Apresentação

Total de visualizações de página

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Quarentena II





Às vezes a mãe fica nervosa, porque as crianças estão todas amontoadas no sofá, emboladas no grande novelo das traquinagens. A mãe se irrita com o inesperado barulho, porque no consultório não era assim, só a música ambiente. Agora, em casa, uma criança grita, a outra puxa o brinquedo; uma chora, a outra ri; um está emburrado e o outro lê sossegado. Ela me põe de castigo e me chama de criança levada. Então, antes de chorar, eu pergunto a mim o que fiz de errado, porque eu estava bem quieta no meu canto com o gato manhoso que não me deixa sozinho. Eu tiro do bolso um lenço de papel que me consola, onde há muitos dias ela limpou o beijo vermelho dos lábios, para me confortar, porque ela anda impaciente e nervosa e sinto saudades do silêncio dela.
Mal encerra o dia de lavar, secar, cozinhar, servir, comer, guardar, arrumar, botar menino para dormir e deixar a janta à mesa tão tarde, a lua se apaga e o dia se estica além das nove da noite; tudo emendado em manhã, tarde e noite, sem intervalos e descanso. Amanhecer já não é mais às sete da manhã, quando havia escola e trabalho. É hora de dormir novamente, mal tendo descansado da trabalheira do dia anterior.
E lá se foram para as gavetas todos os enfeites que ela usava para sair à rua: roupas melhores; adornos dos cabelos pintados e soltos; cinta modeladora; batom e esmalte, perfumes e sapato alto, bolsa, chave do carro, documentos, celular. Agora se vai à rua sem maquiagem; tem-se o rosto quase trágico (em preto e branco), escondido em uma máscara que ora encobre o medo de se perder definitivamente o que não se vive mais. Na memória ela sai de casa, bebe, dança, tira a maquiagem, deita, chora e até ri, porque a vida era bem divertida.

Eis que, amanhece no sobressalto da madrugada que já não é mais tão cedo... Hora de ver o que os meninos estão aprontando. E, antes que ela grite, eu tiro do bolso um lenço de papel que me consola, onde ela limpou o beijo vermelho dos lábios, para me confortar. Eu beijo o beijo dela e isso me faz parar de chorar. Sinto falta do silêncio dela.




Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações