos une a vida em certo tempo, nivela e agremia o amor daquela antiga rua dos poetas. Batizamo-nos nas luaradas em plena nudez exposta aos olhos no meio da noite, no meio da rua. Ela nos aleita indistinta e ternamente, dias sem fim, feito uma mãe carinhosa que expõe o seio farto. Ela nos irmana... Depois, de uma hora para outra, nos atira a todos em direções opostas e assim nos perdemos uns dos outros. Nem tivemos tempos para as lágrimas de despedidas e o conforto de braços nos apertando num derradeiro contato. Quando nos damos conta estamos a milhas e milhas de distâncias dela e uns dos outros. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma. Tudo varia; mesmo os sentimentos como o amor, o ódio, o egoísmo, o ciúme. Hoje é mais amargo o riso, é mais doloroso suportar a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Alguns persistem nas folhas amarelas de jornais e em detalhes de alguma fachada de casarão no centro da cidade. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua antiga, da cidade antiga e seu aqueduto. Não saberia dizer como as coisas começam, apenas quando se vê, elas cá estão dentro da alma. Eternos Arcos da Lapa. Não se pode mais conceber a vida sem aquele prazer de andar pela cidade e suas sombras. Onde foi parar o paladar daquela bebida suave aromatizada pelo prazer da juventude? Onde foram parar todos aqueles que estiveram comigo, os meus amigos, nas vesperais nuas pela cidade? Antes da Travessa, do beco de bêbados inocentes ou patéticos, de meninos buscando a noite. Onde foram todas aquelas mulheres sorridentes?

A rua nem é a mesma, agora me dou conta de que tudo acabou! Nem é mais minha... Nem eu sou o mesmo. Mas os Arcos da Lapa estão lá!

Qual é a rua que me consola, mesmo sem seus vinhos e suas jovens mulheres? Qual rua me entristece, mesmo sob a lua? Qual rua me comove agora? Qual a rua do meu entendimento ou do meu esquecimento se é o que me dói mais fundo na alma?

A rua é um punhal afiado que me degola a garganta, eu sinto... E me dá vontade de chorar.

- Eu já lhe disse que a Travessa dos Poetas de Calçada tem a minha alma?


Autora: Valéria Áureo


To: Hubert Áureo Fonseca  
In: Pretextos Para Tomar Vinho

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