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sexta-feira, 10 de maio de 2019

Recato mais-que-perfeito



 

Ela nunca usara calças compridas, pois as saias, tão apropriadas para o seu recato, eram de imediata valia para enxugar as lágrimas dos filhos. Nunca deixara nenhum trabalho por fazer, muito menos para o dia seguinte; o acúmulo seria repleto de outros afazeres, também inadiáveis. 

Ela fora exímia em trazer o amor de volta, fosse de um jeito, fosse de outro. Na maioria das vezes fora com brandura de afagos e palavras gentis, que ela aplacara as constantes mágoas de irmãos e corações. Pedido feito por um, dois, três, ela logo concentrara-se em atendê-los, para que não se pedisse outra vez. Nunca fora uma abelha rainha. (Quando se punha em ação, laboriosa como uma  operária - muito mel e raras ferroadas-, ela já sabia exatamente quais evocações engendraria para ter sucesso e organizar a sua colmeia). Tivera clareza de saber onde deveria caber um santuário, muitas camas, a mesa, bancos e livros. O ritual começava com uma sacudidela: acorda, filha, está na hora! ... (Servia o café, cortava o pão em muitas fatias. E o pão que ela tocava vinha cheio de bênçãos, como uma hóstia solene muitas vezes repartida na madrugada).

E assim, no rito matutino servira todos da família. Comunicara-se, sempre silenciosa com o invisível e voilà: em três tempos de urdidura (nunca mais que três), o alvo daquele amor desmedido estava de volta e restaurado. Sabiamente aconselhara, ensinara, educara com poucas palavras e olhares fulminantes de torpedos azuis. A cada dia ela se comprometera com a humildade e o perdão.

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             Ah! Que pena! Ela perdera a mãe, ganhara a madrasta que aos poucos fora se livrando dela e dos inúmeros irmãos, enquanto envolvera seu pai em outra família. Sem a mãe, todos sobraram. Ela sobrara! Era criança pequena quando sentira o que, depois - viria entender- era um clima de dor, pesar, perplexidade e separação. 

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          Enquanto as suas crianças cresciam ela se perdera nas suas lembranças de orfandade prematura. Não fora uma recordação qualquer e nem superficial; fora dolorosa e profunda, de travo na garganta. Talvez disso viera a origem de seu silêncio. Houvera uma lembrança ainda mais importante associada àquela vida taciturna, enquanto se ouvia ao lado, o soar de um piano sob dedos de um aprendiz. As músicas não foram para um dia qualquer. Foram melodias de um tempo em que ela tivera laços sanguíneos confiáveis como os pais e os irmãos. 

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            De que adiantara tanta gente, se crescera tão só? Faltara-lhe a mãe. Faltaram-lhe os irmãos. Aquela que amara, como possivelmente todos deveriam amar e foram amados, a deixara muito cedo. Aquela inesquecível mãe, de imagem quase apagada, estivera incrustada, habitando o seu frágil coração. Aquela que em tudo lembrara suas origens, nos traços, nos olhos muito azuis, na pele pálida, na altivez, na casa em que vivia, nas mentirinhas de massa de pastel que fizera para a filharada, também se ressentira da perda do amor materno. 

 

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A constante lembrança da perda prematura, não se tornara um arquivo qualquer, mas sim no mais precioso e marcante registro de memórias: o grande livro das reminiscências sagradas e suas liturgias. E assim a sua vida de mãe recatada e zelosa, fora pautada no sacro missal romano - a única relíquia deixada pela mãe sobre a escrivaninha. Sim! Com Deus ela sabia que podia contar sempre.

Autora: Valéria Áureo

In: Entrementes Corações

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