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quarta-feira, 15 de março de 2017

En attendant Godot ( Esperando Godot)


Ilustração: Internet


     Trim. Ouço o telefone. Trim. "Droga!" Trim. Largo o leite fervendo. Trim. Tropeço no tapete. Trim. Derrubo o telefone. Trim. 
Alô? Era engano... Mais uma vez, engano.
Trim. Mais uma vez. Não tenho tempo de atender. Isto é uma gravação. Por favor, aguarde na linha. Este telefone mudou; aqui é da casa de Anna, Carlos e Luís. Deixe sua gravação. Quando puder eu retornarei. Obrigada!”
Tudo questão de operadoras... Reflexo das agruras da globalização... Por isso atualmente tenho um número novo de telefone; foi impossível transferir o meu número para o novo endereço, apesar dos meus apelos. Apesar dos celulares, ainda insisto em ter minha linha de telefone fixo. Tinha a sensação de mais conforto. Qual!... Mil horas ouvindo músicas da operadora.  Mil chamadas nas horas mais inoportunas. Estão cada dia mais insuportáveis! Tédio da moça que me atendia. Gravações. Irritação minha de imaginarem que quero ouvir mil vezes a mesma música. Antevia a série de problemas que teria por conta da alteração. Acabava de me mudar e não me cansava de atender ligações para o antigo titular da conta telefônica, que agora era minha. Também eu tinha perdido o meu número original. Ele me serviu durante anos e tinha acompanhado todos os acontecimentos mais expressivos da minha vida, intimamente narrados via satélite. Centenas de cartões com meu número antigo foram jogados fora. A máquina da existência global girando, girando e jogando meus cartões fora... Nem quis imaginar para onde iriam, agora dispersados...
          Seu Godofredo era o titular da linha antiga, que agora era minha. Não me incomodei com a ajuda que daria a Seu Godofredo, a quem nunca vi; comprometi-me a repassar os recados, conforme um bilhete  com o pedido deixado com o porteiro chefe, caso entrasse em contato comigo. Não imaginava o que estava por vir...
          Meu telefone não parava de chamar. O dia inteiro era por conta das ligações. Você ligou para o senhor Godofredo? Não! Não, este número mudou. deixe o seu recado! Pelo número de ligações para ele, pude compor em minha cabeça um escopo de quem se tratava. O homem, que devia viver só, era um sedutor, imaginei. Expliquei o caso da troca de números, incontáveis vezes, sempre para vozes femininas melosas, ardentes,  ansiosas, desejosas, apaixonadas ou chorosas. Elas não entendiam direito como tudo acontecera. Eu explicava sobre a mudança de número, feita pela operadora... Principalmente à noite, em que eu precisava dormir o telefone não parava. Eu, tão exausta, assim mesmo atendia, sempre pensando na possibilidade de uma emergência real. Mas não me deixavam concluir. Gritavam exasperadas: - Quem era essa operadora, afinal? Algumas histéricas pensavam tratar-se de alguma mulher, o que me assustava mais ainda. Eu tinha comprado aquele linha que vinha com o vício de uns cem números de conquistas e confidências.  Um  rol de desastres afetivo. Um telefone afeito a todo tipo de sentimento e humor feminino: ciúmes, traições, mágoas, saudades, rancores, vingança, vingança, vingança... Muitas vozes de mulheres diferentes... Uma delas deixou um recado bem humorado (coisa bem rara), na secretária eletrônica: - Meu Deus... Da última vez que nos falamos seu nome era Godot e não tinha nenhuma mulher em sua casa... E você não tinha esse embrulho inteiro aí... “o embrulho, suponho, sou eu e os dois filhos, cujos nomes também constam na mensagem da secretária eletrônica, dando ciência da troca”. Outra ligou às seis da manhã, de uma noite em claro, como ela mesma disse e vociferou alguma coisa como “não acredito que você está fugindo de mim, eu esperei a noite inteira, seu desgraçado”! E me deixou esperando a noite inteira, infeliz! ”E bateu o telefone na cara de Godot”. Ou seja: na cara da minha secretária eletrônica! Nunca poderia imaginar: Seu Godofredo era Godot.
           Mas a que me deu trabalho, porque me antecipei à secretária, por irritação, foi Ana. Já estava cansada de ligações para o tal Godofredo. Eu tinha me tornado uma base de recados do sujeito. Meu tempo em casa era quase todo para atender ligações...
           Tocou, mais uma vez... Imediatamente atendi como se pressentisse a presença de mais uma mulher histérica, apreensiva, maluca. Havia lágrimas do outro lado da linha, senti pelo nariz fungando. Ela não deve ser fácil, a notar pelo tom da voz, pensei. Parecia aflita, nervosa e imagino em que palpos de aranha o sujeito se meteu...
             - Alô? Atendi a milésima ligação do dia.
          - Quem fala? - Perguntou a moça desconfiada, com uma voz quase infantil. Eu percebi que ela estava à beira do pranto.
            - Sim... Quer falar com quem?
            - É da casa do Godot? Porque você está com o número do Godot? Quem é você, afinal? Eu quero falar com o Godot!... E a voz só ia aumentando, alimentada pelo desespero.
         - Era isto que eu queria explicar, minha senhora... Estou em minha casa e este número não é mais...
        - E você acha que vou ficar ouvindo explicações de uma mulher que nem conheço? Chama o Godot, por favor!
       - Minha senhora, aqui é a minha casa, não é a casa de Godot. A operadora trocou os números...
         - Que operadora é essa? E qual é o número do Godot, então?
      - Não tenho o número atual dele, mas assim que ele ligar, para desvendar toda esta confusão de troca de linhas, eu repasso o seu recado, está bem?Agora ela estava realmente furiosa com as minhas tentativas de explicação:
       - E você quer que eu acredite que você não sabe o número dele e nem o conhece? Você quer me despistar, livrar-se de mim... Agora deixa eu te explicar uma coisa: meu nome é Ana e Godot sabe muito bem quem eu sou. Chama ele, por favor!... Chama aquele desgraçado, pelo amor de Deus!... Aquele, “por favor," da moça era uma ordem e não mais uma súplica.
       - Olha!... Eu vou ter que desligar; já tentei explicar o que aconteceu... Já me dispus a anotar o seu recado. Caso ele tenha a inteligência de ligar para o número antigo dele... Se a senhora não entende, problema seu, eu preciso trabalhar e a senhora me atrapalha... Vou desligar!
      - Desliga mesmo! Está inventando. Está fingindo que é a empregada? Foge! Mas me diz: - O que você é dele, afinal? A última conquista? Uma amante? Você é o último brinquedinho dele? Pois saiba que é isto mesmo que você é: um brinquedinho! Vai enjoar e jogar fora... Vai deixar você esperando, esperando... Ele “te” contou de mim? Que temos planos? Vou contar... E começou uma narrativa em meio ao pranto que me deixou confusa e, de certa forma, penalizada... Eu sempre fui uma mulher prática, emancipada e não acreditava existirem mais mulheres tão ingênuas e românticas.
      - Godot entrou na minha vida assim, sem pedir licença e sem saber mesmo que entrava. Ele invadiu a minha vida, com desenvoltura depois de uma observação que eu fiz sobre sua voz. Ele era uma voz; a perfeição da voz. Tudo se resumia naquela voz estrondosa, arrepiante. Foi uma ligação errada que atendi; era dele e, no instante que ouvi a voz dele, perdi a razão e o ar... Admirável voz... Não acha? Dá arrepios... Então, está me ouvindo?
         - Sim, estou prestando atenção, mas nunca ouvi a voz desse tal senhor Godot... Não sei de que isto vai adiantar; não posso fazer nada para resolver seu problema. Melhor tentar se acalmar... Mas como era tola a pobre moça, pensei.
          - Acalmar como, se você está enfiada na casa dele?... Eu e ele estamos juntos há quatro anos, temos planos... Temos uma vida...
          - Mas eu não tenho nada com isso. Nem conheço esse tal Godot, minha senhora. Preciso desligar!...
      - Não, por favor, não desligue. Preciso contar como nos conhecemos... Agora ela pedia, desesperadamente, com a voz diminuindo, diminuindo.
      - Desde que fale bem rapidinho; tenho um trabalho para entregar ainda hoje...  Sim... Não pode resumir? Conclui que a explicação seria muito longa. A pobre era detalhista... Uma tola romântica e prolixa.
       - Eu tinha pensamentos péssimos sobre o que fazer com aquilo que chamavam vida. Não havia mais aspirações. Queria qualquer coisa para preencher minha desesperada expectativa e para iludir o tédio dos dias vazios e sempre iguais. Mas então, eis que surge Godot! Uma ligação errada. Eu procurava um cardiologista; pois uma confusão de ligações e acabei “trombando” com ele. Fiz uma ligação para o cardiologista... Creio que me enganei com a numeração. Alguém atendeu e prendeu o telefone sem falar nada. Achei estranho e fiquei desconcertada com a abrupta reação de respirarem no outro lado da linha, em silêncio. Uma espera longa no telefone. Depois de  minutos, sem ninguém falar, entrou uma voz forte, do outro lado. Assim que ouvi a voz gelei. Assustadoramente linda... Se é que não há contradição entre o medo e o prazer que senti ao mesmo tempo, ao ouvi-lo. A partir da primeira ligação, por engano, passamos a nos falar regularmente pelo telefone...  Nunca sem antes me deixar esperando. Ele respirando do outro lado da linha. Dizia que estava ocupado, em outra ligação. Eu esperava. Ele sempre muito ocupado. Não era sonho, era muito real. Eu ligava para esse número que a senhora está usando. Entende por que não posso ficar sem o número dele?
             - Sim, agora entendi, mas deixa-me desligar... Se ele tiver a boa vontade e a inteligência de ligar para cá, dou o seu recado. Deixa o seu nome, o seu telefone; eu repasso. Eu precisava acabar com aquela lamúria.
             - Não, por favor, preciso contar como foi...      
          - Entendo, sinto muito mesmo... Mas não tenho mesmo como ajudá-la. Não conheço esse sujeito, juro! E passei a imaginar o que teria de especial o tal Godofredo, o Godot!... O que o fazia ser procurado, perseguido, por tantas mulheres?
         Está me ouvindo? Godot entrou em minha vida... Finalmente eu me sentia feliz. Alguém me ouvindo do outro lado. Eu sentindo a respiração dele. Havia vida. Era muito real! Entende agora, porque preciso desesperadamente encontrá-lo?
        - Entendo... Poderia me dar seu nome e seu número? Darei seu recado com o máximo prazer. Mas agora me desculpe, preciso desligar...
       Eu estava curiosa, mas eu não tinha tempo para ouvir os planos dela... Mesmo porque eu estava tão nervosa que poderia soltar uma gargalhada, ou mesmo chorar sem qualquer explicação e ia magoar a moça sem que isto fizesse sentido para mim. Não me faria bem. A ligação conseguiu me emocionar e fiquei atribulada entre duas sensações distintas. Melhor desligar... E depois, eu estava realmente penalizada com a aflição dela. Não sabia dizer por qual razão eu me comovia com a situação da mulher do outro lado da linha.
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         Trim. Ouço a campainha e saio correndo. Trim. "Droga!" Trim. Largo o leite fervendo. Trim. Tropeço no tapete. Trim. Derrubo o telefone. Trim. "Alô?" Droga. É engano. Mas isto é o dia inteiro, que inferno! O mais estranho é que, a partir da ligação de Anna, toda vez que o meu telefone toca, o meu coração dá um sobressalto, acelera e me deixa sem fôlego. Perco a razão e o ar.
Não tenho mais paz... 
Também eu vivo esperando Godot.
Autora: Valéria Áureo

sexta-feira, 10 de março de 2017

Madrugada





                                                                       Fonte: YouTube

 


A madrugada de sábado inquietava o coração de Anna, só porque tinha inscrito uma história diferente nos tediosos dias regulares... Na noite de sexta, ainda rolava na cama. Devia ser uma hora, já na virada da noite em dia e uma explosão detonou alguma coisa na portaria do seu prédio. O estrondo acordou todos e as luzes de cada apartamento foram se acendendo, acompanhadas de vozes arrastadas num refrão de sobressaltos. Imprimiam uma iluminação sincronizada de uma cordilheira crescente na escuridão e angústias pontilhadas em janelas procurando explicações... O que houve? Ouviram? Que barulho é esse? Uma estrondosa batida de carro, compacta e seca, limitada em segundos nos dois extremos e pronto. Novamente o vazio de muitas horas no quarto escuro. Anna vestiu-se às pressas e pelo interfone falou com o porteiro que confirmou:
- Foi isso mesmo, Dona Anna, bem aqui na portaria. O morador do nº. 702 ia entrar na garagem e uma moto com um casal apareceu do nada no escuro e eles se chocaram. Vi tudo, confirmava satisfeito, dando-se maior importância que ao caso. A moça da moto voou e caiu em cima do carro estacionado, bem na nossa entrada... O rapaz está no meio da rua. O porteiro investiu-se da vivacidade do repórter e inteirou-se dos detalhes, para contar a quem quisesse ouvir, afastando de si o papel inexpressivo de passar a noite na portaria sempre vazia. De certa forma se inscrevia no acontecimento com a volúpia de celebridade e ia mais longe, na história que ardilosamente criava. Tinha prazer nisso.
Anna nem esperou que ele terminasse a deliciada narrativa, que fazia dele um protagonista atento a minúcias, pensando já em confirmar a dor da desgraçada mãe da vítima. Anna desceu e ficou surpresa com a multidão em torno do acidente, que parecia deixar de ser um infortúnio. Parecia, para sua surpresa, uma improvisada confraternização de final de ano. Tudo muito claro, envolto em muita luz, apesar da noite... Havia muito movimento na rua. Alunos que matavam aula da Universidade Bennette, outros tantos migrando para o Armazém do Chope, porque era sexta-feira virando sábado. Muitos entrando no metrô, na habitual correria de voltar para casa, ou mesmo para um programa em qualquer lugar da zona Sul. Outros se amontoando parando para ver.
O que se via? A moto retorcida na calçada e a moça esparramada no meio fio, gritando alucinada com a perna quebrada, uma desencontrada da outra, e ela inteira envolta em sangue... O rapaz jazia inerte e as pessoas davam conta, em nervoso falatório, do que tinham visto ou imaginado ver. Versões iam surgindo conforme a capacidade inventiva do narrador que via aquilo que queria ver. As mulheres recém saídas de seus apartamentos, de suas camas quentes, tinham os cabelos desfeitos, roupão de chambre e sono manchando os olhos de rímel Elas quase não falavam, absortas na movimentação dos bombeiros emendando os feridos, diante de suas olheiras incrédulas. Os mais velhos concluíam pela irresponsabilidade dos moços, pela bebida, pela droga, velocidade e todos os "vícios" da idade, sem deixar de atentar para uma massa branca e acinzentada no chão que, asseguravam peremptórios, serem os miolos do casal. Tinham certeza... Eram miolos dos desmiolados, resmungavam os mais velhos em solúvel babugem na barra do pijama. Tudo num único pacote de final de semana: juventude, piercing, chope, cabelos lisos de chapinha, tatuagem, cinema, coca, sexo, preservativos, motos e miolos esparramados... Bem que mereciam, sentenciava um carrasco em pijama e chinelos. Parecia cansado de arrastar o tempo e o descaso, coçando a cabeça calva, poucos restos de fios espetados para a cidade, sob os dedos nodosos, os olhos apertados, pouco vendo, na pressa que o fez esquecer os óculos... A esta altura da idade, nada mais importava para ele, nem mesmo a loucura dos jovens e o movimento de quadris que eles faziam na madrugada. 

Ao lado do velho rabugento estava um homem de bermuda, aborrecido com o sono perdido àquela hora e a insônia comprometendo o humor e os olhos arregalados. Mas por que mesmo tinha inventado de sair da cama?... Antes que amanhecesse, ou que fosse muito tarde, ele precisava mesmo era só de dormir. O acidente não estava previsto, mas... Que se danassem os motoqueiros malucos!...
Sexta-feira e muito tarde, quando Anna deveria estar dormindo. Há corpos no chão, entre o asfalto e o trânsito invertido, como também se inverteu a ordem de sorrir e de prazer dentro do coração dos dois amantes agora estirados... Ela vê partes de paredes cimentadas e muros e prédios a encobrir dos seus olhos o mar. O mar distante apenas em duas paralelas ao Aterro. Anna percebe uma luz bem mais distante, onde nasce o verão na Praia do Flamengo e nadam sereias, antes que amanheça e os faróis se apaguem. Jamais se vestirá com as cores do inverno, esta paisagem noturna, urbana, clara de luzes artificiais acesas ao mesmo tempo; exageradamente clareada pelo neon das fachadas das choperias, que afasta as pessoas dessa praia, levando-as a naufragar em terra.
- Quer uma água? Perguntou a senhora pronta para servir com uma garrafa, sorrisos e copos descartáveis, enquanto fazia tudo para sua solidão desfragmentar-se naquela noite diferente. Estimulava detalhes e ideias nas minúcias do ocorrido, para que todos permanecessem horas e horas, plantados no cenário do acidente. Precisava de companhia, mesmo que fosse brevemente naquela calçada de notívagos desconfortáveis e os dois feridos no chão... E bem na minha porta, a senhora da garrafa declarava quase feliz... E bem na minha porta, estão vendo?... E o que ela mais temia, nem era a provável morte dos acidentados. Era retornar solitária para sua casa vazia e enfrentar sua homeopática morte, ainda dentro do elevador; coisa que aguardava todos os dias.
- Não... Obrigado, agora não... Bebo muitas garrafas durante o dia. É bom para os rins e para tudo. Litros e litros... É a resposta do homem rabugento, que vai a caminho de casa, já cambaleando de sono e de ficar tanto tempo de pé, sem se entregar à velhice inevitável e à aposentadoria assassina. Mas foi afirmando, sem pensar ou se incomodar com a delicadeza dela, que vira miolos no asfalto, uma pasta de cérebro dos jovens desmiolados. Era ali que foram parar suas ideias... Ofereceu água a mais outro... E foi outro homem, o de bermudas, que prendeu a atenção dela, que queria alguém para falar, mesmo que de assuntos mórbidos. Foi com trechos de conversas esquisitas de doenças e esquizofrenias que eles se prenderam por muitos minutos. Ele deixou claro para ela que gostaria realmente era de seguir com os bombeiros, só para confirmar com os paramédicos se aquilo tão esquisito e pegajoso no chão era ou não partícula dos miolos, como assegurava o velhote que tinha ido embora. Depois de alguns minutos decidiu, imprevisível para si mesmo, entrar no Armazém do Chope atraído pela claridade, vozerio e uma conversa nova... Antes virou-se para a dona da garrafa e perguntou, só por perguntar, tão desacostumado que estava à sedução e à companhia das mulheres:
- Vem comigo, não vem?... A noite está perdida mesmo, não está? Nem vai dar mais para pegar no sono... Que adianta ficar na cama, rolando sem conseguir dormir, lembrando-se do que viu?...
E ela foi meio desajeitada, tão desacostumada a ser seduzida, deixando os copos e a garrafa nas mãos do porteiro... E, pensando que a noite não estava tão perdida, o seguiu, embora desacostumada da companhia de um homem.
Anna, a que sempre tem um sorriso apaixonante, percebe detalhes expressionistas em tudo que consegue olhar. Também segue para o Armazém. Esmiúça, reflete, aprecia a escuridão desvencilhada pela novidade do acidente, pela luz tíbia e pelo trenzinho correndo nos trilhos, bem lá no alto do restaurante. Mas que mania de prestar atenção em tudo, congelar fotografias instantâneas na cabeça sempre e fulgurantemente ocupada com pensamentos!...
Agora ela vê o sujeito que está sentado  à uma mesa, a abraçar a senhora da garrafa de água, enamorada, enquanto um homem de barba branca, óculos e nariz ligeiramente curvado, a observa também e bebe sozinho... Perto dele está mais um casal; mais dois, mais três casais improvisados de quarentões e cinquentões recém-descobertos na portaria do 88 da Rua Marquês de Abrantes. Uns combinam até muito bem, outros não...  Muitos não fazem o menor sentido. Fazem pares por acaso, organizados pela excentricidade do ocorrido na experiente noite, por conta do trágico e da lua costumeiramente alcoviteira. Enquanto isto Juarez, o prestativo garçom, passa de mesa em mesa, atento aos pedidos e às gorjetas, pronto a distribuir a sua simpatia diluída em chope…
Depois que os bombeiros se foram, as ruas ficaram desertas e o vento assobiou como se fosse uma pessoa vagando na escuridão, contornando todas as esquinas e ultrapassando o tempo; mas não conseguiu proibir que amanhecesse nem mesmo na Paissandu, na Senador Vergueiro e nas imediações da Praia do Flamengo.
O homem de bermuda tira, para surpresa da mulher, uma agenda do bolso da camisa e se exibe...
- Tenho todos os domingos ocupados... Mas anota o telefone da mulher da garrafa de água, intempestivamente apaixonada e jura que vai ligar ainda hoje, porque já está quase amanhecendo. Tudo dando muito certo, porque ambos moram no mesmo prédio, no mesmo bloco; ele no andar de cima do dela, vizinhos na vertical... E vai mesmo, porque a achou bela e jovial e bem humorada e ele já está enjoado de não ter mais mulher em casa, e mais enjoado ainda de estórias macabras, nomes de doenças, bulas de remédios e dietas sem fim; enjoado de ver filmes sem ter com quem comentar... Vai arrastá-la para todos os cinemas e, com mais tempo, vai alojá-la em sua cama, para sempre, porque também não aguenta mais viver sem amor, controlando a pressão arterial com Naprix... Todos os filmes, todas as ilusões quer compartilhar com ela, é isto. É certo que ela vai querer seguir junto, toda feliz em se ajeitar muito bem com ele, até mesmo só para comer uma pizza enquanto repartem entre si a vida e uma taça de vinho. Ela é romântica, acredita no amor e em horóscopo e adora cinema, como ele... Cuidadosa, ficará feliz em viver um novo romance e se apaixonará novamente... Quem sabe agora, definitivamente. Tão real e tão perfeito como no cinema, ela constata que o amor mora ao lado. Também não quer mais só ter solidão, trabalho e amarguras. Prefere ter uma nova história para escrever daqui por diante e um homem carinhoso na cama... Talvez seja apropriado ver Charles Chaplin, Charles Chaplin, Charles Chaplin… repete com pequenos pulinhos e palmas toda animada, como uma menina.
- Onde é que vamos ver isso? Eles já planejam preencher os sábados e a vida, daí para frente de maneira diferente... "Tempos Modernos". É isso. Tempos Modernos e seremos “ficantes”, o que acha?
O incansável garçom Juarez enche o copo de vidro, coloca-o sobre o balcão e desenha no ar um gesto enigmático: um misto de golpe marcial com elegância da bênção sacerdotal. Sinaliza com sua mímica artesanal para alguém sentado sozinho, avisando que está servido. O gesto que parecia uma bênção afinaria mais com um vinho, mas não faz mal, pensa Anna que se vira e vê um grupo de adolescentes com roupas ousadas; uma delas enverga um boné branco e uma minúscula saia…
Muitos já saem do Armazém... Sim! Alguns bêbados acreditam que estão flutuando no Passeio da Fama, pisando em estrelas que refletem a luz dos postes. Caminham cambaleando, como se sustentando um barril de chope, ou talvez um barril de pólvora nas pontas dos pés, equilibrando mil borbulhas subindo pela goela... Aonde vão? Perguntou o garçom, percebendo que saiam sem pagar... Mas não conseguiu alcançá-los.
Da mesa ao lado Anna ouviu: vou a caminho de casa, estou muito, muito… cansado. Ah! Espera! Gritou o vizinho do apartamento de Anna, que ela mal conhecia e que bebia sozinho e usava o celular. Escuta... Gritava no aparelho, a nossa vizinha vai te mandar beijos... Pelo celular... Querida!... Alô!
- Vem, Anna, manda um beijo para a minha mu... Mas Anna desvia o sorriso mudo, para bem longe do bêbado e da sua amada que ela nem sabe muito bem quem é.
O Bêbado vizinho insiste e volta a tentar uma conexão entre a esposa ao telefone e Anna; talvez quisesse que ela desse o testemunho de seu paradeiro para a mulher que tinha ficado em casa... Querida... Estou no Armazém do Chope, aqui na Marquês e Anna vai falar, insiste o bêbado... Anna vai te mandar um bei… mas ela bloqueia a investida do vizinho quase desconhecido, que pairava num fio invisível esticado entre ele e o celular. Ela apenas sorri para os outros, envergonhada, e se afasta dos casais recém-formados depois do acidente de moto.
Uma jovem sai do Armazém como se saísse do Club a Paris Hilton vestida de Britney Spears, equilibrando-se em incomensurável salto, altura artificial e olhos de cílios alongados, e boca e seios de expectativas de elegância e certeza de distorção da coluna... Mas os homens, principalmente os mais velhos, não tiram os olhos dela… A delicada Anna ri-se da invasão dos olhos dos homens. Invasões febris, incandescentes memórias joviais... Acha natural, humano, divertido, perceber como homens maduros se ressentem em envelhecer... Sente-se a falta dos comentários de palavras, mas o silêncio eloquente das bocas salivando, o olhar constante através de uma lente, com a espessura de outra representação da vida, falam bem mais. Velhos que se sentem meninos nessas audácias, confortando-se, uns com os outros, contam mentiras de conquistas, temendo na verdade conferir suas virilidades decadentes. Eles olham para as partes mais encantadoras da "Britney" equilibrista... Assim, comungando um olhar invasivo e obsceno, asseguram-se de seus desejos e a vitalidade do sexo em declínio... Mas teimam em continuar desejando mulheres tão jovens, ignorando a sabedoria e a capacidade de amar das mulheres mais maduras.
O vento vindo da praia passa mais quente  no arremedo longilíneo das coxas da equilibrista de saltos gigantescos. Uma mulher oxigenada, com os cabelos lisos até os ombros, veste um top azul. Também quer retardar a morte em moda pueril de minissaias e namorados adolescentes. Dança como se todo o seu corpo contivesse a fórmula perfeita do prazer; à sua volta estão duas mulheres de recorte mais clássico, de calça e camisa, que se abraçam e se beijam formando um casal… "Tempos Modernos"... A noite está a perder os seus contornos, a lua está a dar o seu lugar ao sol. A cidade a ganhar sombras e formas novas e o mar é fustigado com riscos de luz… E os que só costumavam ver a noite de seus quartos, através das persianas, descobriram que ela é clara e a cidade fervilha em qualquer hora e lugar e os encontros são bem possíveis...
A mulher que ofereceu água ao homem de bermudas formou com ele um casal provisório que seguiu junto para casa.
No meu apartamento, ou no seu? Ele perguntou mais sorridente do que nunca. Ela nada respondeu, mas o abraçou.Tomaram o mesmo elevador, de mãos dadas desceram no mesmo andar. Tempos Modernos...
O homem rabugento ainda está dormindo, apesar de o dia ir bem adiante à beira da praia. Alguns ingênuos pensam que tudo é como antes, na Marquês de Abrantes.

Autora: Valéria Áureo




segunda-feira, 6 de março de 2017

Diálogos Poéticos ( Ele em si... Ela em ti)




Minha querida Condessa Du Brassica,



Eu ainda não li a poesia que me mandou. Na verdade  tenho que lhe dizer que não sou  muito amigo delas. Por muitas vezes eu as acho incompreensíveis, sem nexo; por mais que eu me esforce. Elas me fazem lembrar o meu tempo de estudante; qualquer coisa bem confusa das aulas de literatura, ou qualquer coisa que eu não pudesse compreender nos meus dezessete anos. Compreender o que é sem pé nem cabeça? Meu corpo pedia esforços físicos e poesias naquela época eram para as mocinhas. Onde encaixar poetas naquele tempo em que estive tão ocupado entre  treinos de natação, luta, corridas de moto, equitação, passeios de veleiros e mergulhos no mar? Agora tenho  mais tempo e liberdade, mas... Eu ainda nem li a mensagem. Desculpe-me, talvez nem leia! Era um poema? Parecia-me. Houve um acidente. Rasguei um pedaço da carta ao abrir o envelope; usei um punhal de meu querido pai, que continua muito afiado e que cortou-me a palma da mão. Pois tratei de deixar o poema para bem depois e o coloquei de lado, para cuidar do ferimento. Quem sabe, depois... Nunca, se não fosse muito indelicado dizer. Nunca! Poesia é para moças. Mas está aqui guardada, na pasta, em minha escrivaninha, entre tantas correspondências que trocamos. Ao abrir a carta o delicado papel de seda rasgou-se  e lá se foi a imagem do poeta impressa bem no alto da folha, com gotículas de meu sangue. Também umas linhas foram " decapitadas". Creio que um ou dois versos apenas; perdoe-me. Como já lhe disse, minha cara senhora, tentei tantas vezes escrever poesias, na ilusão do primeiro amor, mas nunca consegui terminar uma sequer. Não sei se por acaso, ou mesmo por enorme afeição, gosto da maioria das que você escreve e quando elogio, é pura sinceridade. Será que eu misturo o sentimento pela poetisa àquilo que ela escreve?

Eu não sei se a decepciono, mas não me agradam as poesias; menos ainda as que eu não entendo. Esse poeta em especial é muito misterioso, pois se diz suportando o peso do mundo. E quem não suporta o peso do mundo? Era esse o título, não era? Sinto tê-lo cortado do meu caminho a um só golpe e tê-lo guardado na gaveta, faltando dois ou três versos e a cabeça separada do tronco do pobre autor... O poema está arquivado e pronto. Não está inteiro, mas está aqui. Assim, nada poderei dizer da poesia que eu não li e  provavelmente não lerei. Devo ser justo: o mal de não entender poesias está em mim e não em quem as escreve. No caso deste aqui, em particular, todos o amam e especialmente você. Acho que a minha antipatia vem desse seu amor exagerado por ele. Agora me lembrei... Devo confessar uma diabrura da juventude. Quando eu passava de bicicleta por ele no calçadão da praia de Copacabana, lhe fazia umas divertidas caretas. Por certo eu estava protegido pela falta de óculos do poeta e por minha falta de juízo. Era por brincadeira, apenas. Um pouco de irreverência. Na verdade eu via que todos o reverenciavam. Eu os contrariava; coisas de menino. Mas, volto a lhe dizer: não posso entender o que é a imaginação, muito menos na cabeça alheia... Será que lhe cortei a cabeça para ver o que havia dentro? Seria mesmo engraçado. Sei que muito do meu desagrado é fruto de meus ciúmes.

Do seu fiel amigo


Conde Du Marrot




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Meu querido Conde Du Marrot, 


Eu não sei como agiste... Se à maneira barulhenta do Barbeiro de Sevilha, ou se  no silêncio do malandro de subúrbio carioca em esquina da madrugada, usando uma navalha ou estilete. Certo é que em uma só cartada acabaste com a fantasia longeva da ilusão, do fantasioso, do onírico, do simbolismo de cabeça branca... Pobre poeta que tanto adoro e hoje dormita inteiro e petrificado no calçadão e acéfalo em tua escrivaninha! É... Sem tirar o chapéu, ou a camisa de cambraia, deste-lhe um só golpe... Um apenas, mas certeiro e definitivo golpe capaz de lhe cortar alguns versos. Cortaste ainda a cabeça do notável poeta com a tua imperícia e avidez. Bela arte a tua, a de arrancares os últimos pelos, fio por fio, bem lentamente da calva quase já totalmente exposta, para lhe expor a imaginação a ti tão incompreensível. Deixou-me sim, no fio da navalha, perplexa. Será que expondo o cérebro do artista tu  farias brotar a imaginação do poeta e assim poderias compreendê-lo? Qual! Tão violento como se fora em um golpe de Estado tu agiste, meu rapaz! Com tamanha destreza ou artimanha, acabarás tomando mesmo o poder à poesia e dando-o à razão, usurpando-o da imaginação. Agindo assim estabelecerás que a razão se sobreponha à minha imaginação; seja à navalha, seja a fuzil, vai ao chão a fantasia de criar sonhos e histórias. Enfim, tu me deste qualquer resposta ao poema de Drummond sem sequer o ler. Eis que tu te comprometes, irremediavelmente, a infiltrar em meu coração a razão pura e simples, onde a palavra só é o que é; tudo em verdadeiros golpes, guerrilhas urbanas, marchas noturnas em um imenso campo minado, invasões subterrâneas e espreitas noturnas, sem um toque sequer de poesia. És um conspirador? Depões os inimigos imagináveis e imaginários com a mesma desenvoltura de menino desenhando aviões e navios, na pueril inocência de consertar o mundo fazendo guerras, sem poesia? Pois ignoras o velho míope e cabeçudo, quase que com prazer. Desprezas o inocente. Ora, tu continuas então, atrevido, a fazer-lhe caretas de descaso... Ah! Se soubesses o quanto amo o velhote, terias cuidados a ele, só por mim, só por me agradar. Ficarias ao lado dele no Posto Seis, só para protegê-lo, para mim, com toda tua estatura e conhecimento naval, contra a ardilosa malícia dos salteadores, dos vândalos e larápios de óculos da amada escultura, comerciantes vis de bronze... Também o protegerias dos degoladores, por certo.


De sua saudosa amiga


Condessa Du Brassica


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Minha querida Condessa Du Brassica,



Depois de sua mensagem com uma “suave” advertência, então movido pelo remorso, eu me comprometo a tentar ler, reler e por via das dúvidas, tornar a ler  mais uma vez, só pra não dizer, simplesmente, gostei dessa poesia do velhote de óculos e cabeça grande. Ou quem sabe e até mais provável, sem dar muitas explicações, confessar simplesmente como é ingrato esse mundo da arte. Nele vale qualquer jogo, até de palavras, ainda que muitas das vezes, vãs, mas só se forem ditas por um artista sempre amado e consagrado, deitado na relva e abraçado por todas as mulheres. Não, não há lugar para principiantes como eu. Como eles seduzem eu não sei! Já começam maduros, experientes, sábios e mágicos feiticeiros de palavras. Nascem prontos. Que ninguém se atreva a falar isso ou aquilo que seja de um deles, e todas elas, as sonhadoras, já se doem. Sei que nos falta mesmo é coragem de tentar compreender a perfeita combinação de autor e obra e seus mistérios... Eles são os reis de ouros e sou mais um vassalo de paus, entre tantos outros. O jogo mais uma vez está na mesa, manejado com habilidade e destreza e logo sai o primeiro "não quero carta", displicente. Pra mim chega! Não pago pra ver, é blefe, tenho certeza de que não há jogo possível para mim; não com um poeta que todas amam e que eu não compreendo. Não sou de poesias, não insista! Isto seria um duelo perdido por mim. Ainda estou em dúvidas se lerei e digo-lhe mais:  estou muito ocupado em fazer o meu jardim.


Do seu eterno amigo


Conde H. Du Marrot


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Caro senhor Conde H. Du Marrot,



Depões a palavra do poeta, jogas no arquivo morto, como a um inimigo abatido, tombado no forte. Fica esquecida a poesia em mensagem ignorada, meu rapaz? Quanta distração!... Mas hás de pensar assim mesmo, que também os teus ombros suportam o peso da vida; o poeta assim o diz de si mesmo. Ele, de carne e osso e seus ombros suportam o mundo, como todos nós. O velho burocrata é real e apaixonado pela amante da vida inteira; tem a sua poesia, a sua casa, a sua cama, a alcova e o seu segredo... E que da esposa não se fala em livro algum, ou pouco se fala. Contudo à amante dedica seus impublicáveis poemas eróticos, (impublicáveis enquanto vivo). Também ele perdeu a cabeça por outra mulher. Assim como agora, quando a degolas implacavelmente. O velho de cabeçorra, de desejos e de segredos sensuais, quem diria? Era humano e bem humano, como todos nós, dentro e fora dos livros; ardia de amor na vida e na imaginação... O amor não tem mesmo idade e não mede consequências!


Sei, eu te entendo; tu não és um homem de palavras; tu és homem de ação e solução. Ao poeta cabe sempre lançar dúvidas, desvendar equívocos. Melhor que te mates de trabalho braçal, que assim aplacas teus anseios longe das palavras. Que vás ao mar, aos mergulhos e às árduas batalhas do quotidiano, assim como faz o poeta e todo homem comum. Então... Avante, comandante, em terra ou no mar, a combater escudado com armas que não são palavras. Trabalha equipado de ganchos, estruturas metálicas, andaimes e luminárias para teu jardim. Não é  com o teu jardim que te ocupas tanto? Pois então!... Mas não te esqueças do mais importante para teu recanto: não te esqueças das flores. E deverás plantá-las com a sutileza de um poeta quando escreve, ou quando vive um amor escondido. Por enquanto o suor goteja de tua fronte, te esforças e te empenhas em arquitetura e argamassa, como um escravo, pois tombaste silente ao meu pedido de sonhos. E nos sonhos, não és o escravo que ergue as colunas do palácio, és o rei que descansa no  trono. Impertinente. Tens dúvidas em conhecer o poema... Ora, tu te dedicas inteiro, teu corpo e tua alma, mais ao conflito do dia-a-dia e ao prazer de construção de grades, canteiros e jardim, do que a um pequeno devaneio. E o fazes com mais empenho e arte, que ao poema que te propus... Poesia. A poesia de teu jardim são as flores. Tola, esqueço-me do quanto conheces das estratégias de lançar mísseis nas profundas águas do oceano. As palavras não te fazem tanta falta e nem te convencem. És submarino imerso e camuflado em vigília. Quieto, escondido, mudo, espreitas e aguardas o ataque. Que arte esta, tu tens de minar aos poucos a alma despreparada para qualquer combate? Luta verdadeiramente injusta! Ao teu alcance todo um arsenal, toda a estratégia e a argúcia de um combatente experiente. O teu adversário é indefeso ante tua estatura, é incauto ante tua precaução, é despreparado ante tua argúcia e só tem palavras, devaneios e ilusão. Ao mar! Jogo-me nesse embate na mais completa escuridão, sem saber sequer nadar...


De sua saudosa amiga,


Condessa Du Brassica.



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Minha querida Condessa, 


Sei que ama Drummond, muito acima das minhas humildes possibilidades e bem fora do meu reduzido universo de entendimento lírico. Morro de ciúmes. Esta é a verdade. Morro! Está bem, fui vencido! Estou derrotado! Enfim... Foi ouvindo o seu conselho com muita calma, sem preconceito, que li e reli tantas vezes o seu poeta velhote que me curvei diante de “os ombros suportam o mundo”. Eu cheguei a achar defeitos, só para me justificar e depois, bem mais calmo nessa aflição dos sentidos e na árdua missão de compreender o incompreensível, como num passe de mágica, a luz se fez em minha pobre mente. Talvez resquício coruscante do tal relâmpago cifrado que por mim, finalmente decifrado, me fez mudar de opinião. Não é que eu gostei? Sim, posso afirmar que gostei! Rendo-me, portanto, aos seus apelos e à inegável sabedoria e camuflada arte do poeta. E mais... Sabendo que ficará muito feliz, eu juntei a cabeça ao tronco do retrato no leve papel de seda. Pronto, cá está o homem inteiro. Inteiro no papel e na vida. Inteiro na vida e nas paixões. Inteiro e frágil  como todo homem, capaz de perder a cabeça por uma paixão. Inteiro de corpo e alma. Nem se nota a emenda que fiz. Também os versos que faltavam eu pude salvar... O que não consegui mesmo foi apagar os meus ciúmes e nem as manchas de meu sangue.


Do seu eterno,

Conde H. Du Marrot