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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Indubitavelmente – o bastante

                                                                      Fonte: Internet
Tudo o que Antonio tinha era a sua dor, desde o dia em que ficou só. Não queria se livrar dela, a sua dor, mesmo que todo o resto estivesse destruído. Em volta de si só havia escombros provocados por um bólide. Ela, a sua dor, era a única que lhe fazia companhia e ocupava todo o ar vazio deixado pela mulher. Ela, enquanto presente, o entorpecia!
Não, não... Havia outras coisas, que poderiam ser muitas, centenas, milhares a lhe fazer companhia como estrelas. Ele tinha uma coleção de palavras, como se fossem estrelas. Entre tantas ele poderia escolher aquelas mais novas, que preenchessem o nada com inspiração etérea; quem sabe escolheria uma palavra diferente a cada dia; precisava descartar: bruno, taciturno, mórbido, sorumbático, pois estas o deixavam acabrunhado e vergado, sem coragem para reagir no luto. Ela, enquanto presente, era a escuridão!
Antonio sempre foi um excelente conciliador das negociações de paz entre o casal, porque era muito apaziguador e inspirava serenidade. Era transparente. Muitas palavras, mas sempre em tom baixo. A mulher sempre tinha sido afeita aos arroubos e arrebatamentos da linguagem. Não usava palavras em profusão, como ele; ela gritava. Chega! Chega! Chega! Gritava ela diante da prolixa alma do marido amante das palavras ternas. Ele falava muito, mas era silêncio. Ela falava pouco e, enquanto presente, era tempestade!
Agora nem esse exercício existia, porque tudo seria um monólogo. Sem as palavras macias e mornas ditas a ela, Antonio sentia-se letárgico. Nenúfares... Sempre gostou dessa palavra. Queria que a mulher fosse um nenúfar dando flores na superfície da água. Ele a ouvia, apesar dos gritos dela e tantas vezes ele disse a ela: calma! Calma! Calma!... Calma minha flor de lótus! Ele só se irritava com a incapacidade dela para tomar partido e atuar, em qualquer circunstância, com sabedoria e vocabulário pacificador! Não sabia se ela era indiferente, ou se, na verdade, era só temperamento. Bom, disse para si, isso é passado. Agora ela, a partir de então, é o silêncio eterno!
Para salvar-se ele precisaria de uma nova coleção de palavras fulgurantes... E que o passado ficasse para trás.
Ele tomou gosto pela sedução de palavras impronunciadas. Buscou uma palavra tão luminosa, reverberante, que não se apagasse, de jeito nenhum. Ele passou a querer mais palavras incandescentes, de neon, claras e quentes. O alcance delas ia além de sua cabeça e o erguiam como guindastes invisíveis, fazendo-o levitar. Ele sentia falta de luz e agora voltava a sorver o ar com sofreguidão. Como era bom respirar fundo, erguendo o peito, enchendo-o de ar. Também podia fitar o céu azul sem interrupções.
Enfim, daria fim ao silêncio, pois o silêncio era ela. Bastaria uma só palavra para desencadear o turbilhão delas levando ao novo mar de ternuras em suas vertentes descomunais.
Trouxe à tona a palavra amor. Uma forma de ter esperança com poucas e com todas as palavras. Amor! Indubitavelmente! Agora que ela se fora com os seus gritos ele estava preparado para as ternuras silenciosas do amor.
Autora: Valéria Áureo
In: Pretextos Para Tomar Vinho

LIGAÇÕES RECONFORTANTES III


                        Ilustração: Internet


- Alô, com quem falo?
- Com quem deseja falar?
- Com o responsável, ou a responsável pela linha. Ele está?
- Sou eu, pode falar. O que deseja?
- Olá, como vai, tudo bem? É um prazer falar com a senhora. Aqui é do Auxílio Funeral. Tudo para o seu conforto!
- Auxílio Funeral, é? Meu conforto? Mas que beleza!...
- Sim, Auxílio Funeral, a seu dispor. A senhora tem um minutinho?
- Bom, eu desejo ter bem mais que minutinhos; desejo ter horas, semanas meses e longos anos de vida ainda.
- A senhora não entendeu. Minutinhos para uma conversa. Aqui é o Auxílio Fun...
- Já estão ajudando a gente a morrer com conforto, é? A senhora quer abreviar o meu tempo de vida?
- Não, minha senhora. Na hora da dor pela morte de um ente querido!... Facilitamos a sua vida.
- Não facilitam a morte não? Não é Auxílio Funeral o nome da clínica?
- Vou explicar com calma. Nós assumimos a dor, o desconforto da perda, entende? Auxiliamos na hora da morte.
- Ah, entendi! É uma clínica de Eutanásia.
- A senhora não entendeu!...
- Entendi sim, morte com auxílio e conforto é coisa de eutanásia. Faz o seguinte: pode me ligar lá pelas vésperas das eleições, no final do ano; conforme for eu vou precisar dos serviços da sua clínica. Por enquanto ainda está dando pra levar, ainda mais depois de ontem, com os 3X0. Tive uma boa melhora; não precisei nem dos meus remédios de pressão, pânico, depressão, ansiedade... Vou anotar aqui o seu telefone. Se eu precisar de Auxílio Funeral eu ligo para você, combinado?
- Mas, senhora, entendeu tudo errado.
- Até logo, passe bem e boa morte, ops, boa sorte.

Autora: Valéria Áureo