Ilustração: Fonte Internet
- Você me dá o seu coração? Você me
dá o seu coraçãozinho?
Eu nem me atrevi a olhar para o lado
e interromper o idílio entre duas pessoas apaixonadas. Permaneci imóvel e em silêncio. Seriam dois jovens
descobrindo o primeiro amor? Ternuras trocadas com olhares
lânguidos e promissores de beijos juvenis?... Pensei no amor de juventude, que
acomete a todos. Pensei em todas as suas possibilidades... Amor, entrega e
paixão.
Ele repetiu: - Você me dá o seu
coraçãozinho? Fui além em meus devaneios e pensei no amor e na sexualidade. A
metafísica do amor... Ele queria uma entrega absoluta; a entrega do coração. Não sei se pedia a alma, mas tenho certeza que desejava o corpo com todas as suas minúcias e os
seus sentimentos. E, para minimizar essa entrega, esse desprendimento radical
da mulher amada, ele usava o diminutivo do coração. Pedia da amada a renúncia
do próprio ser, tão poderosa e dizia: me dá o seu coraçãozinho?... Com o coração viriam os braços, as pernas, as coxas, os seios, os lábios?...
Lembrei-me das
lições de Schopenhauer, que traçou uma investigação sobre a sexualidade humana baseada na metafísica
da vontade, articulada às suas observações da vida. Ele apresenta o amor como um
instrumento da vontade, e não de uma escolha pessoal ou racional.Sua conclusão pode chocar as concepções mais otimistas e ingênuas sobre
o amor, pois a paixão nada mais é que estratagemas da vontade da natureza, ou
espécie, impostas à vontade dos indivíduos. Os indivíduos acreditam que têm alguma
vantagem pessoal no prazer físico e que escolhem racionalmente seus pares. Na verdade, diz Schopenhauer, eles são marionetes do gênio da espécie, um grande manipulador que
se esforça por iludir os amantes com o gozo físico, ou mesmo com beleza
visual que só o apaixonado enxerga. Tal fascínio atende ao propósito da
conservação da espécie, que também é a perpetuação do sofrimento, através do
nascimento no mundo dos fenômenos.
E, enquanto
eu voava em minhas considerações sobre o amor e suas dores, doçuras e vicissitudes, novamente eu o
ouvia dizer:
- Vai me dar o
seu coraçãozinho? Vai me dar?...
Ele repetia e
ela dava risadinhas quase pueris. Devia estar enrubescida, tímida, mãos suadas
e frias.
Ah! O amor e
suas peripécias... Um segredo aqui, um beijo roubado ali, ciúmes e mais ciúmes acolá. E lá se iam os
pares de mãos dadas, buscando o infinito. Amor cego, amor surpreendente, amor
das idades mais inquietantes: alvoroços, suspiros, risos, afagos e lágrimas.
- Você me dá o
seu coraçãozinho, ou terei que roubar?
Ela não
respondia, apenas ria... Ele insistia: - vou roubar seu coraçãozinho!...
Notei que o impasse se alongava e a moça não se decidia em dar o coração ao apaixonado. Decidi olhar
para o casal embevecido em ternuras, com certa inveja... Também eu sou sonhadora. Eu também queria ter um amor assim, de entrega
absoluta e visceral do próprio coração... Senti inveja da mulher da mesa ao lado.
O homem com um golpe certeiro e definitivo espetou o garfo em um coraçãozinho frito no prato da mulher e o abocanhou de uma só vez.
O homem com um golpe certeiro e definitivo espetou o garfo em um coraçãozinho frito no prato da mulher e o abocanhou de uma só vez.
Ah! O amor é
surpreendente.
Valéria Áureo
In: Conjugando O Amor Líquido
In: Conjugando O Amor Líquido
08/09/2017