Às vezes a mãe fica nervosa, porque as crianças estão
todas amontoadas no sofá, emboladas no grande novelo das traquinagens. A mãe se
irrita com o inesperado barulho, porque no consultório não era assim, só a
música ambiente. Agora, em casa, uma criança grita, a outra puxa o brinquedo;
uma chora, a outra ri; um está emburrado e o outro lê sossegado. Ela me põe de
castigo e me chama de criança levada. Então, antes de chorar, eu pergunto a mim
o que fiz de errado, porque eu estava bem quieta no meu canto com o gato
manhoso que não me deixa sozinho. Eu tiro do bolso um lenço de papel que me
consola, onde há muitos dias ela limpou o beijo vermelho dos lábios, para me
confortar, porque ela anda impaciente e nervosa e sinto saudades do silêncio
dela.
Mal encerra o dia de lavar, secar, cozinhar, servir,
comer, guardar, arrumar, botar menino para dormir e deixar a janta à mesa tão
tarde, a lua se apaga e o dia se estica além das nove da noite; tudo emendado
em manhã, tarde e noite, sem intervalos e descanso. Amanhecer já não é mais às
sete da manhã, quando havia escola e trabalho. É hora de dormir novamente, mal
tendo descansado da trabalheira do dia anterior.
E lá se foram para as gavetas todos os enfeites que
ela usava para sair à rua: roupas melhores; adornos dos cabelos pintados e
soltos; cinta modeladora; batom e esmalte, perfumes e sapato alto, bolsa, chave
do carro, documentos, celular. Agora se vai à rua sem maquiagem; tem-se o rosto
quase trágico (em preto e branco), escondido em uma máscara que ora encobre o
medo de se perder definitivamente o que não se vive mais. Na memória ela sai de
casa, bebe, dança, tira a maquiagem, deita, chora e até ri, porque a vida era
bem divertida.
Eis que, amanhece no sobressalto da madrugada que já
não é mais tão cedo... Hora de ver o que os meninos estão aprontando. E, antes
que ela grite, eu tiro do bolso um lenço de papel que me consola, onde ela
limpou o beijo vermelho dos lábios, para me confortar. Eu beijo o beijo dela e
isso me faz parar de chorar. Sinto falta do silêncio dela.
Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações