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segunda-feira, 26 de junho de 2017

Antes de usar uma palavra, crie um lugar para ela.


(Fragmento do texto)

... Difícil empreendimento experimentado naquela praça pelo camelô. O vocábulo “Histriônico”, na promoção, pela bagatela de R$5,00 parecia “encalhado” Pois demorou quase quatro horas para que o primeiro dos mais de cinquenta curiosos parasse e perguntasse daquela oferta esdrúxula. “Histriônico”?! Uns poucos que paravam refletiam: Talvez algum inseticida para se combater o Aedes aegypti. Histriônico poderia ser o nome de carro alegórico, uma doença, lançamento de automóvel, marca de cigarro, ou modalidade de esporte para as Olimpíadas. Poderia ser um novo creme rejuvenescedor, contra rugas. Quem sabe um nome código para uma operação da Polícia Federal?...
Um transeunte, razoavelmente cônscio de direitos alegou que o sujeito não poderia vender palavras; nem histriônico, nem outra palavra qualquer:- Elas não são suas, ponderou. Palavras são de todos! É bem imaterial! Trata-se de crime vender bem público. Já ouviu dizer? Res publica, meu rapaz? Coisa do povo?... Não seria ÉTICO. O senhor fere a MORAL!
- Claro, meu senhor. De certa forma o senhor tem razão. Mas não estou bem certo se não posso vendê-la; pois se é de domínio público. Também sou povo; logo é minha. Minha palavra eu posso vender, como o senhor pode vender a sua... Posso vender minha palavra, meu pijama, meu sapato. Até um rim eu posso vender... Até parte do meu fígado. Tudo é questão de se precisar e saber negociar. Já o coração eu não posso, pois só tenho um. Ele me faria falta! Res publica!... Eu já tinha aqui no meu acervo. Eu a adquiri no dicionário de latim e enriqueci o meu estoque. Agrada muito advogados e padres. Estou até pensando em ir mais longe: penso vender palavras em outras línguas para os brasileiros. O senhor sabe: Globalização... O inglês tomou conta do país, já faz tempo... O espanhol vai chegando aos poucos. Vai acabar virando uma Torre de Babel, se ninguém aparecer para organizar essa balbúrdia linguística. Business Intelligence, meu caro! Tem que estar alerta. É muita mercadoria de qualidade. Estão todas ao meu alcance. Palavras; tudo muito dinâmico. Algumas em desuso, algumas na moda, outras esquecidas, muitas corrompidas, umas tantas mortas... Muita palavra falsificada na praça atrapalha o meu comércio! Mercadoria “pirata.” A sorte é que são tão ruins que acabam logo... Não têm durabilidade, entende? Obsolescência previsível, pois não? Veja só... Res publica, ÉTICA, MORAL. Estas estavam mofando no dicionário; se não é o senhor a resgatá-las agora do fundo do baú... Mas e “histriônico”? Vai levar? Tá certo que pode roubar a mercadoria, pegar de graça no dicionário... Aí fico no prejuízo. Fazer o quê? Mas, levando-se em conta custo e benefício, o senhor deve ser razoável: Time is Money... Até o senhor comprar um dicionário, ou ir à biblioteca... Até procurar o livrão, esmiuçar aquelas letras miudinhas... Vista cansada... Essas coisas. Eu resolvo o caso agorinha; preço de ocasião. Somente R$5,00 e nada mais. É pegar ou largar!
- Eu não vou usar essa palavra. Histriônico! Vou pagar para depois esquecê-la? É como comprar uma roupa nova e deixá-la enchendo o armário. É como um casaco para neve, um esqui, coisas que nunca me servirão de nada. E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga. Enchem papéis, enchem a cabeça... O pouco dinheiro é para a comida.
- Palavra, meu caro, alimenta a alma... E depois, para quem não pode comprá-las há sempre um jeitinho. Eu nem devia dizer da concorrência, pois me atrapalha o negócio. Vou adiantar o seu lado! Nas escolas palavras da melhor qualidade são oferecidas de graça... Pena que os alunos não se deem conta disso. Vão embora e deixam-nas espalhadas pelas carteiras, estantes e corredores. Um ou outro mais atilado trata de aprisioná-las na cabeça e no coração. Nas Igrejas são ofertadas como bênçãos, com música, incenso, flores e esperança. São palavras balsâmicas. Cada palavra corresponde a um pensamento. “Se temos poucas palavras, pensamos pouco”. Então, doutor, “Histriônico”, vai levar? Já tá na mão, é só embrulhar... Leva, que de quebra eu coloco de brinde no pacote. Faço promoção: sílfide, esquálido, propedêutica, arquétipo, parâmetro, idiossincrasia... Tudo por R$5,00.
- Você é um... É um!...
- Viu? Faltam-lhe palavras...Viu como precisa de vocabulário? Engraçadinho... Palhaço, bufão, pândego...
... Eu, por minha conta, vou oferecendo umas tantas neste Jornal e agora no Face. Tenho por certo que estou a procura de uma morada para elas. Quiçá no seu coração. Eu as ofereço por prazer.


Autora: Valéria Áureo
Crônica Publicada em O Imparcial de Rio Pomba.