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sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Cantigas de Amor, de Amigo, de Escárnio e Maldizer.



                                                                          Ilustração: Internet



          Interessante como as ideias podem nos levar a viagens distantes. Estou a um passo dos menestréis medievais, em busca de inspiração. O trovadorismo foi a primeira manifestação literária da língua portuguesa, no século XII, com a Cantiga da Ribeirinha, ou Cantiga da Garvaia, em plena Idade Média, período em que Portugal estava em processo de formação nacional. Na lírica medieval, os trovadores eram de origem nobre, que compunham e cantavam, com o acompanhamento de instrumentos musicais, as cantigas (poesias cantadas). Eram poesias satíricas (Cantigas de Maldizer e Cantigas de Escárnio) e líricas (Cantigas de Amor e Cantigas de Amigo).
          Bom, vou levar adiante a minha narrativa, do contrário essa história vai se transformar em uma aula de literatura, e nem todos gostam; voltemos ao fato. O que mais importa nesse momento é o ocorrido há tempos.
Sempre fomos encantados por música na casa 87 da Rua Domingos Inácio; ou nós mesmos nos embalávamos e cantávamos até dormir, ou o som vinha do Clube dos Trinta, em noites de bailes.  Sempre havia um fundo musical nas nossas noites. A música do Clube dos Trinta ecoava atravessando o Bequinho da Zulmira, o quintal de Dona Lulu e as paredes da nossa casa, até nos fazer dormir ritmados pelas notas. Nesse afã de cantar, dançar, pular de alegria, íamos crescendo, sem nos dar conta de que tudo passaria tão depressa. De uma hora para outra a casa tinha mocinhas e rapazes, andando aqui e ali.
          Minha narrativa não tem nada a ver comigo, porque eu ainda me perdia entre livros e bonecas e não era o objeto de nenhum afeto, ou amor escondido. Tão escondido que nem mesmo as moças da casa sabiam. Mas me lembro do fato em uma noite qualquer, do final dos anos 60.
          Noite alta, já beirando a madrugada, ouve-se um violão e a voz melodiosa, de um cantor enamorado fazendo serenata em nossa janela. Era agradável e surpreendente uma melodia tão próxima.  Era a primeira vez que ouvíamos uma serenata. Música lá fora... Em contrapartida havia risos e alegria do lado de dentro da casa.
          Apesar de todos nós gostarmos da cantoria, nenhuma Julieta teria chances de se chegar à janela (o balcão de Shakespeare) para ver quem seria o valente e temerário Romeu. Não com o nosso pai já de pé e atento, movendo-se de um lado para outro, como um leopardo enjaulado, sem acender as luzes, para resolver a situação. A música e o cantor eram acompanhados por um coro de rapazes, amigos com certeza do jovem menestrel apaixonado, naquele desafio considerável de fazer ousada corte a uma das moças da casa 87.
Segue a música atravessando a noite fria do final da década de 60. Silêncio dentro de casa, sob as ordens do pai, e melodia do lado de fora. Tudo ia bem até que...
          Um tiro para o ar.  Dois tiros, três... Uma voz imitando o uivo de um lobo!  Auuuu! ... A música aveludada do menestrel dá lugar a uma correria desesperada, uma gritaria desafinada e outros barulhos: corre, corre, corre! Pega o banquinho! ...
          No outro dia, jogados à porta da casa 87, havia um banquinho e o violão. Quanto ao seresteiro ousado, nunca se soube de quem se tratava. Uma pena, não é? O amor melodioso e fluido foi levado levado pelo vento e tempo...
          Um cantinho, um violão /Esse amor, uma canção /Prá fazer feliz/ A quem se ama... /Muita calma prá pensar /E ter tempo prá sonhar...

Autora : Valéria Áureo
( Conjugando o Amor Líquido)


domingo, 16 de agosto de 2020

Narrativa das Improbabilidades


Ilustração: Internet


Quando a infância era a sua única razão de ser, a criançada já entendia o pai com um simples olhar. Ele baixava os óculos até a ponta do nariz e pronto. Tudo esclarecido e nem mais um som.
Os distúrbios que pudessem existir eram folhas corrigidas do livro de doutrinação que o vento levava rapidamente e dava sabedoria às variadas idades. Dava compreensão. Dava perspicácia, sabedoria e mais discernimento. E ai de quem não compreendesse suas mensagens, pois a vida não dava chance para os tolos.
Poucas palavras, gestos e mímica formavam um código secreto entre eles. A casa poderia até ser um campo concentrado de vontades de guerra, embates, egos, se não houvesse um líder. Mas o líder não deixava que isso acontecesse. Assim seus oito soldados marchavam em harmonia com outras crianças refreadas em casa e nos anos de escola. Tudo ia bem...
O pai falava aos filhos com os olhos e até com silêncios. Palavras deviam ser decifradas com inteligência e rapidez de raciocínio...
E assim se deu a narrativa das improbabilidades: ia ele com a filha adolescente no ônibus até Barbacena, onde a menina estudava; linda, cabelos longos, olhos doces e convicções de menina esperta, mas que ainda tinha que ser protegida pelo pai. No ônibus ela sentou-se no banco da frente e atrás se sentou o pai. Eram os únicos lugares vazios. Do lado dela o banco estava ocupado por um rapaz que logo se engraçou, aprumando-se ao vê-la. Empertigou-se ardiloso e achegou-se aos longos cabelos dela. Animou-se em uma possibilidade de aventura. A cada curva, mais e mais ele se lançava sobre ela. Ela, cada vez mais espremida em seu assento, recolhida em seu temor, sem poder se desvencilhar,  porque não sabia reagir.
O pai, que a tudo vigiava, sabia que não poderia mais agir como sempre agira em sua juventude: um soco nos queixos do malandro e pronto. Mas agora a questão exigia prudência e sabedoria. Precisava esperar o momento certo.
Foi então que o pai exclamou: 
- Minha fia, como estão te tratando lá no leprosário? A frase estaparfúdia era o código para a filha ativar sua imaginação e acompanhar o raciocínio do pai. A menina, atenta e perspicaz, percebendo a intenção do pai respondeu: 
- Estão me tratando bem, pai. Não se preocupe!
- E as feridinhas no seu corpo, já secaram?
- Não, pai, ainda não! ... Tem muitas nos ombros! Quer ver?

Pois nem foi preciso mais nenhuma palavra. O rapaz, que até então estava com a cabeça sobre os ombros da menina, deu um salto; desvencilhou-se pálido, tremendo, apavorado. Deu sinal para o motorista e saltou no meio da estrada. Nunca mais se soube dele.

É isso que acontecia com quem se engraçava com as filhas do meu velho.


Autora: Valéria Áureo
(In: Conjugando o Amor Líquido)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Na Fila do Pão


                    



Sim, porque não só de pão  vive o homem, mas de todo o verbo, que é carne e cerne do pensamento. Pois, diante de mim conversam dois rapazes e eu atenta, é óbvio, faço minhas considerações, enquanto o pão está no forno. Guilherme e David, ambos de quase trinta anos, não param de falar. Vou além deles e crio a narrativa de minha imaginação:
- Cara, estou vindo do Paraguai; aquilo lá é uma loucura! Estou usando perfume até para vir para a padaria. Chivas, eletrônicos, tênis, tenho de tudo. Voltei cheio de guaranis que aqui valem por... nenhuma. Mas cara, não imagina. E você, tudo bem?
- Estou chegando do ultrassom; é uma menina. Na consulta anterior o médico tinha suspeitado que  era menino. Mandou comprar a chuteira e guardar a nota fiscal. Hoje mandou trocar por uma sapatilha. Julia vem aí!...
- Ah! Então está fazendo hora extra. Vai ver como é. Dureza!
- ´Já estou vendo. Minha mulher e minha sogra querem um mês para comprar o enxoval. E eu vou junto, porque tem que participar. Minhas férias serão...
- Por que não leva para o Paraguai? Entra em um shopping só de roupas de bebê e fica esperando.  Mas, presta atenção: não dá muito palpite não. Tudo o que ela e a mãe escolherem, você diz que está bom. Se contrariar, vai ser uma choradeira danada. Grávida chora à toa. Sogra entra na vibe da filha...  O verbo que mais vai ouvir agora é magoar! E o pessoal do futebol?
- Não voltei mais!
- Machucou a perna?
- Não é isso. Não tenho tempo pra mais nada.  Tem o curso com a doula, todas as quintas...
- O que é isso, doula?
- É a parteira!
-Parteira? Está louco? Sua mulher não vai para a maternidade?
- Vai, mas vai fazer parto humanizado. Eu não sei o que fazer; tenho pavor de sangue. Querem que eu participe...  
- E o outro parto, não é humanizado?
-Sei lá! Estou concordando com tudo. Estou apavorado, isso sim.
-Calma! Tudo vai dar certo. Você se acostuma logo e o bebê vai transformar a sua vida. Se não entrar em pânico, vai adorar.
- Já transformou, cara, já transformou. Já não sou mais o mesmo homem. Ando ansioso, inquieto. Não durmo direito. E esse pão, que não fica pronto, não é? Será que tenho que esperar por tudo?

- Calma... Aprenda a esperar, porque daqui por diante... Pode ser gentil a todo instante, mas sempre haverá uma coisa no seu comportamento que não vai agradar. É assim mesmo. Dormir? Não, esqueça de uma vez! Não vai dormir nunca mais, como antes. A patroa virou mãe. Segura o seu lado highlander e entre suavemente no mundo cor-de-rosa. É melhor andar sem sapatos em casa.

- Então é melhor levar pão doce!

- Vai por mim: leva sonhos!

 

Autora: Valéria Áureo


terça-feira, 11 de agosto de 2020

Emaranhados e intrigas


Ela falava pelos dois, como sempre soube fazer. Na maioria das vezes ela sorria para ele. Ele também sorria, acolhendo-a de volta com alegria. De uns tempos pra cá, ele parecia calado, e ela tagarelava. Ela dava movimento e vida a tudo; dava vazão aos mais íntimos pensamentos com a naturalidade de uma jovem plenamente feliz. Nunca se preocupou em se proteger dos inimigos e nem sabia que eles existiam, embora alguns a alertassem.
Ele sempre tinha expectativas, mas as mantinha discretamente guardadas na tíbia luz do quarto, onde passava a maior parte do tempo. Também sabia como usar as decepções a seu favor. Bastava calar-se! Tão acomodado era na sua calma forma de ser, e na sua confiança nela, a sua querida, que a poltrona o sugava como um redemoinho, fazendo uma moldura de proteção ao corpo desgastado. Tudo se resumia em deixá-la falar o quanto quisesse, para desabafar, para compreender e chorar, para externar seus sentimentos, enquanto ele absorvia o mínimo (aquilo que ele realmente não podia dispensar). Ele calou-se, por completo, em certo tempo da vida. Tudo tinha sido dito e se dava por pacificado em seu espírito. Além do mais, sabia que para ela havia sempre um recurso infalível: em caso de emergência, abra o vidro de calmante (ou quebre), porque ali morava a sua maior segurança.
Ela, por sua vez, jamais permitiria que soubessem que tinham atingido duramente o seu coração e destruído a sua paz de espírito. Como tinham sido covardes! Era notório que o amor dos dois, desde a eternidade, mesmo depois de tantos anos, desencadeava uma grande inveja. Ela sabia-se alvo da invídia e tentava proteger-se dos maledicentes. Usava seu sorriso e sua empatia, para dar o apoio a todos os desequilibrados que desestabilizaram o seu dia e fizeram sua vida um inferno. Isso, de ela dar-se, generosamente aos que a ameaçavam, a ofendiam e a magoavam, os fazia mais humanos, mesmo sendo tão cruéis e diferentes dela. Com resignada bondade ela os transformava em seres humanos, menos animais, a ponto de poder lhes confiar (inocentemente) milhões de dólares. Confiança nos inimigos, escamoteados em amigos, tão sólida quanto o firmamento e a verdade que foram capazes de deturpar, por sordidez, para destruir aquele invejável amor, que nunca poderiam ter.
Ela, erguia-se altiva, caminhando pelo rastro de maledicência, sem se corromper com a maldade. Continuava boa, amigável, inocente, apesar de tudo, apesar de lágrimas, de mãos dadas com ele. Eternamente com ele.
A verdade sob os rumores nunca vieram à tona, mas ela sobreviveu. Ele sobreviveu, no jeito silencioso, e o amor dos dois também foi incorruptível.
Agora, no emaranhado desse amor da idade da compreensão e da maturidade (que ainda desperta inveja), finalmente podia respirar entre alguns poucos amigos que a fizeram melhor e a ajudaram a suportar as dores. Tudo tinha servido para que amadurecesse precocemente.
Um dia ainda escreveriam sobre o seu infortúnio. Os nomes dos danosos e maledicentes algozes dessa trama nunca seriam revelados, mesmo porque sempre se esconderam na penumbra, nos subterrâneos da Deep Web. Nunca se soube dizer quem eram (ou quem são!)

Autora: Valéria Áureo




segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Adeus






Agora que estavam tão próximos do fim, mais apegados estavam um ao outro, sentados lado a lado, no pequeno espaço de frente do quintal. Olhavam horas a fio a mangueira e a verdejante videira, fiscalizando cachos de uvas destinados aos netos de fim de ano. No extremo da idade, já tão velhinhos, se assemelhavam a duas crianças de mãos dadas, assentados depois de uma estonteante ciranda. Muito mais eles desejavam o tempo para o recomeço, cada vez que a memória trazia à tona lembranças da infância. Às vezes, passeavam enlaçados pelos dedos no caminho que geminava as duas casas, quando nenhum dos filhos pudesse flagrar aquela ingênua intimidade. Seco e poeirento era o quintal e as folhas da pequena parreira sob o pé de manga, que lhes servia de jardim. Que fossem muito doces as mangas e as uvas, negadas aos passarinhos e acauteladas para cada um dos filhos seus... Também lhes ambicionavam doce destino.
Secos já estavam os olhos espremidos em rendas de rugas que os faziam pequenos, pequenos e melancólicos... À tardinha a escada que levava ao segundo andar servia de bancos para os gatos e os vasos de antúrios. Quando o sol era um pouco menos quente repartiam ali um café que ele preparava para ela, porque era silencioso de palavras o amor que ele lhe tinha. Era feito de pequenos gestos recentes, aprendidos na velhice, quando enfim ele pode descobrir que mais do que as mágoas, tinha sobrevivido um sentimento perene, acobertado vida inteira. 
Viviam juntos havia mais de sessenta anos. Já não se podia dizer que eram duas criaturas, pois que nada sabiam ou podiam um sem o outro; nem pensar, andar, falar, sorrir ou haver o mundo. Ele trabalhara com a luz, sol a sol, noite a noite, fugindo nos desejos e nos sonhos para lugares em que ela não o acompanhava. Costumava evadir-se ao encalço dos lambaris do rio Formoso, porque ali se deixava carregar água abaixo, enquanto desaguava suas dores. Ela cuidara dos filhos, parira quatorze, perdera seis para a natureza, por destino, e também habitara nostalgias que só ela conhecera. Nesse tempo ambos andaram afastados de si, tal a dureza da vida, caminhando cada um o seu caminho. Mas sempre lado a lado, apesar de tudo. Quando ele queria, deitavam-se juntos. Quando não, ela dormia no seu lado da cama, sossegada, enrodilhada constantemente como gato de estimação em borralho. Nunca se separaram. Nem mesmo quando a desavença foi maior, ou quando quase todos partiram. Mesmo os filhos.
Agora, os dois, ali, à beira da tarde, pensavam que mesmo em meio à solidão, a vida podia ser boa e bela. Mas nada falavam, porque já haviam se habituado aos longos silêncios. Ou ele falava, gritava e ela ouvia e silenciava. Longe, apenas o canarinho cantava acima da saudosa gritaria de crianças, que tinham crescido. No mais o silêncio para sempre.
Antes da noite eles dormiam. Um dia e outro e outro e viram passar o tempo como se fosse uma tempestade forte e, até então, se tinham de mãos dadas, quando os filhos não olhavam invadindo essa timidez. Aos poucos souberam que haviam de se deixar. Souberam que, em breve, seria a sua hora. Hora única. De cada um. Que, depois de toda uma vida lado a lado sem quase se falar, seguiriam separados, quando bem o decidisse Deus. Quando pensavam nisso, prometiam se reencontrar...
Mais uma vez, para eles, inúteis eram as palavras, pois se adivinhavam, mutuamente, os pensamentos e o temor de saber quem iria partir primeiro.
Quando a noite caiu e uma imensa lua clareou a terra, se deixaram ficar, mais um pouco, ali fora, povoados pelo sentimento da separação.
Assim que ele se foi, mais silenciosa Wanda ficou... Ela ficou esperando uma lua inteira brilhar nos seus olhos azuis, trazendo-o de volta.

Autora: Valéria Áureo

In: Pretexto Para Tomar Vinho