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quarta-feira, 12 de abril de 2017

Beijo na Boca


Ivan Ferreira da Silva, mas o povo me conhece por Tico, por causa da minha miudeza de ossos e músculos. Um tico de gente, dizia minha avó. Mas meu nome é Ivan, confirmado pelo Espírito Santo na pia batismal. Cidadão de tez escura, atualmente chamado de afrodescendente pelos intelectuais. Sou negro, neguinho, negão e não me envergonho quando me chamam assim. Acho até bonito quando a moça me chama de meu neguinho, ou de meu negão, porque para mim é elogio. Portelense enquanto fui liberado para aquele arrocho na Escola de Samba; mas depois deu ciúmes na minha neguinha e deixei de frequentar, para não cair em tentação. Carioca, do Rio Comprido, por nascimento e aptidão; nasci com a veia de sambista e bom de bico, pois conversa boa eu sempre tive. É que Deus compensa uma coisa com outra: tira a beleza, mas dá a astúcia. Botafoguense, porque a gente tem que amar incondicionalmente alguma coisa nesta vida, custe o que custar. Tem que ter uma paixão! E eu amo aquela estrela, ali sozinha, da camisa de meu time. Sou do sexo masculino, com muita segurança e definição disso; não tenho meio termo, sou nascido, criado e conservado macho. Para mim não há nada mais acertado no mundo que mulher. Também não recrimino quem não goste. A pintura da vida perfeita que me impingem no carnaval não me comove nem um pouco. Não vou virar alegoria para turista que vem visitar favela... Já não tenho nem mais os meus dentes e nem me iludo com mais nada nesta vida. Perdi a inocência.
Insensíveis! Eu dou essa conta do estrago em minha boca aos governantes, já que não tive chance de me defender; já nasci em desvantagem no afeto e no leite. Já nasci devendo. Por que eu não sei, mas já vim devendo. Sem pai para me defender, sem mãe para me criar. Uns já nascem sem sorte; é o meu caso. Sem astúcia e resignados, muitos dos meus vizinhos se consolam em novelas; a ironia é que, no intervalo delas há propagandas de comida e de cremes dentais branqueadores. Tenho muito pouco do primeiro e não me serve de nada o segundo. Em resumo, barriga e boca vazias... Ainda me mandam sorrir para a câmera, os covardes.
Milhões de olhos mortos diante da TV habitam meu país e não veem o que se passa bem aqui. Sou de pouco estudo, mas observo. Não nasci burro, não. Quanta coisa por fazer e milhares de homens acomodados no sofá da sala e nos gabinetes em Brasília. O livre arbítrio deles está num comando portátil que os controla e no painel de votação secreta. Cultivam uma apatia de consciência tranquila e se consolam com o final feliz. Onde já se viu?... Final feliz!... Quando querem mais emoções, costumam mudar de canal que é igual no passado, no presente, no futuro. Tudo no controle remoto, para não desgastar o corpo.
Hoje ouvi que para fazer concurso para policial é preciso ter, ao menos, vinte dentes na boca. Ri, ri muito até passar mal... Já viu uma boca sem dentes rindo? Pois não tem graça. Ah! Concurso público para policial.Ah!... Se eu tivesse vinte dentes... Primeiro iria tirar um retrato 3x4 para fazer uma nova identidade:- Tico com vinte dentes, sorrindo... Foto de frente e de perfil. Depois iria comer rapadura, chupar cana, morder um pedaço de carne. Fazia uma extravagância e comprava meio quilo de alcatra. Improvisava um churrasco. E, finalmente, iria beijar minha namorada na boca, que nem isso eu faço.
Ah! Se eu tivesse vinte dentes, seu moço!...


Autora: Valéria Áureo