Ela se contorcia, se mutilava,
podava suas hastes dolorosamente, como uma flor de fibras estiradas, só para
caber dentro do coração dele ( muito justo e apertado), que a impedia de respirar
livremente.
Tudo
já não cabia mais dentro de um vestido preto, liso e aderente ao corpo. Desde o
dia que se casou ele escolhia o que ela podia vestir, fosse longe dele, ou em
sua companhia. Ela se vestia, e ele inspecionava e arrastava lentamente o fecho
éclair frio pelas costas brancas e macias dela.
Ela
se encolhia, ficava muda, mutilava seus versos, só para caber dentro da
prosódia dele. Era muito justa e requintada, sempre calada, como se não mais
soubesse rimar, ou não mais tivesse vocábulos; só os verbos dele eram
conjugados, em tempos presentes e futuros e modos autorizados: simples e
compostos, sempre harmonizados com os gerúndios e particípios de existir. Agora
ele escolhia o que ela poderia pensar e dizer. E, enquanto ela ouvia taciturna
as lições de suas poucas possibilidades, ele suspendia suavemente o fecho
éclair.
Ela,
de tanto se contorcer, de tanto se encolher em silêncio, rasgava-se, rompia o
tecido da seda e apertava ainda mais os laçarotes e as travadas cordas vocais.
Respirava com dificuldade costurada naquela prisão de tecidos, cujas chaves ele
guardava no bolso do paletó.
Eis
que um dia qualquer ele morreu. A causa e o modo nem importavam muito. O que
decorria desse evento é o que aconteceu na vida dela. Ela nunca mais usou
vestidos ajustados no corpo pela modista, sempre carregada de alfinetes, linhas
e agulhas. Decidiu finalmente pelas roupas leves, levíssimas, sem fechos e sem
laços... Mesmo porque ele não estava mais ali para suspender ou abaixar o fecho
éclair.
Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações