Apresentação

Total de visualizações de página

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Saltos, sapatos e sapatilhas


                                         Ilustração : Internet

Sua fala não parece mais tão agradável e compreensível. Ainda ontem ela conversava tão bem, com uma voz doce e límpida. Perguntou à filha as horas. Hora de dormir e sonhar, disse a jovem.  A mãe se acomodou diante da televisão. Vieram-lhe à mente, logo no primeiro sono, matizes de sapatilhas, sapatos, sandálias, saltos... Talvez ela soubesse dançar... Não tinha certeza. Perguntou à filha se sabia dançar; não a filha, ela! Insistiu e a filha disse que não. Agora dorme! Ela ainda conseguia se lembrar da noite em que, entre o francês e o português que sempre falara tão bem, as palavras começaram a lhe faltar.

Eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que cabiam àquela mulher, que agora estranhamente, todas elas se resumiam a pés e sapatos. Estava aprisionada no campo semântico de saltos, solas, scarpins... As palavras concentravam em si tamanha quantidade de significados e evocações, que algumas delas já não conseguia guardar, sem que antes tivesse que perguntar à filha. Sabia que, ainda ontem, alguém (preferia não dizer o nome dele) gostava de presenteá-la com lindos sapatos; aliás, quase todas as semanas. Sapatilhas, sapatos, sandálias, saltos... Eram tantos os enfeites que ele dava para aqueles pés delicados e pequenos, que ela mal conseguira usá-los! Eles formavam um casal atraente que ia a muitos lugares juntos.  Os generosos mimos que ele lhe dava faziam parte desse encantamento de estar simbolicamente junto dela. Era um perene saber por onde ela andava, o que alentava o coração dos dois. Ele mantinha a ilusão de que controlava os seus passos, ou que estava sempre por perto, quando ela andasse sozinha.
Agora ele (não quer dizer de quem se trata) estava distante dela.  Os adornos ficaram presos no tempo, em que ambos percorriam de mãos dadas os mesmos lugares. Naquele tempo os passos da sua bela Condessa Descalça ao seu lado eram alcançáveis e seu destino comum era resguardado.  Depois que os pés dela tomaram outro rumo (tragicamente traçado por ele, em um arroubo de ciúmes), a vida dos dois mudou definitivamente. Ambos viveram separados em seus destinos, e chegaram em uma idade, em que só sabiam apresentar um tímido arrazoado de sons impenetráveis (cada um em seu mundo). A volúpia comum do íntimo entendimento de outrora estava preservada nas caixas de sapatos que chegavam pelo Sedex... Preferiu guardar para si o nome dele. Mais uma noite... Mais uma vez ela suspirou tristemente mirando os pés descalços.

Autora: Valéria Áureo

In Entre Mentes e Corações