São
Francisco de Assis* em suas andanças pastoris, levou-me à inspiração
deste madrigal sacro... Encontrei Nossa Senhora na beira do rio, lavando
os paninhos do seu Bento filho. A Senhora cantava baixinho e a dor
escorria junto com a água turva da tina. Não tinha letra a canção, só
plangente melodia, que Maria sussurrava. São José assoviava acompanhando
a sinfonia; Maria murmurava e o menino ouvia. Água vai, água vem cristalina das terras de Belém, lavando os pés do pastor... Nasceu Nosso Senhor!
Eu olhava a espuma branca que no arroio fluía.
O
manto azul da Virgem a pele alva encobria, a veste branca de luz
adornava a escuridão. No céu brilhava a estrela guia... O anjo Gabriel
vigiava a Sagrada família, o carneirinho repousava no chão, ao pequeno a
lã cedia. Maria devia saber: nunca antes do tempo...
Eu via a água verter enquanto o menino dormia: corria a água no rosto, a dos olhos de Maria...
O
pai entalhava um tronco; a mãe entoava um canto. Num canto o pequeno
dormia. A cantiga era tão triste, a que o vento trazia, enquanto Maria
batia a roupa na ribeirinha. A Senhora lavava e São José estendia o
pouco de pano que havia... Senhora da Humildade! Bem sei que ela me
ouvia! A água benta escorria, refrigério em minha mão... Virgem da
Consolação!
O
vento forte secava a manta surrada e fina, o sol aquecia a estrada e o
jumentinho pastava na relva luzidia. E o menino sonhava, e o menino
comia. Ele inocente do encargo, do fado que trazia. Por certo se
abstinha de ocupar a mãe aflita; doída de presságios... Sofrimento...
Maria devia saber: nunca antes do tempo...
Nossa Senhora das Lágrimas! Virgem da Abadia! Lava meu coração!
Depois
de ajudar Maria, São José buscava gravetos, para acender a fogueira,
temendo uma noite fria. Cobria de palha o berço, para aquecer a criança,
porque o que lhe restava era cuidar da vida. Não tinha outra lembrança,
senão a fuga do Egito, para salvar o Bento filho... O carpinteiro nem
tinha madeira para acolher o Sagrado Jesus.
A
Sagrada família se abrigava no Presépio, morada das criaturas... Tão
efêmera tarde que a agonia encobria o que estava por vir. Nossa Senhora
da Esperança acaricia os anéis dos cachos da criança e sente a coroa de
espinhos! Nossa Senhora das Chagas! Nossa Senhora do Livramento! Maria
devia saber: nunca antes do tempo...
Nossa
Senhora bordava... Nossa Senhora cosia... Bordava estrelas na noite
enquanto ninava o menino na humilde estrebaria. Mãe intemerata enquanto
trabalha, vigia... A jovem mãe confiava mudar o destino atroz:: quase
sem voz pedia:
- Senhor, ele é apenas um menino!
E Deus respondia:
- A humanidade o algoz! Maria!... Devia saber: nunca antes do tempo...
Mas ela já sabe da cruz!
Sim, a pobre mãe já sabia... Nossa Senhora das Dores! O calvário antevia...
Vi
três Reis Magos com presentes confiados a Maria. Incenso, mirra, ouro
que a jovem recebeu na lapa escura. E não tinha onde guardar, nem sabia a
serventia. E tudo trocaria pela certeza de paz e da vida do filho.
São
Francisco era o pastor que mansamente conduzia os bichinhos: o
carneirinho balia, o boi e a vaca mugiam e o cachorro latia. Ele
ordenava, com aptidão e bondade e os bichos se calavam, para não
assustar o menino. E os animais viviam para servir de agasalho e
companhia. A cigarra ciciava, o grilo guizalhava, o beija-flor trissava.
O menino balbuciava e ria....
Como
toda mãe, lá ia Nossa Senhora cozendo, limpando o mundo. E o menino
crescendo... Lá ia Jesus Cristinho, brincando pelo caminho, colecionando
pedrinhas, como qualquer garotinho... Ia o pai, ia também a mãe e o
pacato jumentinho. Lá ia correndo livre e perseguindo os cabritinhos...
Mas, tudo é muito igual para toda criança na infância. Calma, Maria...
Nunca antes do tempo...
Eu vi o dia chegar, mais claro que os outros dias... A Senhora ao acordar, rezava a Deus e pedia:
- Senhor, ele é apenas um menino!
Saía
a colher florezinhas pra enfeitar o caminho, por onde iria passar o
Sagrado Jesus. Tentava suavizar as feridas, o coração alanceado e o peso
da cruz, que no futuro viriam.
Encontrei
com Nossa Senhora, na beira do rio. Via que andava apressada a procurar
o menino, que distraído corria e que inocente crescia. E só sua mãe já
sabia.
Água vai, água vem cristalina das terras de Belém, lavando os pés do pastor... Jesus Cristo, o Salvador!
Maria, agora é o tempo; o tempo da sua dor...
Nossa Senhora dos Tristes... A que sempre me sorria, consola em mim sua agonia!
Valéria Áureo Cerqueira
*
No ano de 1223, São Francisco, tentando reviver a ocasião do nascimento
do Menino Jesus, festejou a véspera do Natal com os seus irmãos e
cidadãos de Assis na floresta de Greccio. São Francisco começou então a
divulgar a ideia de criar figuras em barro que representassem o ambiente
do nascimento de Jesus. Assim criou o Presépio.