Trim. Ouço o telefone.
Trim. "Droga!" Trim. Largo o leite fervendo. Trim. Tropeço no tapete.
Trim. Derrubo o telefone. Trim.
- Alô? Era engano... Mais uma vez, engano.
- Alô? Era engano... Mais uma vez, engano.
Trim. Mais uma vez. Não tenho tempo de atender. Isto é uma gravação. Por favor, aguarde na linha. Este telefone mudou; aqui é da casa de
Anna, Carlos e Luís. Deixe sua gravação. Quando puder eu retornarei. Obrigada!”
Tudo questão de operadoras... Reflexo das
agruras da globalização... Por isso atualmente tenho um número novo de
telefone; foi impossível transferir o meu número para o novo endereço, apesar
dos meus apelos. Apesar dos celulares, ainda insisto em ter minha linha de
telefone fixo. Tinha a sensação de mais conforto. Qual!... Mil horas ouvindo
músicas da operadora. Mil chamadas nas
horas mais inoportunas. Estão cada dia mais insuportáveis! Tédio da moça que me atendia. Gravações. Irritação
minha de imaginarem que quero ouvir mil vezes a mesma música. Antevia a série
de problemas que teria por conta da alteração. Acabava de me mudar e não me
cansava de atender ligações para o antigo titular da conta telefônica, que
agora era minha. Também eu tinha perdido o meu número original. Ele me serviu
durante anos e tinha acompanhado todos os acontecimentos mais expressivos da minha
vida, intimamente narrados via satélite. Centenas de cartões com meu número
antigo foram jogados fora. A máquina da existência global girando, girando e
jogando meus cartões fora... Nem quis imaginar para onde iriam, agora dispersados...
Seu Godofredo era
o titular da linha antiga, que agora era minha. Não me incomodei com a ajuda
que daria a Seu Godofredo, a quem nunca vi; comprometi-me a repassar os recados, conforme um bilhete com o pedido deixado com o porteiro chefe, caso entrasse em contato
comigo. Não imaginava o que estava por vir...
Meu telefone não
parava de chamar. O dia inteiro era por conta das ligações. Você ligou para o senhor
Godofredo? Não! Não, este número mudou. deixe o seu recado! Pelo número de ligações para ele, pude compor em minha cabeça um escopo de quem se tratava. O
homem, que devia viver só, era um sedutor, imaginei. Expliquei o caso da troca
de números, incontáveis vezes, sempre para vozes femininas melosas, ardentes,
ansiosas, desejosas, apaixonadas ou chorosas. Elas não entendiam direito como tudo acontecera. Eu
explicava sobre a mudança de número, feita pela operadora... Principalmente à
noite, em que eu precisava dormir o telefone não parava. Eu, tão exausta, assim
mesmo atendia, sempre pensando na possibilidade de uma emergência real. Mas não
me deixavam concluir. Gritavam exasperadas: - Quem era essa operadora, afinal? Algumas
histéricas pensavam tratar-se de alguma mulher, o que me assustava mais ainda.
Eu tinha comprado aquele linha que vinha com o vício de uns cem números de
conquistas e confidências. Um rol de desastres afetivo. Um telefone afeito a todo tipo de sentimento e humor
feminino: ciúmes, traições, mágoas, saudades, rancores, vingança, vingança,
vingança... Muitas vozes de mulheres diferentes... Uma delas deixou um recado
bem humorado (coisa bem rara), na secretária eletrônica: - Meu Deus... Da
última vez que nos falamos seu nome era Godot e não tinha nenhuma mulher em sua
casa... E você não tinha esse embrulho inteiro aí... “o embrulho, suponho, sou
eu e os dois filhos, cujos nomes também constam na mensagem da secretária
eletrônica, dando ciência da troca”. Outra ligou às seis da manhã, de uma noite
em claro, como ela mesma disse e vociferou alguma coisa como “não acredito que
você está fugindo de mim, eu esperei a noite inteira, seu desgraçado”! E me
deixou esperando a noite inteira, infeliz! ”E bateu o telefone na cara de
Godot”. Ou seja: na cara da minha secretária eletrônica! Nunca poderia
imaginar: Seu Godofredo era Godot.
Mas a que me deu
trabalho, porque me antecipei à secretária, por irritação, foi Ana. Já estava
cansada de ligações para o tal Godofredo. Eu tinha me tornado uma base de
recados do sujeito. Meu tempo em casa era quase todo para atender ligações...
Tocou, mais uma vez... Imediatamente atendi como se pressentisse a presença de mais uma mulher histérica, apreensiva, maluca. Havia lágrimas do outro lado da linha, senti pelo nariz fungando. Ela não deve ser fácil, a notar pelo tom da voz, pensei. Parecia aflita, nervosa e imagino em que palpos de aranha o sujeito se meteu...
Tocou, mais uma vez... Imediatamente atendi como se pressentisse a presença de mais uma mulher histérica, apreensiva, maluca. Havia lágrimas do outro lado da linha, senti pelo nariz fungando. Ela não deve ser fácil, a notar pelo tom da voz, pensei. Parecia aflita, nervosa e imagino em que palpos de aranha o sujeito se meteu...
- Alô? Atendi a
milésima ligação do dia.
- Quem fala? - Perguntou a moça
desconfiada, com uma voz quase infantil. Eu percebi que ela estava à beira do
pranto.
- Sim... Quer falar
com quem?
- É da casa do Godot? Porque você está com o número do Godot?
Quem é você, afinal? Eu quero falar com o Godot!... E a voz só ia aumentando, alimentada pelo desespero.
- Era isto que eu
queria explicar, minha senhora... Estou em minha casa e este número não é mais...
- E você acha que vou ficar ouvindo explicações
de uma mulher que nem conheço? Chama o Godot, por favor!
- Minha senhora, aqui
é a minha casa, não é a casa de Godot. A operadora trocou os números...
- Que operadora é
essa? E qual é o número do Godot,
então?
- Não tenho o número
atual dele, mas assim que ele ligar, para desvendar toda esta confusão de troca
de linhas, eu repasso o seu recado, está bem?Agora ela estava realmente furiosa
com as minhas tentativas de explicação:
- E você quer que eu acredite que você não sabe
o número dele e nem o conhece? Você quer me despistar, livrar-se de mim...
Agora deixa eu te explicar uma coisa: meu nome é Ana e Godot sabe muito bem
quem eu sou. Chama ele, por favor!... Chama aquele desgraçado, pelo amor
de Deus!... Aquele, “por favor," da moça era uma ordem e não mais uma
súplica.
- Olha!... Eu vou ter
que desligar; já tentei explicar o que aconteceu... Já me dispus a anotar o seu
recado. Caso ele tenha a inteligência de ligar para o número antigo dele... Se
a senhora não entende, problema seu, eu preciso trabalhar e a senhora me
atrapalha... Vou desligar!
- Desliga mesmo! Está inventando. Está
fingindo que é a empregada? Foge! Mas me diz: - O que você é dele, afinal? A
última conquista? Uma amante? Você é o último brinquedinho dele? Pois saiba que
é isto mesmo que você é: um brinquedinho! Vai enjoar e jogar fora... Vai deixar
você esperando, esperando... Ele “te” contou de mim? Que temos planos? Vou
contar... E começou uma narrativa em meio ao pranto que me deixou
confusa e, de certa forma, penalizada... Eu sempre fui uma mulher prática,
emancipada e não acreditava existirem mais mulheres tão ingênuas e românticas.
- Godot entrou na minha vida assim, sem pedir
licença e sem saber mesmo que entrava. Ele invadiu a minha vida, com
desenvoltura depois de uma observação que eu fiz sobre sua voz. Ele era uma voz; a perfeição da voz. Tudo se resumia naquela voz estrondosa, arrepiante. Foi uma ligação errada que atendi; era dele e,
no instante que ouvi a voz dele, perdi a razão e o ar... Admirável voz... Não acha? Dá arrepios...
Então, está me ouvindo?
- Sim,
estou prestando atenção, mas nunca ouvi a voz desse tal senhor Godot... Não sei
de que isto vai adiantar; não posso fazer nada para resolver seu problema.
Melhor tentar se acalmar... Mas como era tola a pobre moça, pensei.
- Acalmar como, se você está enfiada na casa
dele?... Eu e ele estamos juntos há quatro anos, temos planos... Temos uma
vida...
- Mas eu não tenho nada com isso. Nem conheço esse
tal Godot, minha senhora. Preciso desligar!...
- Não, por favor, não desligue. Preciso contar
como nos conhecemos... Agora ela pedia, desesperadamente, com a voz diminuindo, diminuindo.
- Desde que fale bem
rapidinho; tenho um trabalho para entregar ainda hoje... Sim...
Não pode resumir? Conclui que a explicação seria muito longa. A pobre era
detalhista... Uma tola romântica e prolixa.
- Eu tinha pensamentos péssimos sobre o que fazer com aquilo que
chamavam vida. Não havia mais aspirações. Queria qualquer coisa para preencher minha desesperada expectativa e para iludir o tédio dos dias vazios e sempre iguais. Mas então, eis que surge Godot! Uma ligação errada. Eu procurava
um cardiologista; pois uma confusão de ligações e acabei “trombando” com ele.
Fiz uma ligação para o cardiologista... Creio que me enganei com a numeração.
Alguém atendeu e prendeu o telefone sem falar nada. Achei estranho e fiquei
desconcertada com a abrupta reação de respirarem no outro lado da linha, em
silêncio. Uma espera longa no telefone. Depois de minutos, sem ninguém falar, entrou uma
voz forte, do outro lado. Assim que ouvi a voz gelei. Assustadoramente linda...
Se é que não há contradição entre o medo e o prazer que senti ao mesmo tempo,
ao ouvi-lo. A partir da primeira ligação, por engano, passamos a nos falar
regularmente pelo telefone... Nunca sem
antes me deixar esperando. Ele respirando do outro lado da linha. Dizia que
estava ocupado, em outra ligação. Eu esperava. Ele sempre muito ocupado. Não era sonho, era muito real. Eu
ligava para esse número que a senhora está usando. Entende por que não posso
ficar sem o número dele?
- Sim, agora entendi, mas deixa-me desligar...
Se ele tiver a boa vontade e a inteligência de ligar para cá, dou o seu recado.
Deixa o seu nome, o seu telefone; eu repasso. Eu precisava acabar com aquela
lamúria.
- Não, por favor, preciso contar como foi...
- Entendo,
sinto muito mesmo... Mas não tenho mesmo como ajudá-la. Não conheço esse
sujeito, juro! E passei a imaginar o que teria de especial o tal Godofredo, o
Godot!... O que o fazia ser procurado, perseguido, por tantas mulheres?
Está me ouvindo? Godot entrou em minha vida... Finalmente eu me sentia
feliz. Alguém me ouvindo do outro lado. Eu sentindo a respiração dele. Havia
vida. Era muito real! Entende agora, porque preciso desesperadamente encontrá-lo?
- Entendo... Poderia
me dar seu nome e seu número? Darei seu recado com o máximo prazer. Mas agora me desculpe, preciso
desligar...
Eu estava curiosa,
mas eu não tinha tempo para ouvir os planos dela... Mesmo porque eu estava tão
nervosa que poderia soltar uma gargalhada, ou mesmo chorar sem qualquer
explicação e ia magoar a moça sem que isto fizesse sentido para mim. Não me
faria bem. A ligação conseguiu me emocionar e fiquei atribulada entre duas
sensações distintas. Melhor desligar... E depois, eu estava realmente
penalizada com a aflição dela. Não sabia dizer por qual razão eu me comovia com a situação da mulher do outro lado da linha.
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Trim.
Ouço a campainha e saio correndo. Trim. "Droga!" Trim. Largo o leite
fervendo. Trim. Tropeço no tapete. Trim. Derrubo o telefone. Trim.
"Alô?" Droga. É engano. Mas isto é o dia inteiro, que inferno! O mais estranho é que, a partir da ligação de Anna, toda
vez que o meu telefone toca, o meu coração dá um sobressalto, acelera e me
deixa sem fôlego. Perco a razão e o ar.
Não tenho mais paz...
Também eu vivo esperando Godot.
Também eu vivo esperando Godot.
Autora:
Valéria Áureo