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sexta-feira, 5 de julho de 2019

Fecho Éclair

 


          

Ela se contorcia, se mutilava, podava suas hastes dolorosamente, como uma flor de fibras estiradas, só para caber dentro do coração dele ( muito justo e apertado), que a impedia de respirar livremente.
          Tudo já não cabia mais dentro de um vestido preto, liso e aderente ao corpo. Desde o dia que se casou ele escolhia o que ela podia vestir, fosse longe dele, ou em sua companhia. Ela se vestia, e ele inspecionava e arrastava lentamente o fecho éclair frio pelas costas brancas e macias dela.
          Ela se encolhia, ficava muda, mutilava seus versos, só para caber dentro da prosódia dele. Era muito justa e requintada, sempre calada, como se não mais soubesse rimar, ou não mais tivesse vocábulos; só os verbos dele eram conjugados, em tempos presentes e futuros e modos autorizados: simples e compostos, sempre harmonizados com os gerúndios e particípios de existir. Agora ele escolhia o que ela poderia pensar e dizer. E, enquanto ela ouvia taciturna as lições de suas poucas possibilidades, ele suspendia suavemente o fecho éclair.
          Ela, de tanto se contorcer, de tanto se encolher em silêncio, rasgava-se, rompia o tecido da seda e apertava ainda mais os laçarotes e as travadas cordas vocais. Respirava com dificuldade costurada naquela prisão de tecidos, cujas chaves ele guardava no bolso do paletó.
          Eis que um dia qualquer ele morreu. A causa e o modo nem importavam muito. O que decorria desse evento é o que aconteceu na vida dela. Ela nunca mais usou vestidos ajustados no corpo pela modista, sempre carregada de alfinetes, linhas e agulhas. Decidiu finalmente pelas roupas leves, levíssimas, sem fechos e sem laços... Mesmo porque ele não estava mais ali para suspender ou abaixar o fecho éclair. 
Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações