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quinta-feira, 13 de abril de 2017

Alguém especial te espera





          Alguém especial te espera para formar o par perfeito. Não há motivo para desespero; uma verdadeira agência matrimonial digital pulsa mundo afora no ritmo da revolução tecnológica. Mais moderno do que nunca, o cupido lança as milhares de flechas em direção aos celulares dos candidatos a enamorados. É a febre dos aplicativos de relacionamento como Tinder, Grindr, Wechat e Skout.

          O pretendente pode estar na distância de um clique. Mesmo um clique entre países distantes. Ou melhor, dois cliques. Se a ação for correspondida: deu ‘match’. Mais um coração atingido. E o novo casal pode começar a conversar. Carlos gostou da explicação.

          Ele aquariano, poeta, bibliotecário. Aos trinta anos tinha cabelos compridos e barba desleixada... Espessa!Um típico “lumberjack”, um estilo lenhador bastante prático. Agora a testa estendeu-se pelas laterais em duas entradas profundas, estradas de pensamentos efervescentes, efusivos, encaminhando para o alto da cabeça, como se buscasse as ideias mais claras. Uma invasão de calvície no crânio, apesar de tão pouca idade, que alguns costumam interpretar como sinal de inteligência. A cabeça parecia maior e ele assumia esse visual com tranquilidade e certa vaidade.

          Carlos gostava de rock e tinha uma coleção de discos de vinil. A capa dos discos era importante no momento da escolha; dali diretamente para a sua coleção. Ao gosto musical precedia o apelo estético. Comprava o disco pelo visual, no primeiro instante. Era uma qualidade essencial do artista: fazer combinar a ilustração com o vinil.

          No meio dos livros, na Biblioteca Nacional se sentia feliz. Apesar da constante alergia e batalha com os ácaros e o mofo, ele se resumia num homem afortunado, sempre com uma caixinha de lenços de papel. No bolso, no porta-luvas, na maleta, no criado mudo, sempre à mão, havia o vidrinho de soro fisiológico para irrigar as narinas congestionadas. Um antialérgico em todas as gavetas. Não mudaria de profissão e não tinha como mudar de trabalho. Por isto não mudaria seus hábitos, que todos consideravam manias. Assim que começou a trabalhar na Biblioteca pensou que o corpo sensível logo se acostumaria com o cheiro de livros e de cômodos cheios de estantes. O tempo foi levando adiante os anos e nada de o organismo se acostumar com o odor característico de livros centenários. Mesmo os livros mais novos, ainda cheirando a tinta fresca, o incomodavam. O corpo protestava em séries de espirros distribuídos pelos departamentos, mesmo os mais arejados. No mais, tudo estava bem. Tinha o que queria ter; morava sozinho em um apartamento confortável, decorado ao seu gosto e conforme as suas necessidades... No apartamento, nada de livros. Pensou: é hora de um relacionamento sério! Interessante esse aplicativo!



           Ela sagitariana, triste, tímida e silenciosa; havia escolhido, desde pequena, a profissão de dentista. Talvez a impressionasse a série de dentes que teria que reconstruir ao longo do ofício. Os seus sempre estavam escondidos pelos finos lábios fechados e arqueados em sugestivo acomodamento. Alma doce, calma, acomodada e solitária; nada que requisitasse a mostra de dentes. Pouco falava... Nisto imaginava o grande valor de sua profissão: esculpir largos risos e bocas extremamente ativas, falantes e agradáveis. Bruna não sabia sorrir, mas uma coisa ela sabia fazer: preparar as bocas dos clientes para os imaginados risos e beijos...

         Bruna ouviu pelo rádio do seu quarto a previsão do tempo. Dia nublado, com possibilidade de chuvas à tarde. Tratou de pegar um agasalho. O casaco branco estava sempre no mesmo lado do armário; à direita de quem abre, no último cabide, junto à coleção de jalecos. Assim, mesmo no escuro, era só meter as mãos e ir diretamente ao ponto. Na volta do trabalho recolocava-o no mesmo cabide... Só variava quando os alternava com o outro casaco branco, lavado, a cada cinco dias.  Casacos sempre no mesmo lugar. No mesmo lugar era a jarra com as flores de plástico; era a pilha de livros, que ela começara a ler, sobre a mesinha de centro. No banheiro a toalha azul marinho. Na sala, a mesa sempre posta com delicada louça para o café. Ela ia, voltava e a louça permanecia aguardando visitas inesperadas, que nunca vinham. A mesa era a companhia de sua solidão. Duas xícaras sempre postas e um sentimento disponível... Pensou: é hora de um relacionamento sério. Interessante esse aplicativo!...



          Carlos seguia no ônibus, porque o carro tinha ficado na oficina. Coisa pequena para consertar, mas decidiu que daquela semana não passaria; uns amassados no teto do carro, porque havia estacionado bem embaixo de um edifício em obras. Um prejuízo e um aborrecimento a mais na vida, em forma de respingos de cimento...

          Bruna seguia no seu carro, ajeitando a bolsa no chão, para não chamar a atenção dos pivetes. Acomodava tudo o que levava sob o banco do automóvel. Era cuidadosa. O trânsito lento favorecia os arrastões...  No rádio ouvia-se um jazz... Trânsito parado! Pegou o celular e abriu o aplicativo. Arrastou o indicador nos vários nomes, fotos. Deteve-se em um rosto que lhe chamou a atenção. Fez conexão com aquele contato: deu "match" e mais um coração foi atingido pela flecha.

        Carlos olhava os prédios vazios e grafitados, ao longo da avenida, no ônibus lotado... Tinha sorte em achar um assento vazio na janela, ao lado do motorista. Prestava atenção em tudo: no ônibus, nas pessoas que entravam e saíam, naquelas que passeavam pelo caminho, em outras que paravam. Bastava um detalhe, que percebesse ao longo da viagem até perto de seu destino na Avenida Rio Branco e a cabeça aproveitava a inspiração, na ponta do lápis. Trânsito parado! Um bloco, sempre à mão e uma caneta, armazenavam aquele breve detalhe. Tinha o hábito de anotar tudo.  

          Ele abaixou o rosto para anotar uma ideia. Escreveu...  Largou o papel, tomou o celular, abriu o aplicativo de encontros. Arrastou o indicador até se deter em uma foto. Fez conexão com uma linda mulher: deu ‘match.’ Tornou a abaixar o rosto e não se deu conta de que...

           Ela abaixou para pegar o casaco branco de dentro da bolsa. Fazia frio com o ar condicionado ligado. Ele olhava para o celular. Nenhum dos dois se deu conta de que...

            Acidente entre carro e ônibus mata dois na Av. Brasil.

          Bruna freou o carro violentamente, sem poder evitar uma colisão com a traseira do ônibus onde ia Carlos. Outros veículos iam se engavetando.
           Carlos e Bruna desceram aos trancos, tontos e assustados no meio daquela multidão. Um de frente para o outro. Ficaram inertes. Um olhando para o outro. Nunca tinham se visto na vida. Nunca mais precisaram do aplicativo de encontros.  Eram especiais e tinham formado um par perfeito.



Autora: Valéria Áureo