Então!... Era isto mesmo de ter sensações sem explicação, só porque era
domingo em Rio Pomba. Um vazio dentro de si e na cidade. Não faria nenhuma
diferença se fosse segunda, terça, sábado. Era sempre assim... O filho
crescido, a vida cheia de espaços para serem preenchidos. Um abandono; a
síndrome do ninho vazio... Fazia um tempo indefinido ainda e a rua estava
deserta... Não lhe importava muito que chegasse o carnaval com toda sua
euforia. Não lhe importava que o carnaval também passasse, desfeito da ilusão.
Não havia espaço em sua vida, para a alegoria e confetes. Tão cedo, ela já ia
despertada pela pressa da manhã, arrumando pretexto para sair de casa, que
ficara imensa, vazia. Parecia naquele instante querer mais que a leveza da
aragem que se manifestava do lado de fora. Dia azul! Não se tratava apenas da
tristeza e solidão que a sufocavam, mas de um sentimento morno que agregava ao
corpo uma madorna esquisita. Talvez tivesse mais necessidade de sono do que
andar vagando pensativa pela cidade... Assim, desse jeito de principiante,
vasculhando a alma das coisas, como se lhe faltassem peças de um quebra-cabeça,
ela seguia experimentando e encaixando as nostalgias dos bairros da juventude.
Os poucos moradores que circulavam na madrugada perambulavam pelo Largo e se
encaminhavam para a igreja buscando fervorosos em Deus um pouco de calor e
reforço para suas tentativas de paz. Era a oração da madrugada. Uns caminhavam
pela Avenida, outros vinham da Água Limpa. A Rua do Ginásio estava deserta. Um
carro descia a Domingos Inácio, e as janelas iam se abrindo aos poucos. Um
choro de criança, o cheiro de café recém-coado, um cachorro dormindo na
calçada...
Apesar disso ela, ou um nome qualquer que a moça tivesse, achava prazer naquele
amanhecer, em que tudo parecia igual na cidade. Eternamente igual. Talvez
devesse passar pela padaria e levar uns pães diferentes, com coberturas e
merengues para que a vida não fosse tão a mesma de todo dia. Poderia inventar
um sábado, um domingo, um feriado, mas sabia que isto não faria nenhuma
diferença... Passou diante da padaria mais próxima da Matriz de São Manoel, de
onde exalava um cheiro de fermento, pães frescos açucarados e doces variados.
Ali se ouviam ruídos iniciais do dia. Aos cheiros, aos devaneios dela, se
misturavam os ecos dos sinos reverberando pela Igreja. Havia flores no altar
onde tudo era plácido... Ela, qualquer que fosse o nome da moça, tinha visto
que as cores dos arranjos cediam encantamento à igreja... E bem mais eram os
odores exalados pelos ventos que vinham lá de fora e rodopiavam pelos
corredores da imensa nave. O tempo da infância se misturando em sua cabeça
encanecida. Os laços do tempo estrangulando-a, como cadarços dos pensamentos
amarrados em um nó!
Ela, com seu nome
que podia ser qualquer nome de mulher, quis girar nas pontas dos pés, cantar,
para louvar a Deus, mas concluiu que as mulheres ajoelhadas que aguardavam as
primeiras orações não compreenderiam aquela impropriedade do balé. Tudo muito
inconveniente para a moça educada no Regina Coeli, das madressilvas e odores da
capela. Também lembrou-se que apreciava o louva-a- deus, no lago do jardim, que
dançava ora aqui, ora ali e parecia agradecer o criador. Reverente, ele bailava
solitariamente sobre o espelho d’ água em deferência e disciplina, enquanto ela
ficava observando da pontezinha que dividia o lago. Ah! O louva-a-deus patinando
no cristal do espelho d’água... A vida sem afeto por perto é deserto.
Quem sabe chamasse menos atenção se desse uma volta pelo Largo, depois de rezar
do seu jeito, venerando Deus com o melhor de si que é a alegria copiada de
todas as criaturas... E, depois das preces dançarem em sua cabeça como os
pequenos pássaros, fugir para estar bem onde o sol ainda não havia estado. De
lá poderia avistar tanto as palmeiras quanto os bancos vazios ainda e observar
o presumível movimento da cidade que acordaria. Discreta ela se comportava como
as pequenas “doze horas” ainda fechadas no amanhecer, porque tinham tempo certo
para se apresentarem com saiotes franzidinhos de crepom colorido... Ela, que
poderia ser todo nome de mulher, ou se chamar simplesmente Lourdes, preferia
assim: ficar espreitando o burburinho que se formava na cidade que acorda, para
falar sobre as delicadezas, distraindo-se com flores e árvores e tantas
criações de Deus. Poderia rir, afinal... A vida sem riso é drama...
Ela decidiu entrar na padaria, porque queria alguma coisa especial naquela
manhã de trevo de quatro folhas, de paladares da infância de traços no papel e
poesia. Ah! A vida sem lirismo é abismo...
A moça com todos os nomes de mulher, que se chama Lourdes, decidiu por sonhos.
Era raro tê-los no café da manhã. Sempre preferia pães de sal com manteiga, mas
hoje, não se sabia a razão, escolhia o que lhe parecia sabor de uma nuvem
recheada... Hoje iria se presentear com uma espuma doce se dissolvendo no céu da
boca, saboreando-a solenemente.
Entrou, comprou e pensou que comer sonhos
seria uma redundância em sua vida. Era assim mesmo. Ela, que tinha todos os
nomes de mulheres, concebida de flores e encantamentos, escolheu dois sonhos.
Por que não? Pois se era só disso mesmo que ela poderia viver daqui em
diante... A vida sem poema é dilema!
Algumas vezes percebia que compensava sentimentos, amor, atenção, com temperos,
comidas e condimentos. A vida sem poesia é insípida!
Mas hoje, não. Hoje entraria em uma padaria e compraria sonhos. E os comeria
sozinha, sentada no banco da Praça, vislumbrando além do jardim. Não queria mais
nada que tivesse pimenta e amargura, ao menos por hoje. Hoje, mesmo que o
recheio a levasse às lágrimas, ela comeria apenas sonhos... E os
apreciaria com muita alegria. Afinal, essa mulher pode até se chamar Esperança.
Ah! A vida sem lirismo é abismo!...
To: Maria de Lourdes Queiroz Esteves
Autora: Valéria Áureo
To: Maria de Lourdes Queiroz Esteves
Autora: Valéria Áureo