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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Caso de Natal


- Posso me sentar?
- Desculpe-me, mas esse lugar está reservado para ele há anos, posso até dizer, a vida toda. Temos um encontro! A beleza de nosso encontro é a espera, a longa espera... A beleza da espera é um conceito estranho que se encrava no peito, não acha? Apraz a uns e a outros fere de maneira atroz.
A beleza da espera por ele, pode até ser triste, para alguns, disfarçada naquela árvore de natal da infância em que os sonhos eram os maiores e quase não se podia contê-los. A beleza é triste, ela diria! Não triste em si mesma, como as paredes cor de rosa dos corredores frios por onde circula a brisa, mas triste sim, do que há nela de fragilidade e incerteza.

O erro foi marcarem um encontro no Hawa Mahal, em Jalipur, na Índia. No Palácio dos Ventos desencontraram-se, como se ela fosse a estrela fugidia, arrancada à força do harém do marajá. Em um das janelas do palácio, entroncadas nos finos corredores, onde dançava o vento, ela ainda poderia avistá-lo bem distante, esmaecido nas poeiras cor- de- rosa, em seu trenó.
O erro foi marcarem um encontro tão longe de casa, se era ali, bem ali, na casa dela, que Papai Noel vivia.

Autora: Valéria Áureo
Natal de 2019

sábado, 23 de novembro de 2019

Ana, a cidade e o rio





 


          Ana estava decidida a vingar-se do marido.  Por tudo. Pela solidão, pela beleza que tinha ido embora, pela tristeza de ter vivido tão solitariamente naquela cidade. Ela ansiava viver, seguindo o ritmo do coração. Realizar os sonhos que atormentavam sua cabeça. Queria mais. Sempre quisera mais. Ele nunca percebera o seu tanto querer. Queria incriminá-lo, desvencilhar-se dele complicando o resto de sua existência. Morreria, porque era inevitável morrer. Todos morrem um dia. Ela anteciparia a morte, só para ele perceber que ela estivera viva todos esses anos. Ele a fizera morrer. Na verdade sempre se sentira meio morta, desejando a vida. Ele, ocupado demais, acreditava fazê-la feliz.
          Ana pensou em um jeito de morrer. Jogar-se do alto da Avenida Paulista não lhe faria justiça. Perderia num segundo a sua beleza, a leveza do rosto, a delicadeza dos movimentos, esmagada por carros velozes. E, nos jornais, seria uma notícia minúscula, no meio de tantas manchetes. As pessoas passariam indiferentes, apressadas, diante do corpo inerte, coberto por plástico e só.
          Ela queria mais, bem mais. Deixaria uma carta, de um possível amante, manchada de vinho, só para o marido sofrer, imaginando sua vida plena, embora ela só tivesse em torno de si um vazio. Ana queria incriminá-lo e numa última carícia, tocava as costas de seu amor, arranhando-lhe a pele, para que sob suas unhas restasse uma gota de sangue. Um último poema de amor, tecido fragilmente entre seus sussurros e sua solidão. O toque dos lábios dele, as lágrimas dela, os sonhos dos dois. O marido acreditou que ela estava feliz e abraçou-a com ternura, porque sempre a amou, e voltava todos os dias para ela. Depois saiu, engolido pela cidade, deixando-a só, querendo a vida.
          Ana guardava uma gota de sangue, para que o legista encontrasse os vestígios do criminoso. Faria tudo para que não tivessem dúvidas: o marido é o assassino. Da janela podia ver a rua, os carros com seus faróis acesos, no final da tarde. Sentindo-se cada vez mais aprisionada, riscava com a ponta dos dedos um último poema na vidraça embaçada da janela, traçando uma sentença de morte. As partículas de sangue coagulado serviam de tinta para o poema da libertação. Aprisionada na arquitetura feminina, sempre ansiava habitar um corpo de aventuras. Fazer-se outra... Viajar sozinha e, no caminho, desviar-se no aeroporto, e nem ouvir a última chamada para o avião. Perder-se no saguão. Fugir... E então perder toda a bagagem, e perder-se entre desconhecidos e decidir mudar o rumo da própria vida. Só por prazer. Sem lágrimas. Essa autonomia assustava Ana. As saias nada lhe conferiam. Só a fragilidade e o sorriso fugidio. Se assim não fosse ela poderia, cercada de amigos, sair, beber à noite, vasculhar o proibido, provar o que não prova, disfarçando a solidão. Ter histórias, cicatrizes, nódoas, mágoas de amantes, lenços e saudades.
           Mas Ana repete-se na repetição de sua mãe, refazendo diariamente a alma na costura de meninas, desejando o jeito masculino de querer. Ana queria muitos países; outras pessoas, distantes línguas. Queria a multidão da metrópole. Ao menos São Paulo, se o mundo fosse impossível. Queria romper com o dia, deleitar-se na noite, andar sozinha pelas ruas da cidade, buscando viadutos. Queria muitas histórias, acontecendo com ela. Queria ficar no bar, fumar, tossir, se embebedar, só para sentir-se livre e viva...
          Ana tinha seguido a vida. Todos os dias eram iguais, no previsto e inevitável desempenho de primeiro ter o sol e ao fim da vida a lua. Ana sofria. Ela sabia que existe o mundo... Ao menos São Paulo. Sabia que precisava romper a proposta da casa, de levantar-se, de arrumar, de cozinhar e pôr a mesa, de repetir-se a mãe, a avó na filha. Assim, restava-lhe a poesia, em uma gota de sangue, sob suas unhas, descrita no diário ou no vespertino, à luz do sol, às claras, no brilho do talher, no tempero, na fruta dura. Ana e o bordado, o fio de lã, a costura, o assoalho, as meias de pares dispersados, a alvura da toalha, o móvel encerado.  Lá fora a cidade espreitava a indecisão de Ana pelas ruas, arranha-céus ou pelo rio. Talvez se afogar no Tietê, porque ele também morria. Sim, afogar-se, só para ser levada livremente para onde ele bem quisesse. Mas Ana queria a cidade, queria o rio, queria vingar-se.
          Assim, restava para Ana a poesia pura. Escrita com uma gota de sangue. Refletida no cristal do lustre, repartida na janela, na íris, na cabeça, na divisão da hora, no meio do asfalto. Ela sabia, o mundo existe aqui dentro. Ela sabia, existe o mundo lá fora e decidiu partir, levando consigo uma gota de sangue como um poema. Sob as unhas, a última lembrança. A do amor que não deu certo. Nos pés as antigas águas do Tietê correriam com ela pela cidade, para se libertarem.
           Ana decidiu navegar... E não mais morrer. Navegar nas águas dos seus olhos, afogados no encantamento. Livres. Navegar no rio que se reflete n’água, espelhando nostálgico desejo de querer ser parte dele, afluente seu, seu leito, sua foz, seu nascedouro, para se proteger... Tietê que liberta Ana e que aprisiona Ana. Ela e seu corpo compõem a margem, refazendo com a pele branca a ordem natural das coisas depositadas no seu leito, composição e decomposição de seus extremos e de seus limites, longas pernas e moldura do rio.
          Ana, inconstante, se esqueceu de morrer, perdida na superfície da água escura. Quis sorrir para clarear as águas. Perdeu-se no seu céu, repartindo-se por toda São Paulo, como se seus dedos longos e finos, fossem afluentes do amor, enquanto via nuvens entre intervalos dos edifícios. Ana repetiu-se na sua trajetória, apaixonada pela cidade, sob a dor de seu cristal partido, do seu peixe aprisionado e seu anzol. Ana vergou-se sob o peso das lágrimas comprometidas com outras águas da terra, ameaçadas, esperando os carros passarem; ela parada no semáforo. Sozinha, lembrando o amor que não deu certo, o Tietê corre, porque dentro de Ana também correm lágrimas.
          Ela trouxe o rio no coração, para não ter que se matar. Trouxe o Tietê, no seu último canto, no seu testamento poético, meditando sobre a própria existência, indagando sobre a aspereza e a indiferença do mundo, diante da morte dos dois, querendo saber se haveria vida melhor, prenunciando seu último mergulho. Parece que de seu rio recebeu o alento do último canto. Ana, sozinha, queria o primeiro canto, construir-se ribeirinha, nascida para o poema e suas águas. Ela queria afogar-se só em palavras, para dizer: amo-te São Paulo. Meu rio, nós somos iguais...
          Ana, sozinha, quis sobreviver da profundeza de sua solidão. Quis da cidade o primeiro sonho sem acordar, o primeiro mergulho sem afogar-se, o primeiro amor sem se perder. Ana e o primeiro corpo nu, o primeiro coração parado. Ana, sozinha, quis do rio o primeiro coração batendo forte, a primeira arritmia, a primeira distância percorrida, a primeira volta para casa.
Resoluta Ana saiu pela cidade, tentando explicar-se, tentando recolher-se num copo de águas cristalinas. Aquelas do Tietê.  Para não morrer, para não ter que se matar e incriminar o marido pela solidão repartida. Ana libertou-se, aprisionou-se no rio, em papéis, em letras, para preservar águas e fluxo, correnteza e corredeira, redemoinho e movimento, debilitada no seu limo, seu seixo perdido, enquanto escrevia um poema com gota de sangue, do último encontro com o seu amor.
          Ana carregou lágrimas, recolhidas na calçada, enquanto via os outdoors.  Carregou mágoas como o rio carrega águas que foram puras, mas decidiu viver, trazendo nas unhas um poema de sangue e a esperança de ser feliz e os seus cabelos são ondas que invadem o oceano.
Onde ela pode desaguar-se, se é distante o oceano, senão em outro rio?
         Ana navegou no Tietê de São Paulo e sorriu. E o rio clareou.

Autora: Valéria Áureo
Prêmio 450 Anos de São Paulo - Coletânea de textos premiados.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

A Palavra na Era da Imagem


- Menina, diz a mãe, vá brincar!... Vai ficar com as pernas atrofiadas, tanto tempo no computador... Vive trancada nesse quarto, parece um caracol.
Imagina!... Eu me olhava no espelho, na tela refletida do monitor e não via nada diferente das outras meninas... Via dentro das águas dos olhos vertigens o que a boca não descrevia; a mim, à imagem e semelhança de Deus, a quem nunca vi, de fato, só mesmo manifestado na arte... Uma imagem vale mil palavras; uma palavra descreve uma imagem ou mil e uma em tantas noites, mesmo que depois eu fique em silêncio, calada para o resto da vida...
O pai resmunga: - Deixa a menina!...
- Agora não, mãe!... Agora não! A menina selvagem, já ia bem longe dali, sempre lendo, acompanhada de pássaros, de uma tinta de magnólia escorrida nas faces, carregando punhados de renda... Fugiu para encontrar-se com Henriqueta em Lisboa. A mãe, agoniada e tão inocente, achando que ela estava trancafiada em casa. Não compreende que agora ela navega, viaja com Gulliver. Também como ele a menina quis levantar-se, mas tem os cabelos presos ao chão e os braços e pernas imobilizados por uma porção de amarras. Está presa na rede... Sobre o corpo uma multidão de homenzinhos dança, pula, se precipita. Está certo que passava muito tempo trancada e a mãe não gostava. Que absurdo, presa, trancada, reclamava sempre agoniada... A verdade é que Lya Luft nO Quarto Fechado...
Minha mãe acha que não faço mais nada... Não leio, não escrevo, só fico no computador, navegando. O importante em navegar é não naufragar em informações efêmeras. Pois aprendi que para ser Pessoa "Navegar é preciso, viver não é preciso", mas sei bem o que quero aprender... Como pode imaginar que não leio mais? A verdade é que eu estou até o pescoço com Papéis Avulsos e Páginas Recolhidas que Machado me emprestou. Como dizer que não escrevo? Se “o que me atrapalha a vida é escrever”. Mas agora é, e para sempre, a minhA Hora da Estrela, porque também quero viver...E quando preciso, bem faço eu que repouso Perto do Coração Selvagem, onde encontro música, tecido de sons que a alma de Clarice suportava, metonímia de todas as linguagens humanas, ritmos de todos os sons... Pois danço, canto, faço música e sonho...
Fujo para me esconder de minha mãe na mata Matisse de todas as cores. Ele está ali há um bom tempo e pede para eu não atrapalhar; ilustra e me faz um ramalhete de Fleurs du mal de Baudelaire e lembra-me que é tarde e preciso me arrumar para sair. Disse Picasso que Matisse tinha um "sol na barriga", cujas cenas brilhavam com a luz radiante do Mediterrâneo. Achei muito engraçado; já tinha ouvido falar em rei na barriga; já minha mãe diz que não tenho nada na cabeça e nem na barriga, porque não me lembro nem de comer.... Eu olho escondida atrás da porta, para que ela não me veja vestida com a Blusa Romena; seria um escândalo. Ela me diz que não tenho idade nem para usar batom... Miró- me no espelho assim mesmo, vaidosa e tão sozinha como o Cão latindo para a lua. Oh!... Esqueci-me por completo d'A lição de piano. Amanhã à noite no Claire de Lune eu me dedico mais e me debruço nos braços de Debussy
Windows aberto para os olhos nunca me deixam parar de ler ou escrever! Minha mãe reclama que vivo trancada no meu quarto, não solto um pio sequer... Não percebe que estou a compartilhar dos gorjeios e não sinto fome... Já voo com a matinal Ave, PalavraPássaro libertado de Guimarães Rosa e todas as outras flores; Florbela Espanca-me... Com doçura, palavra por palavra e imagem. Estas todas que se encontram, se fundam, confundem, explicam, complicam, celebram interação perfeita, varando as veredas da linguagem e alcançando novo universo, terceira margem do rio na varanda. Terceira dimensão, flash, poeta e kodak do "retrato-relâmpago" no porta-retrato estático, feito de luz sobre o móvel. Imóvel, diante do computador, faço a imagem dançar com palavras sob o encanto do cursor imaginário em busca do universo paralelo... Depois, quando tiver fome, posso muito bem comer Maçãs e Biscoitos de Cézanne.
Imagina!... Presa eu?... Se com Pedro Nava navego à Beira Mar com o coração juiz-forano em seu Balão Cativo, enquanto ele ilustra Macunaíma de Mário só para me encantar. Imagina!.. Como posso estar só no meu quarto, se o Galo-das-Trevas canta e eu aprecio?!...
Já é quase manhã, eu ainda nem dormi... E minha mãe achando que estou perdendo a infância, sem saber brincar... Faço brinquedos de palavras e cores, enquanto Bandeira tremula nas telas de Volpi. Vou pisando em chão de estrelas, Estrela da Vida Inteira, hasteada no céu, só para recuperar o tempo perdido de Proust, tempo perdido diante do computador, diz minha mãe. Mal sabe ela que Proust me empresta todo o tempo diante das velas de regata, porque os vestidos das moças não atrapalham, aos olhos de um pintor impressionista, o espetáculo do mar eterno. A imagem é uma caixa fechada que Edgar Allan Poe põe na minha mão e eu gosto de abrir... Não, melhor, talvez a imagem seja um papel, um bilhete, uma carta, um Manuscrito encontrado em uma garrafa nos tantos mares que navego, enquanto eu cresço. Eu queria dizer para minha mãe que eu saio mesmo é para brincar nos quintais de Quintana, n'A Rua dos Cata-ventos, onde ando calmamente com meu Sapato Florido, só pisando nuvens, porque sou também O Aprendiz de Feiticeiro e tenho atrás de mim, ao meu encalço O Batalhão de Letras.
Se eu me cansar de escrever, porque ainda aprendo como uma menina treinando em caderno de caligrafia, descanso um pouco recostada na Pedra do Sono que João Cabral erigiu com projeto d'O Engenheiro. Muito mais cansado estava ele de ver a Morte e Vida Severina terracota dor, que todos os dias eu vejo na caixa televisiva; eu introspectiva, e a vida internética, explosiva, me fazendo sofrer. Morro do que há no mundo, disse-me Cecília e a circunferência fica, em redor, fechada...
Minha mãe diz que tenho que sair para brincar, exercitar as pernas. Já expliquei que não estou trancada no quadro na parede, na tela de plasma... Se Sangue e areia é o nome de mais uma novela que se espalha na minha sala, no meu quarto e no Iraque, eu fujo porque não suporto o sofrimento da humanidade. Não se espante... Melhor que eu Solte os Cachorros no Prado de Adélia, porque lá poderei recolher Cacos para um vitral. É isto, meninas como eu passam o Verão no Aquário ou n'A estrutura da bolha de sabão, procurando peixes e caçando borboletas, assim me disse a Lygia.

Tenha à mão, assim como eu faço, um Cursor Virtual de palavras penduradas nas paredes feito quadros de Dali; Dali em diante Salvador, enquanto o inconsciente fala e ele planta a Rosa Meditativa no meu coração... Eu me salvo enquanto escrevo... Estranho ferreiro que sou, ainda Noviço, tentando fazer pinturas de letras... Muito distante do que Martins só com a Pena soube escrever. Estou aprendendo... Outros escrevem fácil, fácil, brincando, derretendo... Derretendo metais; Ferreira diz que vai me ensinar a moldar a imagem na palavra, mais ainda... estranGULLAR, desde que eu não faça Barulhos nem pise n'O formigueiro... Meninas metidas com poesias e sonhos acham que podem mexer em tudo que encontram. Fará isto Por você, por mim... Sim, por mim, por ti, Portinari... “Quanta coisa eu contaria se pudesse e se soubesse ao menos a língua, como a cor”.
Autora: Valéria Áureo
Prêmio Academia Brasileira de Letras  e Folha Dirigida - 2005

domingo, 17 de novembro de 2019

O Cronista





          Eu sou uma pessoa que não chora. Ou melhor, nunca em público, só mesmo bastante longe de qualquer olhar humano, ou quando o olhar humano já deixou de existir. É que me habituei a isso, desde que fui trabalhar na agência que cuida dos últimos instantes do sujeito. Caso contrário choraria o tempo inteiro e espantaria os meus fregueses. E depois que arranjei esse trabalho, vejo esta vida assim, resumida na morte; escondido eu choro. Na frente dos outros, chorar seria a desgraça total, capaz de arruinar qualquer reputação de durão, construída durante anos a fio. Pelo visto sou eu, a princípio, o homem sensível, mais a imensurável mágoa de ver o fim tão de perto. Ver através de quem conheci e amei, é muito triste. Diante do sofrimento foi que me decidi parar de chorar na frente de outros humanos. Há coisas fantásticas, não há? Uma delas é decidir parar de chorar, ou qualquer outra coisa que nos deixe acanhados.Entretanto eu choro apenas perto dos cachorros, mas distante dos homens; não sei por que os dois me comovem tanto.
          Vai-se ao chope de final de semana, para ver a balada de moços e moças; vai-se à praia, ao cinema, ao shopping. Vai-se a todos os lugares. Pois eu prefiro estar em casa recolhido. Lá fora ouço barulhos, que põem toda a gente a saltar. A mim não, que sou tímido e sossegado. Pouco ou nada se ouve com aquela música feita para explodir o crânio. Eu não me entusiasmo e já não suporto tanto tais ruídos. Meus ouvidos padecem, quando distantes do meu local de trabalho silencioso. Lá sim, constante bem estar. Ser, ou não ser!... Tal verso tem ecoado na minha cabeça nos últimos dias. A vida é curta demais, para perdermos tempo com jogos, seduções e indecisões, ou barulhos ensurdecedores... Ou é, ou não é! Agradável ou desagradável. Diferentemente disso, não há o que fazer. Antigamente eu era capaz de falar ininterruptamente, durante eternidades, sobre tudo e sobre nada, com qualquer pessoa, inclusive aqueles com tendências esquizofrênicas. Eu gostava de falar muito... Agora que conheço os esquizofrênicos, tenho que aproveitar todas as oportunidades para mostrar que fico a ouvir silenciosamente, durante horas e horas, todos que encontro; ainda mais quando estão condoídos e enlutados. Nessa hora em que falam mais e que precisam que alguém os ouça, sem restrições, eu estou pronto para todos.
          Agora estou bem melhor; agora escuto muito mais e falo muito menos... Ouço o síndico, o porteiro, as namoradas dos amigos, a prima da tia da vizinha e todas as pessoas que a dado momento partilhem o mesmo espaço comigo. Todas precisam desabafar e eu ganharia um bom dinheiro se cobrasse para ouvir.
          No meu tempo de infância as Igrejas estavam sempre abertas. O sujeito entrava, falava diretamente com Deus, desabafava... Depois disso voltava aliviado para a vida. Agora, não! Não se vê mais uma Igreja disponível. Nem mesmo padre com tempo para ouvir. Sou o ouvinte de todos, mas poucos querem me ouvir. E isto não augura nada de bom para a minha vidinha, não augura não! Será que estou condenado a passar os restos dos meus dias com quem não tem resposta para me dar? E há dias em que tais tormentos são ainda mais verdadeiros. Dei-me ares de cronista, exatamente porque não tinha com quem falar; ninguém disposto a me ouvir. Passei a ter gosto profundo por casos de pessoas comuns; a crônica de cada um, que à minha alma chega, me faz indefeso para contestar o que falam a seu respeito. Absorvo um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano. Fico comovido; e como já disse às vezes choro escondido. Diante dos cachorros sim; jamais diante dos homens. Depois disso escrevo algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã. O motivo de certas confidências, na maioria dos casos, é o pequeno incidente; coisa de pequena monta... A notícia em que ninguém prestou atenção, o breve e insignificannte acontecimento, a discreta cena corriqueira. Nessas trivialidades, o que me surpreende é a beleza, a comicidade, os aspectos singulares dos quais eles não se dão conta. Mas eu estou atento a tudo. O tom certo de uma história surpreendente está onde menos se espera; é como "uma conversa aparentemente banal", entre uma baforada de cigarro, uma receita de remédio, a espera de um troco, a fila de idosos no Banco, um guarda-chuva que virou do avesso sob a ventania, um assovio na rua, um tiro na noite. Tudo fala aos meus ouvidos. Eu ouço. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, que me alegrasse, mas não é bem assim. Visava ao circunstancial, ao episódico, que provavelmente não se repetirá. Ou, ao contrário, repete-se em toda casa, com todas as pessoas. Nessa perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança, ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador. Mas, e eu? Onde fico se imagino que, enquanto observo a vida estou livre dela?
          O único tempo do meu dia que dedico a pensar sobre a morte é quando não ouço mais ninguém. Sempre observo o senhor tomando chope no bar em frente e me vem a ilusão de que ele também não se preocupa com ela. Ao menos com a própria morte, imagino. Pode ser até que pense em alguém que já se foi. Mas, é só e provavelmente por poucos segundos, que o faz. Caso pensasse na sua própria morte, não estaria calmamente de pé fumando e bebendo seu chope. Ele o faz todos os dias, sem se dar conta da própria finitude. Daí todos os dias não pensar em si mesmo.
          O interessante é que do meu ponto de vista ninguém deveria representar a morte pelo fim, até porque se ouve muito o fato de a morte ser a transcendência do material para o espiritual, mas ainda assim, trabalhando aqui, é o momento único do dia em que não penso nela. A partir das conversas do fim de cada um é que me vem o começo de algumas ideias. Lidando com a morte é que eu penso na vida. E eu vejo que a vida é um espetáculo, como qualquer outro encenado no palco. Cada um tem seu personagem, mas passa a vida inteira decorando o texto. Quem afinal veio para esta vida já sabendo o que fazer? Ninguém! Ninguém conhece nem o papel e nem o enredo. Por isto é que tudo tem que ser improvisado.
          Passam aqui em frente, muitas pessoas em companhia de outras. Antes de chegarem aqui elas riem e gargalham, mas quando mais próximas, elas param e olham para dentro; outras mais amedrontadas atravessam a rua. Preferem o outro lado da calçada. Muitas gargalhadas já foram interrompidas por choros e corpos, por velas e coroas, como se fosse o maior desrespeito continuar vivo depois da morte do outro. Tolice! A vida segue como se nada tivesse acontecido. Não há motivos para receios.
          O restante dos meus minutos, eu busco viver como se realmente eu não fosse morrer. Busco viver mesmo que seja diante de uma enorme conta de luz que não poderei pagar, ou andando apressado por essas bucólicas ruas que não me deixam nunca andar sozinho. Há sempre alguém vindo em minha direção, ou partindo comigo, para me fazer companhia. Busco levar sempre comigo a beleza de saber ouvir sobre a vida dos que precisam fazer confidências. Ainda assim, me pego sorrateiramente reclamando, às vezes, daquilo que pode ser consertado. No entanto, naquela funerária, as pessoas vão para resolver algo que não pode ser resolvido. Ao menos estou ali para que desabafem comigo. Se eu faço crônicas de tudo que ouço, paciência... Perdoem a minha indiscrição. Penso eternizar dessa forma os que acabam de partir. Histórias há... Muitas, para serem contadas. Há inclusive as minhas. São inúmeras no meu árduo ofício... Nunca tinha me ocorrido que eu também sou personagem bufão desse teatro. Dei-me conta disto só agora. Sempre me imaginei o crítico da peça teatral. Vendo cada encenação, analisando, fazendo revisão, dando conceito. É... Um crítico teatral era o que eu imaginava ser. Talvez o escritor da peça também eu pudesse desempenhar muito bem. Agora, vejo que não; sou figura dramática, como qualquer outro. Tenho meu papel para interpretar... Mais um pobre personagem saltimbanco desta vida.
          Uma vez fui encarregado pela família de colocar uvas no caixão de um chinês, conforme a tradição. Minha pobreza era maior que a veneração à cerimônia e o grande respeito ao meu ofício. Tenho orgulho do que faço e muita competência. Naquele dia, diante das uvas hesitei entre a responsabilidade e a curiosidade do paladar. Também me lembrei de minha mãe... Acho que pela fábula que sempre me contava: “A raposa e as uvas”. Pois eu vi as uvas, lembrei-me de minha mãe... Achava um desperdício de aquela iguaria ser levada junto com o morto. Levei para minha mãe que nunca tinha provado uvas e achou a fruta muito doce, muito refinada; declarou que uva é “uma coisa do outro mundo”. E não é que ela estava com a razão? Uvas... Quase que iam mesmo para o outro mundo... Outra vez fiquei com os sapatos novinhos do defunto cliente, porque eu mesmo só andava descalço. É que tínhamos o mesmo tamanho de pé. Também achei que aquela coincidência de número de sapatos fosse um sinal celestial. Jurei para a família que os havia colocado no falecido ( que fez a viagem de terno, mas sem os seus sapatos). Ele que me perdoasse. Tenho certeza que, para onde ele estava indo, não precisaria deles. Ademais, rezei para que seu caminhar fosse sobre nuvens. Tinha certeza que não teria pedras para pisar, pela mansidão do seu terno semblante. Dava a impressão de homem generoso e despojado. Acatei a mensagem com a certeza de que o morto já tinha chegado ao céu e nem tinha precisado dos sapatos. É nos emolumentos fúnebres que encaramos a cruel realidade (sobretudo a nossa). Concluímos que nada é eterno, que as pessoas vão e por incrível que ainda nos pareça, não levam nada consigo. Nada do que levaram a vida inteira para amealhar. Nem mesmo os sapatos...
          A verdade a que cheguei até agora é que as pessoas realmente são muito frágeis, apressadas e confusas, e eu me incluo nessa louca ciranda de emoções. Também sou um homem triste. Reservo um tempo para chorar, mas só quando não há ninguém por perto, só o meu cachorro. E, quanto àquele sujeito do chope, imagino que ele se sinta melhor que os outros, ou mais tranquilo, sei lá!... É o meu patrão! Deve pensar consigo mesmo que seu negócio é garantido; mais dia, menos dia, todos serão seus clientes nesta cidade tão pequena... Tem certeza absoluta de que vai ficar muito rico e que enterrará todos. Eu continuo como estou. Um coveiro cronista.

Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amor Líquido - Amazon



quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Os Olhos Verdes de Maiara





Os olhos verdes de Maiara desmaiaram na palma da mão do frentista, por acaso... Indiferença dela, como se nada visse, nem mesmo o trânsito pesado, enquanto as linhas das mãos dele tentavam embaraçar, enredar o olhar dela em teias de aranha. Tentava isso, movimentando-se aflito, só para comprometê-la na trama dos seus sonhos... Ele é quem acabou ficando preso, retido em aromas dos campos dos olhos tão claros e boca perfumada de anis. Depois que a viu, esbanjando olhos para todas as direções, soube que a amava sozinho, porque a beleza dela era o que ninguém podia perceber. Era tanta, que ninguém mais podia interromper aquilo tudo que ele via, enquanto Maiara estacionava o carro. Ele achou que o mar nem era tão verde assim, porque em dias de chuva, bem que ele se confundia com a cor cinza de sua solidão. Ela era toda assim, esperança instantânea tomando lugar da luz dos faróis acesos e do destino dele. Era de perder o juízo, condenado ao juízo final, porque até pecaria em companhia dela, que realmente era mulher de fazer qualquer um perder a vontade de viver. Aceitava morrer sem absolvição... O amor reprimido, inventado naquela noite de segunda-feira, improvisava uma tristeza sem explicação e o fazia ter medo de voltar para casa, perder o rumo e não ter mais ela. Ela era mesmo mais que o mar. Eram mais verdes os seus olhos, onde o frentista desesperadamente acabava de capitular... Mas o mar era mesmo bem pouco, bem pequeno diante dela. Havia um naufrágio íntimo, prestes a acontecer. Porque era certo que ele morreria naufragado em procelas, vítima dos desejos dela, se ela quisesse escravo para toda vida, sem poder dizer que não... Não podia deixar desabitada aquela praia em torno dela, porque não havia salvação, nem ele queria mesmo ser resgatado. Melhor morrer nos braços dela, que lhe daria o beijo da vida, se ela quisesse, no boca- a- boca, antes de morrer no afogamento do mergulho final.


Maiara pediu laconicamente que o frentista enchesse o tanque, calibrasse os pneus, lavasse os vidros do carro, e nem viu o rosto dele. Não pôde sentir que o coração do moço era açoitado por uma crescente aceleração, porque ela era mais linda que tudo, enquanto a água refletida escorria pelo rosto atrás do para-brisa e as gotas cintilavam nos lábios dela. O frentista quis que ela visse o que ele via, só para saber o quanto resplandecia nos milhões de células de água, repartindo os olhos em mil fragmentos de esmeralda; quis que ela visse o quanto ficava linda, adornada e dividida pelos sentimentos dele. O que a fazia linda era mais o que ele sentia nos quinze minutos do dia em que ela parava para abastecer... E ele abastecia a alma de planos e sonhos, calibrando o coração descompassado no ritmo da voz que nem ousava um cumprimento de “boa noite”. Perdia a fala, ficava bobo e mudo, imaginando um encontro... Mas eram os olhos dela, que erravam de destino, que não riam nem choravam, mas faziam calar a sua boca. Ele continuava bobo e mudo e os olhos dela não diziam o que sentiam, nem viam o que deviam ver. Eram duas incógnitas ígneas, mesmo que fosse dia, quando se escondiam nas sombras do ray-ban e tédio.
Maiara entregou para o frentista o cartão de crédito e ele ainda bobo e mudo esperava a senha do coração dela; ainda bobo e mudo acreditava que os olhos dela eram mais lindos que as violetas estampadas na íris de Lis Taylor. Ela deixou uma gorjeta e o desdém silencioso para o frentista. Ele nem queria dinheiro; queria um olhar, um sorriso ao menos, só para ter do que se lembrar no resto do dia... Mesmo assim, esmolando um olhar, estendeu a mão para devolver as chaves e o Credicard, não acreditando que ela ia embora sem ver. Foi aí que ela pôde olhar para ele e ver as unhas curtas contornadas de graxa, o macacão manchado de trabalho e óleo e a expectativa de ser avistado sem o emblema do posto, sem o suor cheirando à gasolina, sem a flanela despencando do bolso de trás. Tudo muito inapropriado para um encontro de amor...
O que ele queria mesmo era ter uma flor na lapela, ser dono do seu pensamento e poder dançar e carregar para sempre o olhar daquela moça. Ah! Se ele pudesse encontrá-la, levar um buquê de rosas...


De humanidade nela, só mesmo o seu jeito distante de tomar um café expresso, olhando para o infinito; gesto impassível de acender mecanicamente um cigarro. Ligar o motor do carro. Ajeitar indiferentemente os cabelos, no desencontro dos olhares, enquanto ele sofria.

Autora: Valéria Áureo


In: Conjugando o Amor Líquido


Prêmio UFF de Literatura- Coletânea de textos premiados.



terça-feira, 5 de novembro de 2019

Jardim de Flores Brancas






      Deu-se que o sujeito sumiu... 
Para ter exatidão na narrativa e ser positivo sobre quem falo, o nome dele é Seu Lopes. Assim evito qualquer engano de sua pessoa. Pois foi muita vez que fez isso de desaparecer quando navegava o mar, coisa com que ninguém da família se ajeitava. Mas isso não é hábito de agora, que é seu tempo de maturação e barba branca; tempo de lavrar a terra e se meter lá pelos matos dos confins de Minas, bem na profundeza do grotão, como se não quisesse mais ser avistado. É que já foi ajeitado assim, desde novo, em navio e porto que faziam o danado do marinheiro perder o rumo de casa, à custa de muitos meses sem mulher. Já maduro, abandonou o mar e dedicou-se à terra, mas não abandonou os vícios.


      Já que o sujeito sumiu nas andanças e não deixou paradeiro, não custa nada averiguar se ele foi picado por cobra jararaca ou cascavel, no sítio de Santa Bárbara, pois dizem que “tem” lá uma quantidade capaz de fazer uma desgraceira nas pernas do cabra. Seu Lopes, precavido por sinal, deu por usança andar com botas de cano longo, por questão de cuidado, temente à rastejante, cujo nome não repete, por respeito e tradição. Mas teve que largar às pressas a tal medida das botas de cavaleiro, porque os pés foram inchando, inchando, inchando, preocupando sua cabeça com dúvida da qualidade do coração. Deu receio de estar doente. Livrou-se das botas num canto do quarto e o inchaço desapareceu.


      Lá nas terras os cupinzeiros iam sinalizando as lonjuras do seu domínio, competindo com o sansão do campo; a coruja na grota do cupim, piando e fazendo ninho, vigiando os domínios do novo dono, enquanto ele metia o chinelo raso no lamaçal, só para espreitar o tapecuim e arejar os dedos. Vistoria de qualidade, vigilância de cada palmo de terra, da rama até a raiz, a cada planta pedindo que se diga: benza-a Deus, para afastar o mau-olhado. Homem cuidadoso no trato com planta e bicho, acima de tudo, por pura justeza de afeição; já com gente nem é de muita paciência, porque muito sujeito vivo nem tem serventia pra viver. O tal que não vale o prato que come ele nem atura conhecer. Tem pouca tolerância com esse tipo de cidadão.

      Talvez Seu Lopes tenha sumido lá na direção de Lima Duarte, depois de arrodear o Pomba, onde foi ver um caboclo bom de fazer móvel; o tal marceneiro Zé Mateus, engenhoso, ciente e dono de muita madeira de lei, a quem ofertou uma cafeteira italiana, para ter com ele uma amizade e boa ocasião de prosa e café de qualidade e bastante calor; isto tudo porque café frio não presta, de jeito nenhum; nem a conversa apruma e vai adiante com café frio. 
      Estreitou-se um companheirismo fraternal de instante, na encomenda da porta de jacarandá; uma para a entrada da sala, de moldura em arco, lateral de vidro e umbral de bom gosto, porque tem habilidade para escolher coisa sem nenhuma rudeza. Quem viu diz que é lindeza de fazer cobiça... E ainda mais; encomendou por muita consideração e apreço ao marceneiro as oito cadeiras de espaldar, as seis banquetas e uma prancha para o bar; uma estante e uma mesa de jantar, de mimo para a mulher com quem vive. Questão de lhe fazer um agrado; um apreço que tem só com ela, com nenhuma outra, porque aquela é a dona do lar... 

      Pode ser que tenha sido tocaiado na curva do mata-burro, por questão de peleja; coisa nascida na questão de pouca água de serventia em suas terras e escassez de boa vontade de quem lhe vendeu o terreno. O cabra diz que não tem água com fartura e a seca é grande. O tal do Seu Nego, empregado que cuida da fazenda vizinha, diz e desdiz a coisa toda, estremecendo os lábios numa evidente aflição de velho roceiro intrigado com tanto atiçamento na calmaria de criar tilápias. Água tem... E muita! Mas a água vinha da fazenda vizinha, cujo dono vendeu as terras para Seu Lopes, prometendo fartura e agora que já tinha vendido, andava emburrado. Muita água. Coisa novidadeira para quem só criava boi. O mais que Seu Nego faz é abrir e fechar a água que serve ao Seu Lopes, assim evitando embate. Pois numa infeliz carraspana, além de abrir a bica de água, também abriu o bico com a tal Marilena, assunteira das boas. Espalhou com ela e quem mais, sabe-se lá, que o patrão tem uma amante. Alastrou a conversa atrás de portas e janelas, pela fazenda, qual fogo em estopim; a empregada enredou a trama com fios de cabelo de mulher em travesseiros... Mas o que a moça visitante deixou foi aroma de rosa. Agora a criada diz que falaram, ouviram dizer e contar entre cochichos, que a Dona das ultimas sentimentalidades do patrão vai e vem de vez em quando, de visita encoberta em mantas. Pois então, a intriga se esparramou feito leite no chão... Marilena, enxerida no caso, garante que a Dona deixou pistas; que a moça veio amoitada e largou rastro na passagem. E a pendenga aumenta todo dia e se alimenta de boca em boca, aborrecendo o patrão que não tem papas na língua e muito menos paciência e juízo pra conversa fiada e diz-que-me-diz. Pode até puxar arma pra convidar o macho que tenha coragem e atrevimento de prosseguir com a narrativa do episódio de infidelidade e afeição com outra mulher. Ele, logo ele. Discreto e calado e que não  dá confiança a ninguém. Nada de divulgar suas intimidades e seus chamegos e muito menos os seus paradeiros. O patrão já estava agastado com toda essa conversa de língua de trapos. Mas que povo encrenqueiro! Suspirava...

      O sumiço pode ter ensejo na questão do caseiro, que é sujeito sonso e acabrunhado e com quem Seu Lopes se desaprumou na conversa em um dia desses. O agregado é matuto de pouca fala e obediência e de menor decisão. Cidadão de tez escurecida de sol, cara de desinfeliz quando está ocupado com sua obrigação de molhar planta. Faz de tudo, mas com desenvoltura modesta, desde que não lhe imponham coisa contrária à sua predileção: fazer do costume que sabe, conforme aprendeu vendo o pai na roça em Barbacena, sem muita ordenança na cabeça ou atenção. Indisposto para aprender do jeito que tem que ser. Sabe coisa de serventia pra planta e pro chão; mas coisa muito pouca... E nem quer aprender mais, porque isso cansa a cabeça, ele diz. Aparvalhado no trato, mas arrogante de posição, porque de humilde só tem o feitio e o falatório de cabra de pouca instrução. Diz que doutor não sabe nada, porque quem cura é Deus, no que, em muito tem razão, mas médico faz falta também. É que o sujeito fica demente na questão de saúde dos filhos, por quem morre por dedicação e zelo. Não aguenta ver ninguém maleitoso, que chora como criança abandonada pela mãe. Nessa ocasião falta ao trabalho e desorienta os sentidos. É um homem de crença. Quando está nublinando, no seu dizer caipira, ele se ajeita na foice com medo de onça que vem beber água. Depois de se benzer prefere mesmo um facão na parecença simplificada de resolver a vida com bravura, ganha-pão e reza. Certo é que para a labuta não tem muita serventia, mas por comprometimento e necessidade de todo homem honrado diz que trabalha de sol a sol e prega a palavra de Deus. No embornal vai a Bíblia, na ideia atarracada vai a foice e a devoção.
 
 
      Desinteligência houve entre o empregado e o patrão... Briga de pouca abrangência seria se não perdesse a ocupação de caseiro e homem de confiança; coisa que levantou a satisfação da cidade quando se lhe tirou a chave do casarão. Gente que não suporta a vitória alheia deu-se por muito contentada com a perda de sua ocupação. Lá se foram o bom salário, o aluguel, o dinheiro da farmácia e a disposição para sentar praça em lugar decente e ganhar a vida com honradez. Desavença com o empregador que desvendou seu caráter no soco que ele deu nos queixos da Dona Maria, quando esta lhe cuspiu na cara; aliás, muito bem merecido o murro, porque a isso ela fez jus, mesmo sendo mulher. Aquela miudinha já tinha dado cabo de peão, com malícia e fio de facão. Picou o sujeito todinho num golpe certeiro. Só anda de faca na cintura e desafia homem e mulher. Gostava de se fazer temerária. Desaforada! Valeu-se diante dele de ser uma fêmea atrevendo desafiar homem brabo e recatado nos costumes. A tal se meteu em sua vida, por gosto e malqueirança e inveja de fazer gosto. Pobre caseiro! A dona deitou falação na vida do roceiro que, daí por diante, só deu pra trás, fazendo intriga com a família, ameaça e cantilena de delação de seus erros do passado; pronta pra entregar tudo para o patrão. O tudo que ela dizia era nada... Asneira pouca, aliás, coisa pequena; apenas questão de preguiça dele, erro sem gravidade, porque honesto ele sempre foi e dava conta do serviço; no jeito dele, no tempo dele, mas dava. Se não dava conta do serviço em uma hora, dava em outra e tudo ficava pronto. Pura bisbilhotice da megera invejosa que custou ao pobre o sossego e a prosperidade. Daí por diante, a vida do caseiro só deu pra trás. 

      Depois disso o desgraçado ajuntou mulher e três filhos melequentos no velho fusca “torovão” azul e caiu no mundo. Da fartura à eira nem beira, num só baque, tudo desceu enxurrada abaixo, por conta do palavrório da Maria, que devia ter um amor enrustido pelo infeliz, a ponto de acabar com ele. Êta muié ruim... O coitado do empregado, tão temente a Deus, levou amargura e olho-gordo da inveja alheia, pesando sobre suas costelas a ira de Eva; invídia de vê-lo tão bem situado. Uma cobra! Por pouco tempo teve um trabalho proveitoso que enricou sua vida em utilidades; a mulher fazendo luxo e gosto com máquina de lavar roupa e fralda descartável. Ele mesmo, de casa boa, botina, se arranjou com bicicleta, relógio e rádio gravador, apadrinhado pelo patrão. Diz que o rádio é serventia para o ministério da religião, porque é pecado ouvir música ou ver televisão; diz que é tudo coisa do demônio... 
Aquilo foi demais para a cobiça do populacho que crescia os olhos pra cima dele. Vida boa, prosperando no sítio... Quem diria... Aquele atoleimado... E ainda dizendo que um dia seria pastor. Pois o povo não aguentou; e o povo danado a falar, falar, falar. Imaginem... Pastor! Até alarde de recreio no campo, um besta... Pois é, repetiam aqui e ali que o caseiro deu de levar a molecada toda, o pai, a sogra, o cachorro e a mulher; tudo enfiado no velho fusca, para fazer uma galinhada no domingo, coisa, aliás, que contrariava Seu Lopes e despertava a inveja da inconformada Maria e o resto da cidade. Vinha tudo empoleirado no “torovão” azul, fazendo algazarra pela poeira da estrada, mesmo a muito contragosto do coitado do patrão. É que não tinha sustentação a reclamação do senhor de não querer o povo todo embocado no sítio, porque o cabra nem era dono do seu querer. Tudo cabia na decisão da sua mulher... Eta muié mandona! A dona insistia em dia de domingo e lazer na preguiça, como fazem as patroas. Mas só depois da reza no templo, porque homem que se preza é respeitoso a Deus. E o homem obedecia.


      Foi-se afinal o caseiro, tão pobre quanto veio depois da celeuma instaurada. Chamado pra briga no braço, ou do jeito que tivesse valentia, o dito recuou de prosseguir na provocação da Maria, armada com muito ódio e um facão. Foi-se desaprumado, humilhado no desalinho da calça amarrada com um fio de pobreza. Maria finalmente sorriu. Maria riu. Gargalhou! Não teve jeito; conversa vai, conversa não vai,  o dia chegou e, para sua desgraça, o matuto foi trocado pelo primo do patrão. Largou o rádio, a bicicleta e a ilusão. Eta povo de língua grande!

      O caseiro foi embora, mas antes fez questão de apertar a mão de Seu Lopes e lhe prestar fidelidade para o resto da vida. Tinha suas razões para gostar do homem. Se precisasse, para qualquer coisa, era só chamar. Disse que  procurasse por ele lá em Dores do Turvo, no sítio do Matias. Matias ia dar conta de seu paradeiro. Foi-se o caseiro e chegou o primo. 
O primo era um sujeito maneirado de trejeitos e falatório apressado, mas vagaroso no pensar e no agir. Isto pode ter dado causa à intolerância de Seu Lopes, que já estava muito cansado de falatórios e confusão no sítio. Era uma coisa, era outra e não davam descanso. O homem não tinha mais paz na vida e já começava a sentir a falta do mar. E assim ele despediu o caseiro e acolheu o primo que escondia sua natureza no sorriso ardiloso... 

      Pois não é que o fulano de cidade grande, ruivo e de sardas no corpo inteiro, desarticulado no baixo porte e nos movimentos, desalinhado nos dentes, não se ajeitou na roça? Pois é! Não se ajeitou, nem por insistência, nem por destinação de conforto que o parente ofertou a ele. Pura misericórdia de quem o acolhia, mas o danado do cabra era de vontade curta para trabalhar. Não tinha esforço para enfrentar o chão. Só via rede e viola. O senhor Lopes, com quem o primo nunca teve parecença, deu-se por pai do indivíduo, só para ajeitar a vida do infeliz, por devoção à família e caridade aos parentes mais desvalidos. Deu salário, moradia, conforto de cidade pequena e tranquila e uns por fora pro camarada se distrair... Mas o cara foi arranjar desafeto naquelas cercanias, achando que a vida estava muito sem graça, parada e morna naquelas distâncias de mato alto. A mão do sujeito era lisa feito mão de moça e secava tudo o que ele tocava. Morria o mato, morriam as plantas, esturricavam as flores, definhava a cerca viva. Nem o capim do pasto aguentava. E o danado não se ajeitou de jeito nenhum na roça. Enfiou-se na Igreja, pois muito pouco se dava com as terras e suas exigências de trato. Porque terra demanda cuidados, mãos grossas, apego e devoção e o citadino não tinha uma coisa nem outra. Sofria de indolência e dores no corpo e não tinha a mão benta para acarinhar o solo e as plantas. O engano foi ter ido para a roça com intenção de plantar buchas para negociar em São Paulo. É que o rapaz não tinha nenhuma dedicação ao serviço e nem boa vontade em ser grato ao parente. Depois de mês e pouco rematar que a terra não era jeitosa pra tal espécie de planta, o fulano se desafeiçoou da obrigação, dando graças a Deus e abanando o chapéu de palha. Pois é, enfiou-se na igreja, mas não foi por devoção ou temor a Deus. Muito fervor mesmo foi por preguiça. Preferiu reza e violão na cidade o dia inteiro, deixando a terra do primo Lopes ao abandono, enfraquecendo as ideias do empenho de acordar cedo, regar, cuidar, ajeitar, capinar... Deu-se por satisfeito com a vida de cantador, rezador e andarilho.

      Para Seu Lopes foi grande a decepção de ver o sujeito encostado, tocando viola, bebendo como um gambá e promovendo maledicência com satisfação na cidade, enquanto as plantas secavam e morriam na roça. O jardim da frente do sítio estava acabado. Nem um talo verde brotado no chão. Nem uma flor, nem grama, nem mato, nem capim; não sobrou nada. Nada mais nascia naquele chão. Tudo esturricado. Eta, primo! Pior que tudo era o parentesco que unia os dois na mesma raiz de família. Vai que o povo acha que é tudo farinha do mesmo saco... Para agravar o desmando, bem aleitado na cachaça, o primo deu de querer alisar uma dona respeitosa que nunca conheceu homem. Partiu pra cima das virtudes da moça querendo invadir as intimidades da donzela e profanar sua pureza na reclusão da sacristia. Cometia dois crimes num só desaforo de desrespeito a Deus e aos homens. Era isso mesmo, tudo errado em um desatino. Fato impuro, sórdido e pecaminoso, dobrado no grande atrevimento do forasteiro, que ofendeu Deus, a cidade e todas as mulheres decentes. Evento que não merece tolerância e indecisão da parte de ninguém. Era uma questão urgente de se ajuntar todos os homens do lugar e lhe arrancar fora as partes com bastante vagareza, para ver o cabra pagar e chorar, antes de morrer... E que o padre não ficasse sabendo do justiçamento! O sujeito tinha se atrevido com coisa séria. Só lhe restava escapulir no meio da noite, para não amanhecer morrido de foice ou facão. Era o que o primo de Seu Lopes pensava fazer...

      Por conta de tanta contrariedade no sítio, Seu Lopes, do jeito silencioso que sumiu por quinze dias, também deu remédio na sua desaparição e voltou... Calado, arredio, sem gosto para muita conversa. Não se conformava em saber que um parente seu tinha violado a castidade de Dona Mocinha. Retornou sem qualquer aclaração dos ocorridos nas suas terras, acompanhado de um cachorro que vive guardado na sua mais alta consideração e nas suas confidências... Coisa amorosa de repartir com o cachorro o mesmo prato, a afeição, as conversas, os segredos e o mesmo canto para dormir. No mais, anda mudo e taciturno.


      Dizem que ele mesmo deu solução no assunto, porque não aguentava mais tanta falação e porque nessa vida ele admite quase tudo, menos desrespeito à mulher moça virgem. Ainda mais ofensa de gente do seu sangue e dentro da igreja. Não! Não era farinha do mesmo saco! Não podia se misturar com um sujeito vil, como o primo. Só se sabe que antes de voltar para casa, depois do inexplicável sumiço, Seu Lopes deu um pulinho no Pomba, procurando por Dona Petrina, uma boa rezadeira de desmanchar quebranto e mal agouro; diz que foi lá fechar o corpo. Depois, em Dona Eusébia, cidade vizinha, passou pra comprar umas plantas novas de sua mais nova estima. Tudo mudinha tenra e promissora de muito bom viço, já brotando em botão. Resolveu refazer de uma hora para outra, sem nenhuma explicação, os canteiros do jardim, com novas flores. Levou as plantas, mas não precisou de adubo. E no novo jardim Seu Lopes só plantou flores brancas... Muitas espécies de flores brancas, sua nova predileção. Flores de luz, flores de paz, tão alvas, tão claras e virginais...
O tempo foi passando, passando e o jardim floresceu; de morto passou finalmente ao verde reverberante de lindas flores. Seu Lopes repetia invariavelmente a quem fosse curioso e viesse perguntar pelo viçoso jardim... Bonito, não é? Gabava-se. E dizia de suas crenças nas flores, no que afirmava estar bem certo: melhor planta e cachorro que certo tipo de gente!... Tem sujeito que não  presta nem mesmo para viver; não vale mesmo a comida que come. 

      Estranhamente todas as flores brancas nasciam com uma nódoa vermelha, parecendo uma pequena mancha de sangue. Nenhuma delas era totalmente branca. Mas, isso pouco importava. Seu Lopes dizia que a réstia vermelha até deixava as flores mais bonitas e raras. 
      O caseiro, para espanto e inveja de alguns, também voltou. Seu Lopes afirma que é o único em quem pode confiar de olhos fechados e o mantém dia e noite ao seu lado. A ele compete levar as angélicas para Dona Mocinha enfeitar o altar da Igreja.
      Pois então. Deu-se que o sujeito sumiu!...




Análise a cada Sessão


Ilustração Fonte : Internet



- Enfim, o que traz você aqui?

- Vim mesmo por recomendação médica. Não deixa de ser interessante: ter uma pessoa para conversar, mesmo que se pague por isto. Perdoe o meu comentário. É para descontrair um pouco. A senhora tem com quem conversar?

- Tem razão, é importante ter com quem falar. Mas vamos ao seu caso... O que mais o aflige?

- Eu não sei bem. Eu perco as pessoas.

- Como assim? Como perde as pessoas?

- Não sei bem dizer. Aliás, meu problema sempre foi com as palavras. Sempre achei que as conhecia, que as dominava, que as usava bem e, no entanto, acabei falando sozinho...

- Seu problema é com as palavras? Fala sozinho?

- Não! Meu problema é com as pessoas. Com as palavras eu me saio muito bem. Eu sempre acredito no que as pessoas me dizem. Confio nelas. Talvez eu seja um inocente útil...

- Sente-se mal a esse respeito?

-Talvez!Estou tentando compreender a transitoriedade. A transitoriedade das coisas, das pessoas... Confiava na eternidade dos sentimentos. E na permanência das pessoas.

- E isto o incomoda?

- Muito.

- E o que espera com a sua vinda aqui?

- Sei lá!... Ao menos descarregar esta dor no coração. Parece que vou explodir. Meu peito dói.

- Dor no peito? Tem problema no coração? Tem pressão alta? Toma algum remédio?

- Não se preocupe; não é uma dor física. É uma dor da alma. Uma mágoa, uma nódoa.

- Tem dormido bem?

- Não! À noite é a pior hora da solidão. A cidade silenciosa. As janelas fechadas dos apartamentos... Tudo apagado. Um som ecoando lá longe. Um abismo no tempo, um gato notívago... Também ele se arrasta nos miados que vibram na noite. Tenho pena dos gatos. Ou será pena de mim mesmo? Acho que é autopiedade.

- E toma algum remédio para dormir?

- Atualmente não! Já tomei. Não quero mais. Não quero depender dos medicamentos, mesmo porque eles me fazem dormir na hora errada. Eles me atrapalham quando eu tenho que ficar acordado. Os remédios são uma ilusão, não acha?

- Depende. Cada caso é um caso.

- Sim. Cada caso é um caso. O meu caso é perder as pessoas. Já lhe disse, não é? Sempre perco as pessoas.

- Sim, disse. Mas aonde é que você perde as pessoas?

- Não se trata de um lugar; trata-se de uma condição. A perda das pessoas é uma condição subjetiva. Não sei para onde vão. Sei que elas se perdem, ou melhor, elas vão se soltando.

- E você? Tem ideia de onde está, ou para onde quer ir?

- Estou sempre em casa. A vida é muito complicada. Difícil viver, não acha?

- E como pensava que seria a vida? Que sonho existiu de verdade?

- A princípio não pensava nada. Ia vivendo um dia depois do outro. Não pensava muito sobre a minha existência, até que me dei conta de que nada era tão simples, como era a vida dos bichos e das plantas, que pareciam perfeitamente ajustados ao meu olhar contemplativo... Havia paz no horizonte e na alma. Tudo era muito perfeito.

- E você? O que pensa de si mesmo?

- Já lhe disse, eu perco as pessoas.

- Sim. Você as perde assim que elas se soltam.

- Pois é! Eu não desejo que se soltem, mas elas se vão. Sempre tive muitas coisas para dizer e achava que isto seria o bastante: preencher a vida das pessoas com as histórias, as palavras, as novidades. Tinha sempre muita coisa para dizer e nada, nada passava despercebido nesta vida. A mim não bastava saber, conhecer; precisava compartilhar. As palavras se chegando ao meu ser, dando-me uma aflição. Eu tinha que esvaziar a cabeça, o coração. Eu me inteirava com avidez de tudo o que havia para ser conhecido. Devo confessar que havia muita facilidade em transitar entre os universos. Nada me parecia difícil ou incompreensível. Havia um momento de transbordar. E, para demonstrar a alegria de saber eu precisava das pessoas. Nunca pude existir sozinho.

- Sim, precisava das pessoas.

- É!Pessoas com quem pudesse compartilhar. Pessoas dispostas a ouvir. Com a maturidade percebemos o quanto acumulamos. Eu precisava falar. E, afinal, para que serve tudo o que acumulamos? Acaba se transformando num fardo a nossa história. Eu imaginava que as pessoas pudessem me ouvir, por puro prazer. Mas, ao contrário do que eu imaginava, elas chegavam tão incomunicáveis, a princípio, que eu precisava me desvencilhar de minha necessidade de falar, de minha história... Eu tinha que ouvi-las. Era visceral a minha necessidade de ouvir, de me envolver, de me emocionar. Sempre gostei muito de ouvir, essa é a verdade. Para elas tudo era prisão e sufocante engano. Como poderia saber o que sentiam, o que temiam, o que queriam? Eu tinha que ouvi-las toda vez que me procuravam. Todas elas eram silêncios pesadíssimos que vinham eclodir nos meus ombros. Pareciam máquinas emperradas... Eu começava a copiar os sinais que emitiam, com atenção, carinho, ternura. A cabeça, o coração, os braços, as pernas... Tudo era uma máquina emperrada. Eu era um aparelho a decifrar as suas verdades, os seus medos. Eu decifrava neles o esforço para viver, o esforço para não sofrer e para não morrer. Eu via neles as consequências dos seus atos, os arrependimentos e as renúncias. Muitas renúncias para não pecar e que levavam ao sofrimento. O amor que tomamos, tomamos sem saber... Eu juntava os cacos das pessoas despedaçadas... Eu as ouvia por horas, dias, meses, anos, até que chegava um dia e elas partiam, sem mais nem menos. Quando a máquina finalmente voltava a funcionar, as pessoas voltavam a sorrir, a cantar, a assoviar. Elas se libertavam. Eu as curava. E eu, que havia me afeiçoado a elas, que chegava a amar muito era friamente abandonado. Quando partiam eu ficava novamente sozinho, apenas acompanhado das lembranças delas. Já lhe disse, eu perco as pessoas. Este é o meu problema.

- Seu tempo acabou. Por hoje é tudo. Na próxima semana continuaremos de onde paramos, está certo? Então, não falte. E, por favor, assine o recibo com a secretária lá na recepção. Pode ir. Até quinta-feira.


Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amor Líquido