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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O Andaime



Era bem o dia amanhecer e o corpo de Pedro, mastigado pelo peso de baldes de cimento, pendurado em uma frágil gangorra, já denunciava a hora de acordar. Os músculos ardiam, os ossos pesavam antecipando a precisão do relógio fixado na parede por um grotesco prego enferrujado, prefixo do adorno na parede, par com o crucifixo em cima da cama, que atravessava o quarto... O próprio relógio fora encontrado abandonado num latão de lixo, luxo para sua casa. Funcionava e bem. Foi só dar uma limpeza e colocá-lo ali. Assim repetia a rotina de todos os dias no rodízio de ponteiros disciplinados. A vida se resumia na circunferência infindável sem misericórdia: fixar os olhos mornos no relógio, constatar a dor nos braços, levantar-se, preparar-se para sair. Sair... Com fome mesmo. Sair com passos cansados, a cabeça pesando, quase sem abrir os olhos declinados nas pálpebras pesadas. Passar no boteco da esquina, pendurar na conta um pingado, um pão na chapa, engolir, tossir, piscar, reclamar, correr até o ponto, atropelar-se na correria dando encontrão com outros e jogar-se no primeiro assento livre do ônibus. Fazer do assento público um improvisado leito. Aí sim, podia cochilar até o seu destino. A obra ficava na Rua Marquês de Abrantes, no Flamengo. A empreiteira era composta de poucos pedreiros e o resto mais se inventava. A rede de proteção, azul, rasgada, misturada à cor do céu, dava a ilusão de que se protegiam; ao menos acima da rua rendia-se ao mundo a pequena estatura dos homens. Mas nada disso passava pela cabeça de Pedro rendilhada no falso azul. Ele simplesmente acordava e ia para o trabalho, sem pensar muito no resto das coisas. E havia coisas para se pensar?... Ia, trabalhava, se cansava e voltava para casa. Pura rotina. Ainda bem; falava, tinha um serviço, o resto não era para pensar, não era problema seu, contentava-se, porque o trabalho lhe bastava... O reboco já não se sustentava sob a força da erosão, era isso que tinha para resolver, sem muita complicação; sabia fazer e pronto. A empresa nada mais dava que uma gangorra que se sustentava magicamente no ar. Ali ele ficava desafiando o infinito, escoltado unicamente pelas nuvens, deixando-se à mercê do vento que vinha do mar. Enquanto ele descia pelos dois fios amarrados numa tábua presa em uma corda, um outro operário tratava de lhe mandar outro balde cheio de cimento, apressando-se em recolher o vazio. Mandava-lhe água, pincel, pá e tantos apetrechos de que precisasse. Pedro, pendurado, lembrava uma aranha em sua rede de fios translúcidos à espreita de moscas; ele, arremedo de gente, porque não sabia bem o que era, ficava parado, olhos fitos no nada, espreitando o ar, coisa nenhuma, só para compor a cabeça vazia de ideias, oca de pensamentos, nos intervalos da vida, enquanto aguardava mais outro balde. Existia ali, pendurado como a aranha de olhos fixos na mosca. Vivia grande parte da vida suspenso, como uma respiração aflita, nos fios azuis. O que tinha que fazer era garantir a eternidade daqueles fios que o mantinham pendente na vida, no espaço, no vazio, atado a coisa nenhuma. Descia, andar por andar, controlando os movimentos da gangorra com um só braço, enquanto o outro tratava de retirar a camada de massa envelhecida, inútil, danificada e podre. Era só raspar, colocar a massa fresca, aplainar, alisar e assim prosseguir horas a fio, de pedaço em pedaço do prédio, na imensa vertical, balançando nas alturas do vigésimo andar e vir descendo, descendo, descendo. Isso sabia fazer, assoviando, cantando, rindo e o resto não devia ocupar sua cabeça sempre serena, sempre voltada para cima. Parecia engessada no pescoço esbranquiçado pela cal. Um braço livre para manobrar a corda, ajeitar a tábua do assento da gangorra apoiada no nada. Pendurado no infinito sem ter noção da sua finitude... Não concebia que era vulnerável, apenas assegurava-se de que existia porque abria os olhos de manhã e acordava, respirava, se mexia... Pedro não sabia, ou não queria saber que um vento mais forte, um som mais alto ou um susto poderiam fazer dele o nada. Nada esparramado na calçada, nada nas manchetes dos jornais, nada na Rua Marquês de Abrantes, nada para o patrão, nada mais no mundo, só mais um operário despencado das alturas, sem asas, sem voo, sem aspirações; quando muito, um corpo coberto por um plástico preto. Um braço preso e o outro condenado a segurar eternamente a pá de pedreiro no alto, erguendo o peso do cimento sempre além da altura do ombro, provocando uma dor irrefreável. Um braço para sustentá-lo no ar, guardião do corpo e da vida. Era este o seu trabalho e seu destino. Mesmo assim ria, cantava e assoviava. Folgava só no domingo Domingo era o dia de sua escolha. Fazia-se livre e ser quem era. Podia ir ou ficar. Dormir a mais se quisesse. Nada de cordas a transformarem o sujeito na marionete da vida, o boneco amarrado em fios, que era condenado a ser de segunda a sábado. Domingo, não. Pedro no domingo era gente e podia contar com o corpo inteiro. Podia fazer o que bem quisesse. Dormia bem mais que o relógio condenava na semana, acordava sem pressa. Só corria mesmo era para ver Teresa, livre naquele dia, como ele, dona de si, sem a patroa a dar-lhe ordens. Podendo ser mais, bem mais que nos outros dias, os dois tratavam da felicidade e do prazer sem contar horas.Corria para Teresa só para ter mais tempo de ser feliz, só para ter tempo para amar, para ter livres os dois braços, sem cordas, sem andaime. E os dois se amavam, sem o compromisso e as amarras da vida, sem a severidade do relógio sustentado por um prego enferrujado. Dois braços livres para envolver, para abraçar Teresa, tão livremente sua, que isso só podia ser chamado de felicidade. Amavam-se todo o domingo sem pressa do dia acabar, sem fome, sem ouvir o som do relógio, sem olhar para o alto dos prédios. Só viam diante de si, um ao outro, olhos na mesma altura, nivelados pelos ombros negros, lavados, limpos, sem o gesso da vida de trabalho. Nivelados pelos desejos, pela mesma vida dura. Donos de si e um do outro, só um dia na semana. O máximo que podiam deslumbrar diante de si eram telhados baixinhos dos arremedos de casas, barracos de papelão. Mas, eram livres sem a rigidez do concreto ou das ordens dos patrões. Eles eram gente. Apesar da felicidade de um dia só na semana, Teresa deu para cismar... Queria ter uma aliança. Só para mostrar que era dona dele e que a ele pertencia. Era um desatino esse querer inesperado, um vício a pedir sempre a mesma coisa. Nos outros dias da semana a vida mandava neles. O patrão mandava nele, a patroa mandava nela... As cordas manipulavam, o concreto armava e esmagava. Os prédios obrigavam-no a olhar para cima. A voz da patroa, os gritos, os lamentos perseguiam a cabeça de Teresa a semana inteira. Por causa de tantas amarras ela cismou de ter uma aliança. Não uma qualquer. Uma que libertasse, uma que denunciasse, proclamasse a sorte do domingo... Queria uma aliança de ouro, gravada com seu nome e o dele, que brilhasse quando ela estivesse lavando a louça. Sim, que brilhasse sob a espuma e refletisse o riso da boca ardente de Teresa, para a patroa ver que ela era casada e era feliz. Que brilhasse pela beleza do ouro e dos beijos, dos abraços. O símbolo da fidelidade de Pedro. Uma aliança que brilhasse pelo amor quente do sexo feito só nos domingos. Nem queria que Pedro tivesse uma, porque ela não brilharia no opaco da cal, no cimento, na poeira das obras. Ela queria a sua, para refletir o brilho dos seus olhos. Uma que se confundisse com a luz da felicidade. A patroa se queixava de solidão, mas Teresa era feliz, tinha um amor e queria uma aliança para esfregar na cara dela a sua riqueza... Teresa cogitou, repetiu, pediu tanto que cansou Pedro... Repetiu tantas vezes a história da aliança de ouro, que o domingo começou a ficar pequeno, pequeno, pequeno.O dia veio e repetiu-se no invariável das segundas-feiras. O andaime do tamanho da gangorra, onde cabia só um homem, descia lentamente, até parar na altura do apartamento 906. Um braço apoiado na corda, o outro pescando a massa de dentro do balde e a cabeça quente, fervilhando de tristeza, porque o domingo tinha ficado menor. O dia ficava sempre pequeno toda vez que Teresa ficava magoada, cismada com alguma frustração. Teresa não tinha luxo algum. A vaidade recente era a aliança de ouro brilhando como estrela em seus dedos macios de tanta espuma. Uma aliança gravada com o nome deles, só faltando isto para ser feliz e para o domingo expandir-se em amor. A gangorra parou diante da janela aberta do nº. 906. A janela aberta mostrou uma moça sorrindo. Lá de dentro a moça sorriu para ele elogiando a sua coragem de estar pendurado tão alto. Perguntou se ele não tinha medo de cair. Falou da força dos braços dele, ofereceu-lhe água, café, que ele timidamente tomou. Quis saber o nome do moço forte e corajoso e Pedro sorriu na brancura dos dentes e da cal em seus ombros doídos... Foi com muita calma que trabalhou toda a manhã naquela parede externa do 906. E, enquanto trabalhava, pendurado na corda, a moça contou-lhe a vida, o nome Beatriz... Sorriu, cantou, seduziu, ofereceu-lhe o almoço e sugeriu que ele entrasse para descansar. Ele, que sempre parava ao meio-dia, acolheu o convite da moça sorridente que fazia confidências no mínimo quarto. Ela falou da vida, das queixas contra o marido que tinha partido, das mágoas, do pouco dinheiro, do abandono em que vivia. Falou de sua solidão. Disse que estava mais magra de tanto sofrer, que era mais bonita quando estava feliz... Era mais roliça, mas agora estava mirrada de tanto sofrer. Foi para a cozinha, arrastando atrás de si o moço, onde ela lavava a louça delicadamente, fazendo bolhas coloridas de sabão, repartindo arco-íris e coisas íntimas, que só ela sabia; dividia com ele a fala e os sorrisos e a falta de destino... Pensava em cometer desatinos... Conversaram muito e logo estavam tão íntimos que puderam se beijar naquele apartamento do Flamengo, enorme e pleno de solidões... Ali puderam ficar toda a tarde, sem que ele se lembrasse das cordas do andaime, das sacas de cimento, dos carrinhos de brita, tão leve se tornou a vida que ficou imaginando ser domingo. A moça se esqueceu de todo o resto da existência e entregou-se ao amor que entrava pela janela, como uma viração forte prenunciando temporal. Entregou-se ao amor que vinha do alto do prédio, alado desvario, amparado por um braço forte. E foi a primeira vez que a segunda-feira foi curta, livre, sem amarras, ao menos para ele. Adormeceram na tarde de segunda-feira, depois de se amarem como se fosse domingo. Naquelas breves horas ela bem pôde se lembrar da felicidade; como vinha e como acontecia. Ele acordou antes dela, acariciando lentamente a mão esquerda da moça, onde uma aliança larga, brilhante, bailava na magreza dos dedos finos e jovens da mulher que sofria... Acariciou os dedos dela, ainda com as mãos ásperas de cimento. Sorriu com todos os dentes, tão branco o sorriso quanto a cal de seus ombros e suas origens. Saltou feliz como um pássaro em voo, de volta para sua gangorra, levando consigo o anel que tanto brilhava sob a espuma repartida em arco-íris de bolhas de sabão. 
Ah! O símbolo da fidelidade! Um braço veio preso ao fio por onde ele descia até o chão. O outro vinha livre, livre, livre acenando com alegria um silencioso adeus.  

Autora: Valéria Áureo

                                                                                                                                                                      


Por conta da terra a semente

                                                        Ilustração: Internet




 


Sempre aconteciam coisas com todo mundo e a toda hora, não importava nada que se fizesse: o país e sua política; as pessoas e o quanto tinham comido; o tempo e se chovia, ou que estação do ano era perfeita para se viver melhor. Aconteciam coisas simplesmente. Com Anna não seria diferente, porque a vida tem seus feitiços, seus contra gostos e esquisitices. Só para se fazer importante, a vida, depois de apagados os anos na memória ávida, se faria recordar, toda importante, sob um holofote de luz azul. Então ela poderia dizer: sim, se me lembro bem, foi naquele ano...

Ontem era o dia em que a menina acordava esquisita, prestes a... Não sabia a que. Prestes a ter um treco, um troço... As costelas arriadas para frente só para acomodar os dois pequenos peitos em duas gavetas de ossos. Pura cautela para que não vissem as novidades que se anunciavam aos olhos. Beleza de menina nascendo nas estações das chuvas, para dar um tom de flores naqueles olhos cinza d’água. Beleza aflorando de duas caixetas de carnes minguadas... Achava estranho aquilo que nascia dando-lhe condição de animal do gênero feminino e espécie mamífera. Fera, como todos os animais desde que notou o motorista apalpando-lhe as formas nascentes com olhos tendenciosos e perdidos naquela inocência de ainda brincar com os meninos sem os pais se afligirem. Pois era mesmo criança, de querer doces fora de hora e fazer barulho e inconveniências, para ela algazarras tão lindas e leves como embalos das gangorras e para os mais velhos tão desagradáveis. Ia assim se fazendo corpo inteiro em meio às dúvidas da avó e das tias... Mas quando será mesmo que ela vai crescer?

Anna não sabia quando iria crescer; nem mesmo queria, porque não podia comandar aquilo que acontecia com os ossos das faces, deixando distantes as formas arredondadas para imagens de espelhos estrategicamente pendurados na parede e onde se via de relance, só de vez em quando. Ia adquirindo ângulos. A menina resvalava os olhos um pouco pelos espelhos, para apreciar o que via; outro tanto para lamentar o desgosto que lhe davam os brinquedos e as conversas dos meninos. Tinham ficado bobos, tão infantis que queria era fugir para casa e deixar as brincadeiras de lado. No espelho, de soslaio, porque não queria se ver plenamente, ela pressentia: os amigos se distanciariam aos gritos da mãe já muito aflita com as meninas maiores que não podiam mais sair. Deixava-se por conta do destino dar pelos claríssimos às minúcias mais impensadas e recônditas do corpo; fazia-se numa exatidão de curvas delicadas e alvas, um molejo nas cadeiras, que agora sabiam dançar quando ela andava. Nascia apesar de ela desejar o contrário, uma atrevida escultura na arquitetura até então vazia de ondas, sempre atada ao quadrilátero exato de braços paralelos ao tronco. Irrompia pelos limites das linhas uma demarcação de formas novas e alvoroços, que saíam de dentro da alma outrora tão quieta. Nem se reconhecia mais nas antigas alegrias de amanhecer pensando em seus brinquedos e livros de histórias. Para onde mesmo tinham ido as fadas?...

A mãe aflita de uns tempos para cá, a saber, onde e com quem estava, guardando os passos de Anna que dizia não querer crescer, mas mesmo assim ia, ia, ia... Ia se fazendo parte por parte. Mas quem podia com a vida? Ela e os seus desatinos de comandar tudo que vai pela frente e fazer da pedra o pó, da fruta a semente, do novo o velho, do alimento o que se expele. Nada, nada como era antes... Era assim mesmo a vida. Anna se encantava com o que via e dizia que folhas eram cabelos desarranjados de árvores despenteadas. Anna que deixava vazios os galhos da goiabeira, devolvendo aos passarinhos o que suas invenções roubaram. Anna que tirava os pobrezinhos dos ninhos pelo prazer de atiçar as mães, ou colaborar com elas, enfiando-lhes goela abaixo miolos de pão com leite. Agora a árvore, os pássaros, as folhas ressentiam-se das ausências dela, porque a infância ia ficando sem graça. Onde mesmo foi aquela menina?

Anna engendrou-se enigmática no hábito de deixar as coisas como estavam e como eram. Isso desde o dia em que morreu em suas mãos a andorinha coberta de piolhos que tentava alimentar. Enfiava-lhe, em vão, pão e leite na desproporcional goela entre seus dedos que tendiam a apertar, embora ela desejasse afagar. Salvar e estrangular eram duas disposições simultâneas e incontroláveis que se misturavam no gesto franciscano de recolher os animais aos seus cuidados. Não houve jeito e a ave acabou-se inerte depois de devolver toda a papa embutida no afã de salvação. Daí em diante sabia que semente era para ser semente, já que era para isto que tinha sido feita. Tudo, enfim, era para o que tinha sido feito, apesar dela. E, apesar dela, dali por diante, o que acontecesse seria por conta da terra, caso se considerasse a semente. Era destino se fazer brotar em vida ou extinguir-se em infertilidade, mas nada que dissesse respeito à menina. Nada mais teria sua ajudazinha; nem mesmo jogar a semente na cova, pois isto era já coisa de Deus e, “se Deus quisesse.” Se Ele quisesse que ela, a semente, brotasse planta. Se não quisesse, aquela semente de laranja iria direto do prato para a sacola de lixo. O caminho dali por diante de encontrar leito ou cova, já não era da sua conta; não era para Anna interferir, a menos que quisesse uma laranjeira plantada no xaxim de samambaia, bem no canto da janela que dá para a rua. Por conta da morte do passarinho, sem sua vontade, tinha perdido por completo as aventuranças de interferir, fazendo coisas que não eram de seu domínio. Não podia, nem mesmo em benefício próprio, continuar menina no mesmo corpo, pois nada mais obedecia a seus desígnios; nem o corpo e nem a alma...

Com o coração fazia o mesmo. Deixava pra lá... Deixava-o posto dentro do peito, que é seu lugar e onde devia estar. Se quisesse alguma coisa, ela não interferia, não escolhia, não dava palpites... É... Não palpitava o coração... Ele que se aventurasse entre conhecidos e desconhecidos, porque a razão não dava sinais de vida nessas horas. Assim mesmo, nunca aconteceu de ela se apaixonar. Mesmo assim ela esperava ansiosamente por surpresas, pois estranhamente começou a apreciar os meninos.

Hoje cresceu como tudo cresce nesta vida Crescer foi um salto no tempo de cinquenta anos, recheado de escolas, matemáticas, línguas, piano, namoro, promessas e desencontros. Casou-se, porque a ela cabia seguir a fortuna das moças... Nem escolheu muito, ocupada que estava em ler seus livros de culinária e o de inteligência emocional. Os primeiros para sustentarem o corpo e o segundo para estabilizar a cabeça. Escapava da falta de amor e do acre destino de servir mesa, como bem podia; mas a fatalidade podia mais. Assim, sem que pudesse muito interferir, lá estava ela na bifurcação de duas cidades da zona da mata mineira, gerenciando os negócios e a vida, sem o encantamento e o prazer de estar na sua sala.

Anna engendrou-se novamente enigmática no hábito de tentar descobrir o prazer da vida. Com o tempo acostumou-se ao homem calvo, gordo e estrábico que fazia companhia à sua solidão. Com ele pouco ria. Era melhor imaginar que a vida pudesse ser muito diferente. Era melhor deixar tudo correr na BR 101, sem intrometer-se na destinação do que veio para ser comum e pequeno, fosse na ida ou na vinda dos automóveis. É... O horizonte acabava bem ali, entre Juiz de Fora e a estrada cheia de possibilidades. Se ousasse, seria capricho e fuga; retirada estratégica pelo mar... Mar de Espanha!

Anna tinha perdido por completo as aventuranças de interferir aqui e ali, fazendo coisas que não eram de seu domínio. Que se dedicasse às empadas, aos sorrisos pálidos dos clientes em trânsito. Estaria bom assim, para o marido... Que contivesse seus devaneios e plantasse os pés no bar à beira da estrada. Sim... Enquanto milhares de carros corriam dia e noite diante de seus olhos, melhor ficar com os pés fincados no chão, à espreita do que ia em direção ao Rio de Janeiro. Era preciso deixar-se estar, para sobreviver, quando perdidas as ilusões.... Fera, como todos os animais, desde que notou o motorista apalpando-lhe as formas poentes com olhos tendenciosos e perdidos naquela maturidade de amargura.

Que fosse assim absurdo. Vivia, morria, mas salvava-se amealhando esparsos galanteios, enquanto servia para o esbelto moço um café colonial. Com certeza ela  teria a lembrança dos sorrisos, ao final do dia para sonhar...

Seria bem mais feliz sim, a bordo de um navio, ou no coração de certo rapaz que a viu com mais ternura que os outros.. Oh! Uma viagem a Cancún, ou a Paris... Quantas possibilidades! Não importaria muito o destino. Qualquer lugar poderia salvar sua vida do balcão daquele restaurante à beira da estrada, onde preparava o café uma dezena de vezes! Mas, apesar dela, dali por diante, o que acontecesse seria por conta da terra, caso se considerasse a semente.

A felicidade poderia salvar a Terra.

Salvar-se... Mas, quem pode com o destino daquilo que veio para ser tão pequeno?


Autora: Valéria Áureo