Sempre aconteciam coisas com todo
mundo e a toda hora, não importava nada que se fizesse: o país e sua política;
as pessoas e o quanto tinham comido; o tempo e se chovia, ou que estação do ano
era perfeita para se viver melhor. Aconteciam coisas, simplesmente. Com Anna não
seria diferente, porque a vida tem seus feitiços, seus contragostos e
esquisitices. Só para se tornar tão importante, a vida, depois de apagados os
anos na memória ávida, se faria recordar, toda importante, sob um holofote de
luz azul. Então ela poderia dizer: sim, se me recordo bem, foi naquele ano...
Ontem era o dia em que a menina
acordava esquisita, prestes a... Não sabia a que. Prestes a ter um treco, um
troço... As costelas arriadas para frente só para acomodar os dois pequenos
peitos em duas gavetas de ossos. Pura cautela para que não vissem as novidades
que se anunciavam aos olhos. Beleza de menina nascendo nas estações das chuvas,
para dar um tom de narciso naqueles olhos cinza d’água. Beleza aflorando de duas
caixetas de carnes minguadas... Achava estranho aquilo que nascia dando-lhe
condição de animal feminino de espécie mamífera. Fera, como todos os
animais desde que notou o motorista apalpando-lhe as tímidas formas nascentes com olhos
tendenciosos e perdidos naquela inocência de ainda brincar com os meninos sem
os pais se afligirem. Pois era mesmo criança, de querer doces fora de hora e
fazer muito barulho e inconveniências ( para ela algazarras tão lindas e leves como
embalos das gangorras e para os mais velhos zoeiras desagradáveis). Ia assim se
fazendo corpo inteiro em meio às dúvidas da avó e das tias... Mas quando será
mesmo que ela vai crescer?
Anna não sabia quando iria crescer;
nem mesmo queria, porque não podia comandar aquilo que acontecia com os ossos
das faces, deixando distantes as formas arredondadas para imagens de antigos espelhos
estrategicamente pendurados na parede e onde se via de relance, só de vez em
quando. Ia adquirindo ângulos. A menina resvalava os olhos um pouco pelos
espelhos, para apreciar o que via; outro tanto para lamentar o desgosto que lhe
davam os brinquedos e as conversas dos meninos. Tinham ficado bobos, tão
infantis que queria era fugir para casa e deixar as brincadeiras de lado. No
espelho, de soslaio, porque não queria se ver plenamente, ela pressentia: os
amigos se distanciariam aos gritos da mãe já muito aflita com as meninas
maiores que não podiam mais sair. Deixava-se por conta do destino dar pelos
claríssimos às minúcias mais impensadas e recônditas do corpo; fazia-se numa
exatidão de curvas delicadas e alvas, um molejo nas cadeiras, que agora sabiam
dançar quando ela andava. Nascia apesar de ela desejar o contrário, uma
atrevida escultura na arquitetura até então vazia de ondas, sempre atada ao
quadrilátero exato de braços paralelos ao tronco. Irrompia pelos limites das
linhas uma demarcação de formas novas e alvoroços, que saíam de dentro da alma
outrora tão quieta. Nem se reconhecia mais nas antigas alegrias de amanhecer
pensando em seus brinquedos e livros de histórias. Para onde mesmo tinham ido
as fadas?...
A mãe aflita de uns tempos para cá, a
saber, onde e com quem estava, guardando os passos de Anna que dizia não querer
crescer, mas mesmo assim ia, ia, ia... Ia se fazendo parte por parte. Mas quem
podia com a vida? Ela e os seus desatinos de comandar tudo que vai pela frente
e fazer da pedra o pó, da fruta a semente, do novo o velho, do alimento o que
se expele. Nada, nada como era antes... Era assim mesmo a vida. Anna se
encantava com o que via na natureza e dizia que folhas eram cabelos desarranjados de
árvores despenteadas. Anna que deixava vazios os galhos da goiabeira,
devolvendo aos passarinhos o que suas invenções roubaram. Anna que tirava os
pobrezinhos dos ninhos pelo prazer de atiçar as mães, ou colaborar com elas,
enfiando-lhes goela abaixo miolos de pão com leite. Agora a árvore, os
pássaros, as folhas ressentiam-se das ausências dela, porque a infância ia
ficando sem graça. Onde mesmo foi aquela menina?
Anna engendrou-se enigmática no hábito de deixar as coisas como estavam
e como eram. Isso desde o dia em que morreu em suas mãos a andorinha coberta de
piolhos que tentava alimentar. Enfiava-lhe, em vão, pão e leite na
desproporcional goela entre seus dedos que tendiam a apertar, embora ela
desejasse afagar. Salvar e estrangular eram duas disposições simultâneas e incontroláveis
que se misturavam no gesto franciscano de recolher os animais aos seus
cuidados. Não houve jeito e a ave acabou-se inerte depois de devolver a papa
embutida no afã de salvação. Daí em diante sabia que semente era para ser
semente, já que era para isto que tinha sido feita. Tudo, enfim, era para o que
tinha sido feito, apesar dela. E, apesar dela, dali por diante, o que
acontecesse seria por conta da terra, caso se considerasse a semente. Era
destino se fazer brotar em vida ou extinguir-se em infertilidade, mas nada que
dissesse respeito à menina. Nada mais teria sua ajudazinha; nem mesmo jogar a
semente na cova, pois isto era já coisa de Deus e, “se Deus quisesse.” Se Ele
quisesse que ela, a semente, brotasse planta. Se não quisesse, aquela semente
de laranja iria direto do prato para a sacola de lixo. O caminho dali por
diante de encontrar leito ou cova, já não era da sua conta; não era para Anna
interferir, a menos que quisesse uma laranjeira plantada no xaxim de samambaia,
bem no canto da janela que dá para a rua. Por conta da morte do passarinho, sem
sua vontade, tinha perdido por completo as aventuranças de interferir, fazendo
coisas que não eram de seu domínio. Não podia, nem mesmo em benefício próprio,
continuar menina no mesmo corpo, pois nada mais obedecia a seus desígnios; nem
o corpo e nem a alma...
Com o coração fazia o mesmo. Deixava
pra lá... Deixava-o posto dentro do peito, que é seu lugar e onde devia estar.
Se quisesse alguma coisa, ela não interferia, não escolhia, não dava
palpites... É... Não palpitava o coração... Ele que se aventurasse entre
conhecidos e desconhecidos, porque a razão não dava sinais de vida nessas
horas. Assim mesmo, nunca aconteceu de ela se apaixonar. Mesmo assim ela
esperava ansiosamente por surpresas, pois estranhamente começou a apreciar os
meninos.
Hoje cresceu como tudo cresce nesta
vida Crescer foi um salto no tempo de cinquenta anos, recheado de escolas,
matemáticas, línguas, piano, namoro, promessas e muitos desencontros. Casou-se,
porque a ela cabia seguir a fortuna das moças... Nem escolheu muito, ocupada
que estava em ler seus livros de culinária e o de inteligência emocional. Os
primeiros para sustentarem o corpo e o segundo para estabilizar a cabeça.
Escapava da falta de amor e do acre destino de servir mesa, como bem podia; mas
a fatalidade podia mais. Assim, sem que pudesse muito interferir, lá estava ela
na bifurcação Rio-Juiz de Fora, de duas cidades da zona da mata mineira, gerenciando os negócios
e a vida, sem o encantamento e o prazer de estar na sua sala.
Anna engendrou-se novamente
enigmática no hábito de tentar descobrir o prazer da vida. Com o tempo
acostumou-se ao homem calvo, gordo e estrábico que fazia companhia à sua
solidão. Com ele pouco ria. Era melhor imaginar que a vida pudesse ser muito
diferente. Era melhor deixar tudo correr na BR 101, sem intrometer-se na
destinação do que veio para ser comum e pequeno, fosse à ida ou na vinda dos
automóveis. É... O horizonte acabava bem ali, entre Juiz de Fora e a estrada
cheia de possibilidades. Se ousasse, seria capricho e fuga; retirada
estratégica pelo mar... Mar de Espanha!
Anna tinha perdido por completo as
aventuranças de interferir aqui e ali, fazendo coisas que não eram de seu
domínio. Que se dedicasse às empadas, aos sorrisos pálidos dos clientes em
trânsito. Estaria bom assim, para o marido... Que contivesse seus devaneios e
plantasse os pés no bar à beira da estrada. Sim... Enquanto milhares de carros
corriam dia e noite diante de seus olhos, melhor ficar com os pés fincados no
chão, à espreita do que ia em direção ao Rio de Janeiro. Era preciso deixar-se
estar, para sobreviver, quando perdidas as ilusões... Fera, como todos os
animais, desde que notou o motorista apalpando-lhe as formas poentes com olhos
tendenciosos e perdidos naquela maturidade de amargura. Que fosse assim
absurdo. Vivia, morria, mas salvava-se amealhando esparsos galanteios, enquanto
servia para o esbelto moço um café colonial. Com certeza ela teria a
lembrança dos sorrisos, ao final do dia para sonhar...
Seria bem mais feliz sim, a bordo de um navio, ou no coração de certo rapaz que a viu com mais ternura que os outros. Oh! Uma viagem a Cancun, ou a Paris... Quantas possibilidades! Não importaria muito o destino. Qualquer lugar poderia salvar sua vida do balcão daquele restaurante à beira da estrada, onde preparava o café uma dezena de vezes! Mas, apesar dela, dali por diante, o que acontecesse seria por conta da terra, caso se considerasse a semente.
A felicidade poderia salvar a Terra. Salvar-se...
Mas, quem pode com o destino daquilo que veio para ser tão pequeno? Pois ela
decidiu tomar o primeiro ônibus, rumo à liberdade, considerando que podia ter
outro mundo em sua vida.