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quarta-feira, 15 de março de 2017

En attendant Godot ( Esperando Godot)


Ilustração: Internet


     Trim. Ouço o telefone. Trim. "Droga!" Trim. Largo o leite fervendo. Trim. Tropeço no tapete. Trim. Derrubo o telefone. Trim. 
Alô? Era engano... Mais uma vez, engano.
Trim. Mais uma vez. Não tenho tempo de atender. Isto é uma gravação. Por favor, aguarde na linha. Este telefone mudou; aqui é da casa de Anna, Carlos e Luís. Deixe sua gravação. Quando puder eu retornarei. Obrigada!”
Tudo questão de operadoras... Reflexo das agruras da globalização... Por isso atualmente tenho um número novo de telefone; foi impossível transferir o meu número para o novo endereço, apesar dos meus apelos. Apesar dos celulares, ainda insisto em ter minha linha de telefone fixo. Tinha a sensação de mais conforto. Qual!... Mil horas ouvindo músicas da operadora.  Mil chamadas nas horas mais inoportunas. Estão cada dia mais insuportáveis! Tédio da moça que me atendia. Gravações. Irritação minha de imaginarem que quero ouvir mil vezes a mesma música. Antevia a série de problemas que teria por conta da alteração. Acabava de me mudar e não me cansava de atender ligações para o antigo titular da conta telefônica, que agora era minha. Também eu tinha perdido o meu número original. Ele me serviu durante anos e tinha acompanhado todos os acontecimentos mais expressivos da minha vida, intimamente narrados via satélite. Centenas de cartões com meu número antigo foram jogados fora. A máquina da existência global girando, girando e jogando meus cartões fora... Nem quis imaginar para onde iriam, agora dispersados...
          Seu Godofredo era o titular da linha antiga, que agora era minha. Não me incomodei com a ajuda que daria a Seu Godofredo, a quem nunca vi; comprometi-me a repassar os recados, conforme um bilhete  com o pedido deixado com o porteiro chefe, caso entrasse em contato comigo. Não imaginava o que estava por vir...
          Meu telefone não parava de chamar. O dia inteiro era por conta das ligações. Você ligou para o senhor Godofredo? Não! Não, este número mudou. deixe o seu recado! Pelo número de ligações para ele, pude compor em minha cabeça um escopo de quem se tratava. O homem, que devia viver só, era um sedutor, imaginei. Expliquei o caso da troca de números, incontáveis vezes, sempre para vozes femininas melosas, ardentes,  ansiosas, desejosas, apaixonadas ou chorosas. Elas não entendiam direito como tudo acontecera. Eu explicava sobre a mudança de número, feita pela operadora... Principalmente à noite, em que eu precisava dormir o telefone não parava. Eu, tão exausta, assim mesmo atendia, sempre pensando na possibilidade de uma emergência real. Mas não me deixavam concluir. Gritavam exasperadas: - Quem era essa operadora, afinal? Algumas histéricas pensavam tratar-se de alguma mulher, o que me assustava mais ainda. Eu tinha comprado aquele linha que vinha com o vício de uns cem números de conquistas e confidências.  Um  rol de desastres afetivo. Um telefone afeito a todo tipo de sentimento e humor feminino: ciúmes, traições, mágoas, saudades, rancores, vingança, vingança, vingança... Muitas vozes de mulheres diferentes... Uma delas deixou um recado bem humorado (coisa bem rara), na secretária eletrônica: - Meu Deus... Da última vez que nos falamos seu nome era Godot e não tinha nenhuma mulher em sua casa... E você não tinha esse embrulho inteiro aí... “o embrulho, suponho, sou eu e os dois filhos, cujos nomes também constam na mensagem da secretária eletrônica, dando ciência da troca”. Outra ligou às seis da manhã, de uma noite em claro, como ela mesma disse e vociferou alguma coisa como “não acredito que você está fugindo de mim, eu esperei a noite inteira, seu desgraçado”! E me deixou esperando a noite inteira, infeliz! ”E bateu o telefone na cara de Godot”. Ou seja: na cara da minha secretária eletrônica! Nunca poderia imaginar: Seu Godofredo era Godot.
           Mas a que me deu trabalho, porque me antecipei à secretária, por irritação, foi Ana. Já estava cansada de ligações para o tal Godofredo. Eu tinha me tornado uma base de recados do sujeito. Meu tempo em casa era quase todo para atender ligações...
           Tocou, mais uma vez... Imediatamente atendi como se pressentisse a presença de mais uma mulher histérica, apreensiva, maluca. Havia lágrimas do outro lado da linha, senti pelo nariz fungando. Ela não deve ser fácil, a notar pelo tom da voz, pensei. Parecia aflita, nervosa e imagino em que palpos de aranha o sujeito se meteu...
             - Alô? Atendi a milésima ligação do dia.
          - Quem fala? - Perguntou a moça desconfiada, com uma voz quase infantil. Eu percebi que ela estava à beira do pranto.
            - Sim... Quer falar com quem?
            - É da casa do Godot? Porque você está com o número do Godot? Quem é você, afinal? Eu quero falar com o Godot!... E a voz só ia aumentando, alimentada pelo desespero.
         - Era isto que eu queria explicar, minha senhora... Estou em minha casa e este número não é mais...
        - E você acha que vou ficar ouvindo explicações de uma mulher que nem conheço? Chama o Godot, por favor!
       - Minha senhora, aqui é a minha casa, não é a casa de Godot. A operadora trocou os números...
         - Que operadora é essa? E qual é o número do Godot, então?
      - Não tenho o número atual dele, mas assim que ele ligar, para desvendar toda esta confusão de troca de linhas, eu repasso o seu recado, está bem?Agora ela estava realmente furiosa com as minhas tentativas de explicação:
       - E você quer que eu acredite que você não sabe o número dele e nem o conhece? Você quer me despistar, livrar-se de mim... Agora deixa eu te explicar uma coisa: meu nome é Ana e Godot sabe muito bem quem eu sou. Chama ele, por favor!... Chama aquele desgraçado, pelo amor de Deus!... Aquele, “por favor," da moça era uma ordem e não mais uma súplica.
       - Olha!... Eu vou ter que desligar; já tentei explicar o que aconteceu... Já me dispus a anotar o seu recado. Caso ele tenha a inteligência de ligar para o número antigo dele... Se a senhora não entende, problema seu, eu preciso trabalhar e a senhora me atrapalha... Vou desligar!
      - Desliga mesmo! Está inventando. Está fingindo que é a empregada? Foge! Mas me diz: - O que você é dele, afinal? A última conquista? Uma amante? Você é o último brinquedinho dele? Pois saiba que é isto mesmo que você é: um brinquedinho! Vai enjoar e jogar fora... Vai deixar você esperando, esperando... Ele “te” contou de mim? Que temos planos? Vou contar... E começou uma narrativa em meio ao pranto que me deixou confusa e, de certa forma, penalizada... Eu sempre fui uma mulher prática, emancipada e não acreditava existirem mais mulheres tão ingênuas e românticas.
      - Godot entrou na minha vida assim, sem pedir licença e sem saber mesmo que entrava. Ele invadiu a minha vida, com desenvoltura depois de uma observação que eu fiz sobre sua voz. Ele era uma voz; a perfeição da voz. Tudo se resumia naquela voz estrondosa, arrepiante. Foi uma ligação errada que atendi; era dele e, no instante que ouvi a voz dele, perdi a razão e o ar... Admirável voz... Não acha? Dá arrepios... Então, está me ouvindo?
         - Sim, estou prestando atenção, mas nunca ouvi a voz desse tal senhor Godot... Não sei de que isto vai adiantar; não posso fazer nada para resolver seu problema. Melhor tentar se acalmar... Mas como era tola a pobre moça, pensei.
          - Acalmar como, se você está enfiada na casa dele?... Eu e ele estamos juntos há quatro anos, temos planos... Temos uma vida...
          - Mas eu não tenho nada com isso. Nem conheço esse tal Godot, minha senhora. Preciso desligar!...
      - Não, por favor, não desligue. Preciso contar como nos conhecemos... Agora ela pedia, desesperadamente, com a voz diminuindo, diminuindo.
      - Desde que fale bem rapidinho; tenho um trabalho para entregar ainda hoje...  Sim... Não pode resumir? Conclui que a explicação seria muito longa. A pobre era detalhista... Uma tola romântica e prolixa.
       - Eu tinha pensamentos péssimos sobre o que fazer com aquilo que chamavam vida. Não havia mais aspirações. Queria qualquer coisa para preencher minha desesperada expectativa e para iludir o tédio dos dias vazios e sempre iguais. Mas então, eis que surge Godot! Uma ligação errada. Eu procurava um cardiologista; pois uma confusão de ligações e acabei “trombando” com ele. Fiz uma ligação para o cardiologista... Creio que me enganei com a numeração. Alguém atendeu e prendeu o telefone sem falar nada. Achei estranho e fiquei desconcertada com a abrupta reação de respirarem no outro lado da linha, em silêncio. Uma espera longa no telefone. Depois de  minutos, sem ninguém falar, entrou uma voz forte, do outro lado. Assim que ouvi a voz gelei. Assustadoramente linda... Se é que não há contradição entre o medo e o prazer que senti ao mesmo tempo, ao ouvi-lo. A partir da primeira ligação, por engano, passamos a nos falar regularmente pelo telefone...  Nunca sem antes me deixar esperando. Ele respirando do outro lado da linha. Dizia que estava ocupado, em outra ligação. Eu esperava. Ele sempre muito ocupado. Não era sonho, era muito real. Eu ligava para esse número que a senhora está usando. Entende por que não posso ficar sem o número dele?
             - Sim, agora entendi, mas deixa-me desligar... Se ele tiver a boa vontade e a inteligência de ligar para cá, dou o seu recado. Deixa o seu nome, o seu telefone; eu repasso. Eu precisava acabar com aquela lamúria.
             - Não, por favor, preciso contar como foi...      
          - Entendo, sinto muito mesmo... Mas não tenho mesmo como ajudá-la. Não conheço esse sujeito, juro! E passei a imaginar o que teria de especial o tal Godofredo, o Godot!... O que o fazia ser procurado, perseguido, por tantas mulheres?
         Está me ouvindo? Godot entrou em minha vida... Finalmente eu me sentia feliz. Alguém me ouvindo do outro lado. Eu sentindo a respiração dele. Havia vida. Era muito real! Entende agora, porque preciso desesperadamente encontrá-lo?
        - Entendo... Poderia me dar seu nome e seu número? Darei seu recado com o máximo prazer. Mas agora me desculpe, preciso desligar...
       Eu estava curiosa, mas eu não tinha tempo para ouvir os planos dela... Mesmo porque eu estava tão nervosa que poderia soltar uma gargalhada, ou mesmo chorar sem qualquer explicação e ia magoar a moça sem que isto fizesse sentido para mim. Não me faria bem. A ligação conseguiu me emocionar e fiquei atribulada entre duas sensações distintas. Melhor desligar... E depois, eu estava realmente penalizada com a aflição dela. Não sabia dizer por qual razão eu me comovia com a situação da mulher do outro lado da linha.
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         Trim. Ouço a campainha e saio correndo. Trim. "Droga!" Trim. Largo o leite fervendo. Trim. Tropeço no tapete. Trim. Derrubo o telefone. Trim. "Alô?" Droga. É engano. Mas isto é o dia inteiro, que inferno! O mais estranho é que, a partir da ligação de Anna, toda vez que o meu telefone toca, o meu coração dá um sobressalto, acelera e me deixa sem fôlego. Perco a razão e o ar.
Não tenho mais paz... 
Também eu vivo esperando Godot.
Autora: Valéria Áureo