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segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Por conta da terra a semente



                                     
          Sempre aconteciam coisas com todo mundo e a toda hora, não importava nada que se fizesse: o país e sua política; as pessoas e o quanto tinham comido; o tempo e se chovia, ou que estação do ano era perfeita para se viver melhor. Aconteciam coisas, simplesmente. Com Anna não seria diferente, porque a vida tem seus feitiços, seus contragostos e esquisitices. Só para se tornar tão importante, a vida, depois de apagados os anos na memória ávida, se faria recordar, toda importante, sob um holofote de luz azul. Então ela poderia dizer: sim, se me recordo bem, foi naquele ano...
          Ontem era o dia em que a menina acordava esquisita, prestes a... Não sabia a que. Prestes a ter um treco, um troço... As costelas arriadas para frente só para acomodar os dois pequenos peitos em duas gavetas de ossos. Pura cautela para que não vissem as novidades que se anunciavam aos olhos. Beleza de menina nascendo nas estações das chuvas, para dar um tom de narciso naqueles olhos cinza d’água. Beleza aflorando de duas caixetas de carnes minguadas... Achava estranho aquilo que nascia dando-lhe condição de animal  feminino de espécie mamífera. Fera, como todos os animais desde que notou o motorista apalpando-lhe as tímidas formas nascentes com olhos tendenciosos e perdidos naquela inocência de ainda brincar com os meninos sem os pais se afligirem. Pois era mesmo criança, de querer doces fora de hora e fazer muito barulho e inconveniências ( para ela algazarras tão lindas e leves como embalos das gangorras e para os mais velhos zoeiras desagradáveis). Ia assim se fazendo corpo inteiro em meio às dúvidas da avó e das tias... Mas quando será mesmo que ela vai crescer?
          Anna não sabia quando iria crescer; nem mesmo queria, porque não podia comandar aquilo que acontecia com os ossos das faces, deixando distantes as formas arredondadas para imagens de antigos espelhos estrategicamente pendurados na parede e onde se via de relance, só de vez em quando. Ia adquirindo ângulos. A menina resvalava os olhos um pouco pelos espelhos, para apreciar o que via; outro tanto para lamentar o desgosto que lhe davam os brinquedos e as conversas dos meninos. Tinham ficado bobos, tão infantis que queria era fugir para casa e deixar as brincadeiras de lado. No espelho, de soslaio, porque não queria se ver plenamente, ela pressentia: os amigos se distanciariam aos gritos da mãe já muito aflita com as meninas maiores que não podiam mais sair. Deixava-se por conta do destino dar pelos claríssimos às minúcias mais impensadas e recônditas do corpo; fazia-se numa exatidão de curvas delicadas e alvas, um molejo nas cadeiras, que agora sabiam dançar quando ela andava. Nascia apesar de ela desejar o contrário, uma atrevida escultura na arquitetura até então vazia de ondas, sempre atada ao quadrilátero exato de braços paralelos ao tronco. Irrompia pelos limites das linhas uma demarcação de formas novas e alvoroços, que saíam de dentro da alma outrora tão quieta. Nem se reconhecia mais nas antigas alegrias de amanhecer pensando em seus brinquedos e livros de histórias. Para onde mesmo tinham ido as fadas?...
          A mãe aflita de uns tempos para cá, a saber, onde e com quem estava, guardando os passos de Anna que dizia não querer crescer, mas mesmo assim ia, ia, ia... Ia se fazendo parte por parte. Mas quem podia com a vida? Ela e os seus desatinos de comandar tudo que vai pela frente e fazer da pedra o pó, da fruta a semente, do novo o velho, do alimento o que se expele. Nada, nada como era antes... Era assim mesmo a vida. Anna se encantava com o que via na natureza e dizia que folhas eram cabelos desarranjados de árvores despenteadas. Anna que deixava vazios os galhos da goiabeira, devolvendo aos passarinhos o que suas invenções roubaram. Anna que tirava os pobrezinhos dos ninhos pelo prazer de atiçar as mães, ou colaborar com elas, enfiando-lhes goela abaixo miolos de pão com leite. Agora a árvore, os pássaros, as folhas ressentiam-se das ausências dela, porque a infância ia ficando sem graça. Onde mesmo foi aquela menina?
           Anna engendrou-se enigmática no hábito de deixar as coisas como estavam e como eram. Isso desde o dia em que morreu em suas mãos a andorinha coberta de piolhos que tentava alimentar. Enfiava-lhe, em vão, pão e leite na desproporcional goela entre seus dedos que tendiam a apertar, embora ela desejasse afagar. Salvar e estrangular eram duas disposições simultâneas e incontroláveis que se misturavam no gesto franciscano de recolher os animais aos seus cuidados. Não houve jeito e a ave acabou-se inerte depois de devolver a papa embutida no afã de salvação. Daí em diante sabia que semente era para ser semente, já que era para isto que tinha sido feita. Tudo, enfim, era para o que tinha sido feito, apesar dela. E, apesar dela, dali por diante, o que acontecesse seria por conta da terra, caso se considerasse a semente. Era destino se fazer brotar em vida ou extinguir-se em infertilidade, mas nada que dissesse respeito à menina. Nada mais teria sua ajudazinha; nem mesmo jogar a semente na cova, pois isto era já coisa de Deus e, “se Deus quisesse.” Se Ele quisesse que ela, a semente, brotasse planta. Se não quisesse, aquela semente de laranja iria direto do prato para a sacola de lixo. O caminho dali por diante de encontrar leito ou cova, já não era da sua conta; não era para Anna interferir, a menos que quisesse uma laranjeira plantada no xaxim de samambaia, bem no canto da janela que dá para a rua. Por conta da morte do passarinho, sem sua vontade, tinha perdido por completo as aventuranças de interferir, fazendo coisas que não eram de seu domínio. Não podia, nem mesmo em benefício próprio, continuar menina no mesmo corpo, pois nada mais obedecia a seus desígnios; nem o corpo e nem a alma...
          Com o coração fazia o mesmo. Deixava pra lá... Deixava-o posto dentro do peito, que é seu lugar e onde devia estar. Se quisesse alguma coisa, ela não interferia, não escolhia, não dava palpites... É... Não palpitava o coração... Ele que se aventurasse entre conhecidos e desconhecidos, porque a razão não dava sinais de vida nessas horas. Assim mesmo, nunca aconteceu de ela se apaixonar. Mesmo assim ela esperava ansiosamente por surpresas, pois estranhamente começou a apreciar os meninos.
          Hoje cresceu como tudo cresce nesta vida Crescer foi um salto no tempo de cinquenta anos, recheado de escolas, matemáticas, línguas, piano, namoro, promessas e muitos desencontros. Casou-se, porque a ela cabia seguir a fortuna das moças... Nem escolheu muito, ocupada que estava em ler seus livros de culinária e o de inteligência emocional. Os primeiros para sustentarem o corpo e o segundo para estabilizar a cabeça. Escapava da falta de amor e do acre destino de servir mesa, como bem podia; mas a fatalidade podia mais. Assim, sem que pudesse muito interferir, lá estava ela na bifurcação Rio-Juiz de Fora, de duas cidades da zona da mata mineira, gerenciando os negócios e a vida, sem o encantamento e o prazer de estar na sua sala.
          Anna engendrou-se novamente enigmática no hábito de tentar descobrir o prazer da vida. Com o tempo acostumou-se ao homem calvo, gordo e estrábico que fazia companhia à sua solidão. Com ele pouco ria. Era melhor imaginar que a vida pudesse ser muito diferente. Era melhor deixar tudo correr na BR 101, sem intrometer-se na destinação do que veio para ser comum e pequeno, fosse à ida ou na vinda dos automóveis. É... O horizonte acabava bem ali, entre Juiz de Fora e a estrada cheia de possibilidades. Se ousasse, seria capricho e fuga; retirada estratégica pelo mar... Mar de Espanha!
          Anna tinha perdido por completo as aventuranças de interferir aqui e ali, fazendo coisas que não eram de seu domínio. Que se dedicasse às empadas, aos sorrisos pálidos dos clientes em trânsito. Estaria bom assim, para o marido... Que contivesse seus devaneios e plantasse os pés no bar à beira da estrada. Sim... Enquanto milhares de carros corriam dia e noite diante de seus olhos, melhor ficar com os pés fincados no chão, à espreita do que ia em direção ao Rio de Janeiro. Era preciso deixar-se estar, para sobreviver, quando perdidas as ilusões... Fera, como todos os animais, desde que notou o motorista apalpando-lhe as formas poentes com olhos tendenciosos e perdidos naquela maturidade de amargura. Que fosse assim absurdo. Vivia, morria, mas salvava-se amealhando esparsos galanteios, enquanto servia para o esbelto moço um café colonial. Com certeza ela  teria a lembrança dos sorrisos, ao final do dia para sonhar...
 
          Seria bem mais feliz sim, a bordo de um navio, ou no coração de certo rapaz que a viu com mais ternura que os outros. Oh! Uma viagem a Cancun, ou a Paris... Quantas possibilidades! Não importaria muito o destino. Qualquer lugar poderia salvar sua vida do balcão daquele restaurante à beira da estrada, onde preparava o café uma dezena de vezes! Mas, apesar dela, dali por diante, o que acontecesse seria por conta da terra, caso se considerasse a semente.
          A felicidade poderia salvar a Terra. Salvar-se... Mas, quem pode com o destino daquilo que veio para ser tão pequeno? Pois ela decidiu tomar o primeiro ônibus, rumo à liberdade, considerando que podia ter outro mundo em sua vida.