Ilustração: Internet
Eu sou uma pessoa que não chora. Ou
melhor, nunca em público, só mesmo bastante longe de qualquer olhar humano. Ou
quando o olhar humano já deixou de existir. É que me habituei a isso, desde que
fui trabalhar na agência que cuida dos últimos instantes do sujeito. Caso
contrário choraria o tempo inteiro e espantaria os meus fregueses. E depois que
arranjei esse trabalho, vejo esta vida assim, resumida na morte; escondido eu
choro. Na frente dos outro seria a desgraça total, capaz de arruinar qualquer
reputação de durão, construída durante anos a fio. Pelo visto sou eu, a
princípio, mais a imensurável mágoa de ver o fim tão de perto. Ver através de
quem conheci e amei. Diante do sofrimento foi que me decidi parar de chorar na
frente de outros humanos. Há coisas fantásticas, não há? Uma delas é decidir
parar de chorar. Entretanto choro perto dos cachorros, mas distante dos homens;
não sei por que os dois me comovem tanto.
Vai-se ao chope de final de semana, para
ver a balada de moços e moças; vai-se à praia, ao cinema, ao shopping. Vai-se a
todos os lugares. Pois eu prefiro estar em casa recolhido. Lá fora ouço
barulhos, que põem toda a gente a saltar. A mim não, que sou tímido. Pouco ou
nada se ouve com aquela música feita para explodir o crânio.. Eu não me
entusiasmo, já não suporto tanto tais ruídos. Meus ouvidos padecem, quando
distantes do meu local de trabalho. Lá, sim, constante bem estar. Ser, ou não
ser... Este verso tem ecoado na minha cabeça nos últimos dias. A vida é curta demais,
para perdermos tempo com jogos e indecisões, ou barulhos ensurdecedores... Ou
é, ou não é. Agradável ou desagradável. Diferentemente disso, não há o que
fazer. Antigamente eu era capaz de falar ininterruptamente, durante
eternidades, sobre tudo e sobre nada, com qualquer pessoa, inclusive aqueles
com tendências esquizofrênicas. Eu gostava de falar muito... Agora que conheço
os esquizofrênicos, tenho que aproveitar todas as oportunidades para mostrar
que fico sempre a ouvir silenciosamente, durante horas e horas, todos que
encontro; ainda mais quando estão condoídos e enlutados. Hora em que falam mais
e que precisam que alguém os ouça, sem restrições.
Agora estou bem melhor; agora escuto
muito mais, falo muito menos... Ouço o síndico, o porteiro, as namoradas dos
amigos, a prima da tia da vizinha e todas as pessoas que a dado momento
partilhem o mesmo espaço comigo. Todas precisam desabafar e eu ganharia um bom
dinheiro se cobrasse para ouvir.
No meu tempo de infância as Igrejas
estavam sempre abertas. O sujeito entrava, falava diretamente com Deus,
desabafava... Depois disso voltava aliviado para a vida. Agora, não! Não se vê
mais uma Igreja disponível. Nem mesmo padre com tempo para ouvir. Sou o ouvinte
de todos, mas poucos querem me ouvir. E isto não augura nada de bom para a
minha vidinha, não augura não. Será que estou condenado a passar os restos dos
meus dias com quem não tem resposta para me dar? E há dias em que tais
tormentos são ainda mais verdadeiros. Dei-me ares de cronista, exatamente
porque não tinha com quem falar; ninguém disposto a me ouvir. Passei a ter
gosto profundo por casos de pessoas comuns; a crônica de cada um, que à minha alma chega, me faz indefeso para
contestar o que falam a seu respeito. Absorvo um comentário leve e breve sobre
algum fato do cotidiano. Fico comovido; e como já disse às vezes choro
escondido. Diante dos cachorros sim; jamais diante dos homens. Depois disso
escrevo algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã. O motivo de
certas confidências, na maioria dos casos, é o pequeno incidente; coisa de
pequena monta... A notícia em que ninguém prestou atenção, o acontecimento
insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o que me surpreende é
a beleza, a comicidade, os aspectos singulares dos quais eles não se dão conta.
Mas eu estou atento a tudo. O tom certo de uma história surpreendente está onde
menos se espera; é como "uma
conversa aparentemente banal", entre uma baforada de cigarro, uma
receita de remédio, a espera de um troco, a fila de idosos no Banco, um
guarda-chuva que virou do avesso sob a ventania, um assovio na rua, um tiro na
noite. Tudo fala aos meus ouvidos. Eu ouço. Eu pretendia apenas recolher da
vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, ao
episódico, que provavelmente não se repetirá. Ou, ao contrário, repete-se em
toda casa, com todas as pessoas. Nessa perseguição do acidental, quer num
flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança, ou num incidente
doméstico, torno-me simples espectador. Mas, e eu? Onde fico se imagino que,
enquanto observo a vida estou livre dela?
O único tempo do meu dia que dedico a
pensar sobre a morte é quando não ouço mais ninguém. Sempre observo o senhor
tomando chope no bar em frente e me vem a ilusão de que ele também não se
preocupa com ela. Ao menos com a própria morte. Pode ser até que pense em
alguém que já se foi. Mas, é só e provavelmente por poucos segundos. Caso
pensasse na sua própria morte, não estaria calmamente de pé fumando e bebendo
seu chope. Ele o faz todos os dias. Daí todos os dias não pensar em si mesmo.
O interessante é que do meu ponto de
vista ninguém deveria representar a morte pelo fim, até porque se ouve muito o
fato de a morte ser a transcendência do material para o espiritual, mas ainda
assim, trabalhando aqui, é o momento único do dia em que não penso nela. A
partir das conversas do fim de cada um é que me vem o começo de algumas idéias.
Lidando com a morte é que eu penso na vida. E eu vejo que a vida é um espetáculo,
como qualquer outro encenado no palco. Cada um tem seu personagem, mas passa a
vida inteira decorando o texto. Quem afinal veio para esta vida já sabendo o
que fazer? Ninguém! Ninguém conhece nem o papel e nem o enredo. Por isto é que
tudo tem que ser improvisado.
Passam aqui em frente, muitas pessoas
em companhia de outras. Antes de chegarem aqui perto elas riem e gargalham, mas
quando mais próximas, todas param e olham para dentro; outras mais amedrontadas
atravessam a rua. Preferem o outro lado da calçada. Muitas gargalhadas já foram
interrompidas por choros e corpos, por velas e coroas, como se fosse o maior
desrespeito continuar vivo depois da morte do outro. Tolice! A vida segue como
se nada tivesse acontecido. Não há motivos para receios.
O restante dos meus minutos, eu busco
viver como se realmente eu não fosse morrer. Busco viver mesmo que seja diante
de uma enorme conta de luz que não poderei pagar, ou andando apressado por
essas bucólicas ruas que não me deixam nunca andar sozinho. Há sempre alguém
vindo em minha direção, ou partindo comigo, para me fazer companhia. Busco
levar sempre comigo a beleza de saber ouvir sobre a vida dos que precisam fazer
confidências. Ainda assim, me pego sorrateiramente reclamando, às vezes, daquilo
que pode ser consertado. No entanto, naquela funerária, as pessoas vão para
resolver algo que não pode ser resolvido. Ao menos estou ali para que desabafem
comigo. Se eu faço crônicas de tudo que ouço, paciência... Perdoem a minha
indiscrição. Penso eternizar dessa forma os que acabam de partir. Histórias
há... Muitas, para serem contadas. Há inclusive as minhas. São inúmeras no meu
ofício... Nunca tinha me ocorrido que eu também sou personagem bufão desse
teatro. Dei-me conta disto só agora. Sempre me imaginei o crítico da peça
teatral. Vendo cada encenação, analisando, fazendo revisão, dando conceito.
É... Um crítico teatral era o que eu imaginava ser. Talvez o escritor da peça
também eu pudesse desempenhar muito bem. Agora, vejo que não; sou figura
dramática, como qualquer outro. Tenho meu papel para interpretar. Mais um pobre
personagem saltimbanco desta vida.
Uma vez fui encarregado pela família de
colocar uvas no caixão de um chinês, conforme a tradição. Minha pobreza era
maior que a veneração à cerimônia e o grande respeito ao meu ofício. Tenho
orgulho do que faço e muita competência. Naquele dia, diante das uvas hesitei
entre a responsabilidade e a curiosidade do paladar. Também me lembrei de minha
mãe... Acho que pela fábula que sempre me contava: “A raposa e as uvas”. Pois
eu vi as uvas, lembrei-me de minha mãe... Achava um desperdício de aquela
iguaria ser levada junto com o morto. Levei para minha mãe que nunca tinha
provado uvas e achou a fruta muito doce, muito refinada; declarou que uva é
“uma coisa do outro mundo”. E não é que ela estava com a razão? Uvas... Quase
que iam mesmo para o outro mundo... Outra vez fiquei com os sapatos novinhos do
defunto cliente, porque eu mesmo só andava descalço. É que tínhamos o mesmo
tamanho de pé. Também achei que aquela coincidência de número de sapatos fosse
um sinal celestial. Jurei para a família que os havia colocado no falecido que
fez a viagem sem os seus sapatos. Ele que me perdoasse. Tenho certeza que, para
onde ele estava indo, não precisaria deles. Ademais, rezei para que seu
caminhar fosse sobre nuvens. Tinha certeza que não teria pedras para pisar,
pela mansidão do seu semblante. Dava a impressão de homem generoso e despojado.
Acatei a mensagem com a certeza de que o morto já tinha chegado ao céu e nem
tinha precisado dos sapatos. É nos emolumentos fúnebres que encaramos a cruel
realidade (sobretudo a nossa). Concluímos que nada é eterno, que as pessoas vão
e por incrível que ainda nos pareça, não levam nada consigo. Nada do que levaram
a vida inteira para amealhar. Nem mesmo os sapatos...
A verdade a que cheguei até
agora é que as pessoas realmente são muito frágeis, apressadas e confusas, e eu
me incluo nessa louca ciranda de emoções. Também sou um homem triste. Reservo
um tempo para chorar, mas só quando não há ninguém por perto, só o meu
cachorro. E, quanto àquele sujeito do chope, imagino que ele se sinta melhor
que os outros, ou mais tranquilo, sei lá!... É o meu patrão! Deve pensar
consigo mesmo que seu negócio é garantido; mais dia, menos dia, todos serão
seus clientes nesta cidade tão pequena... Tem certeza absoluta de que vai ficar
muito rico e que enterrará todos. Eu continuo como estou. Um coveiro cronista.
Autora: Valéria Áureo
Publicado em: Entrelinhas
Literárias - 2011-
Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas.