Apresentação

Total de visualizações de página

domingo, 17 de março de 2019

Entre Ásperas




          - A senhora já escolheu a cor do esmalte?
          - A cor de sempre, lembra-se? Vamos fazer a unha francesinha. Já usei todas as cores, ao longo da vida. Hoje opto pela sobriedade e delicadeza. Combina mais comigo.
          - Já usou todas as cores, é o modo de dizer, não é? Já usou todas, entre ásperas! O comentário surgiu de uma cliente sentada ao meu lado.
          - Entre ásperas? O que vem a ser isso? Não seria entre aspas?
          - Entre ásperas! A senhora não sabe o que é?
          Fechei os ouvidos para a reticente explicação do que seria entre ásperas, como se ela me abrisse os olhos para a luz do conhecimento. Preferi confiar mais em minhas aulas antigas de português: “as aspas têm sido usadas, como um sinal gráfico que delimita uma citação, um título de obra, uma denominação, ou para realçar palavras ou expressões em sentido figurado”. Seria suficiente se eu desse tal explicação, para elucidar a divergência, mas me calei com a certeza de que nada adiantaria. A manicure dava-me múltiplos exemplos entre ásperas e eu voltava às minhas reservadas reflexões linguísticas: entre esmaltes, lixas, alicates, unhas e dedos; entre considerações e análises eu concluía que o uso de aspas surgiu na oralidade acompanhado de um gesto com os dedos indicadores fletidos. Eis todos os dedos (das mãos, dos pés, artelhos e joelhos e os seus tendões a serem considerados na possível explicação). Pensei que a manicure poderia ter achado as minhas mãos ásperas, mas logo mudei de ideia, porque as tenho macias e delicadas. Os dedos fletidos estariam ou não cutilados com o carinho que eu desejo ao gracioso idioma? E as associações de ideias me arrastaram além do salão e suas grosseiras paredes, pois eu me sentia entre parêntesis, entre colchetes e chaves, como uma palavra aprisionada, ou uma sentença matemática em seu cárcere privado. E segui minuciosamente... E tamanha a utilização concreta das aspas, ratificada com os gestos dos dedos, que tenho ouvido “entre ásperas” corriqueiramente. Claro que isso me leva às raízes da questão com doses de alegoria e bom humor (sem mencionar artrites e artroses, rupturas e fraturas, como cai bem aos satíricos cronistas, como eu). A grafia das aspas se fundamenta nas vírgulas dobradas. Deu-se a elas a mímica, a pantomina dos indicadores, apontando ao caminho da elucidação, entre a vizinhança e o circo.
          Entre ásperas! Ásperas, ásperas, ásperas, então vejamos! Dois espinhos da Coroa de Cristo, um de cada lado, a delimitar os domínios da dor que Ele suportou. Entre ásperas! Uma rispidez, um aprisionamento entre palavras que possam trazer a morte e a destruição. Palavras entre ásperas (pessoas, circunstâncias, eventos), entre as duas pequenas farpas gráficas, encilhando os sarcasmos, os descuidos ortográficas, as cacofonias, pleonasmos e invenções. A retórica nos discursos de violência, morte, assassinato, estupro, pedofilia, inveja, rancor, corrupção, aborto, incesto e tantas atrocidades mais, deveriam sempre vir entre ásperas garras da justiça.
          Entre ásperas e contundentes medidas para a destruição da engrenagem de todo o mal; duas algemas de aço, para os braços e para os pés. Dois extremos do arame farpado cercando os bois no pasto, e seus olhos melancólicos ao entardecer. Duas garras, duas travas, duas espadas de aço cortantes! Entre ásperas, entre cacos de vidros pontiagudos, cravados no rosto da vítima do final de festa, duas gotas de ácido sulfúrico, a cada canto dos olhos tristes das mães.

Autora: Valéria Áureo

In Entre Mentes e Corações