Alguém especial te espera para formar
o par perfeito. Não há motivo para
desespero; uma verdadeira agência matrimonial digital pulsa mundo afora no
ritmo da revolução tecnológica. Mais moderno do que nunca, o cupido lança as
milhares de flechas em direção aos celulares dos candidatos a enamorados. É a
febre dos aplicativos de relacionamento como Tinder, Grindr, Wechat e Skout.
O pretendente pode estar na distância
de um clique. Mesmo um clique entre países distantes. Ou melhor, dois cliques. Se a ação for correspondida: deu ‘match’. Mais um coração atingido. E o novo casal pode começar a
conversar. Carlos gostou da explicação.
Ele
aquariano, poeta, bibliotecário. Aos trinta anos tinha cabelos compridos e
barba desleixada... Espessa!Um típico “lumberjack”, um estilo lenhador
bastante prático. Agora a testa estendeu-se pelas laterais em duas entradas
profundas, estradas de pensamentos efervescentes, efusivos, encaminhando para o
alto da cabeça, como se buscasse as ideias mais claras. Uma invasão de calvície
no crânio, apesar de tão pouca idade, que alguns costumam interpretar como
sinal de inteligência. A cabeça parecia maior e ele assumia esse visual com tranquilidade
e certa vaidade.
Carlos
gostava de rock e tinha uma coleção de discos de vinil. A capa dos discos era
importante no momento da escolha; dali diretamente para a sua coleção. Ao gosto
musical precedia o apelo estético. Comprava o disco pelo visual, no primeiro
instante. Era uma qualidade essencial do artista: fazer combinar a ilustração
com o vinil.
No
meio dos livros, na Biblioteca Nacional se sentia feliz. Apesar da constante
alergia e batalha com os ácaros e o mofo, ele se resumia num homem afortunado,
sempre com uma caixinha de lenços de papel. No bolso, no porta-luvas, na
maleta, no criado mudo, sempre à mão, havia o vidrinho de soro fisiológico para irrigar as
narinas congestionadas. Um antialérgico em todas as gavetas. Não mudaria de
profissão e não tinha como mudar de trabalho. Por isto não mudaria seus
hábitos, que todos consideravam manias. Assim que começou a trabalhar na
Biblioteca pensou que o corpo sensível logo se acostumaria com o cheiro de
livros e de cômodos cheios de estantes. O tempo foi levando adiante os anos e
nada de o organismo se acostumar com o odor característico de livros
centenários. Mesmo os livros mais novos, ainda cheirando a tinta fresca, o
incomodavam. O corpo protestava em séries de espirros distribuídos pelos
departamentos, mesmo os mais arejados. No mais, tudo estava bem. Tinha o que
queria ter; morava sozinho em um apartamento confortável, decorado ao seu gosto
e conforme as suas necessidades... No apartamento, nada de livros. Pensou: é
hora de um relacionamento sério! Interessante esse aplicativo!
Ela
sagitariana, triste, tímida e silenciosa; havia escolhido, desde pequena, a
profissão de dentista. Talvez a impressionasse a série de dentes que teria que
reconstruir ao longo do ofício. Os seus sempre estavam escondidos pelos finos lábios
fechados e arqueados em sugestivo acomodamento. Alma doce, calma, acomodada e solitária;
nada que requisitasse a mostra de dentes. Pouco falava... Nisto imaginava o
grande valor de sua profissão: esculpir largos risos e bocas extremamente ativas,
falantes e agradáveis. Bruna não sabia sorrir, mas uma coisa ela sabia fazer:
preparar as bocas dos clientes para os imaginados risos e beijos...
Bruna
ouviu pelo rádio do seu quarto a previsão do tempo. Dia nublado, com
possibilidade de chuvas à tarde. Tratou de pegar um agasalho. O casaco branco
estava sempre no mesmo lado do armário; à direita de quem abre, no último
cabide, junto à coleção de jalecos. Assim, mesmo no escuro, era só meter as
mãos e ir diretamente ao ponto. Na volta do trabalho recolocava-o no mesmo
cabide... Só variava quando os alternava com o outro casaco branco, lavado, a
cada cinco dias. Casacos sempre no mesmo
lugar. No mesmo lugar era a jarra com as flores de plástico; era a pilha de
livros, que ela começara a ler, sobre a mesinha de centro. No banheiro a toalha
azul marinho. Na sala, a mesa sempre posta com delicada louça para o café. Ela
ia, voltava e a louça permanecia aguardando visitas inesperadas, que nunca
vinham. A mesa era a companhia de sua solidão. Duas xícaras sempre postas e um
sentimento disponível... Pensou: é hora de um relacionamento sério. Interessante esse aplicativo!...
Carlos
seguia no ônibus, porque o carro tinha ficado na oficina. Coisa pequena para
consertar, mas decidiu que daquela semana não passaria; uns amassados no teto
do carro, porque havia estacionado bem embaixo de um edifício em obras. Um
prejuízo e um aborrecimento a mais na vida, em forma de respingos de cimento...
Bruna seguia
no seu carro, ajeitando a bolsa no chão, para não chamar a atenção dos pivetes.
Acomodava tudo o que levava sob o banco do automóvel. Era cuidadosa. O trânsito
lento favorecia os arrastões... No rádio ouvia-se um
jazz... Trânsito parado! Pegou o celular e abriu o aplicativo.
Arrastou o indicador nos vários nomes, fotos. Deteve-se em um rosto que lhe
chamou a atenção. Fez conexão com aquele contato: deu "match" e mais um coração foi atingido pela flecha.
Carlos
olhava os prédios vazios e grafitados, ao longo da avenida, no ônibus lotado...
Tinha sorte em achar um assento vazio na janela, ao lado do motorista. Prestava
atenção em tudo: no ônibus, nas pessoas que entravam e saíam, naquelas que
passeavam pelo caminho, em outras que paravam. Bastava um detalhe, que
percebesse ao longo da viagem até perto de seu destino na Avenida Rio Branco e a cabeça aproveitava a
inspiração, na ponta do lápis. Trânsito parado! Um bloco, sempre à mão e uma
caneta, armazenavam aquele breve detalhe. Tinha o hábito de anotar tudo.
Ele
abaixou o rosto para anotar uma ideia. Escreveu... Largou o papel, tomou o celular, abriu o
aplicativo de encontros. Arrastou o indicador até se deter em uma foto. Fez
conexão com uma linda mulher: deu ‘match.’ Tornou a abaixar o rosto e não se deu conta de que...
Ela abaixou para pegar o casaco branco de
dentro da bolsa. Fazia frio com o ar condicionado ligado. Ele olhava para o celular. Nenhum dos
dois se deu conta de que...
Acidente
entre carro e ônibus mata dois na Av. Brasil.
Bruna
freou o carro violentamente, sem poder evitar uma colisão com a traseira do ônibus onde ia Carlos. Outros veículos iam se engavetando.
Carlos e Bruna desceram aos trancos, tontos e assustados no meio daquela multidão. Um de frente para o outro. Ficaram inertes. Um olhando para o outro. Nunca tinham se visto na vida. Nunca mais precisaram do aplicativo de encontros. Eram especiais e tinham formado um par perfeito.
Carlos e Bruna desceram aos trancos, tontos e assustados no meio daquela multidão. Um de frente para o outro. Ficaram inertes. Um olhando para o outro. Nunca tinham se visto na vida. Nunca mais precisaram do aplicativo de encontros. Eram especiais e tinham formado um par perfeito.
Autora: Valéria Áureo