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sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Viajando para Angústias (botas e dentaduras)


Já lhes contei de meu percurso via aérea e marítima, passeando por Parvopolis, Cretineia, Cretínia e Balburdia. Hoje vou para um vilarejo bem próximo de Balbúrdia, nos confins de Canálias e Temerárias, lugares já descritos por mim em outra narrativa. Uma falta de logística nesses países me faz ir e vir, incessantemente, viajando em círculo, graças aos improvisos das companhias aéreas. Quando não há uma rota definida, desviam um avião de seu destino e logo arranjam um “quebra galho”. Sei que é perigoso, mas é o que há disponível na região. Creio que esse vórtice desgovernado tem o objetivo de deixar o povo tonto e sem senso de direção. Povo tonto é mais fácil de governar. Nunca sabe para onde vai.
Apesar de meus receios, a viagem me surpreende; é suave, o clima é agradável e os nativos são acolhedores. Uma coisa os une no mesmo espírito de urbanidade: todos são muito pobres e ainda usam do escambo como dinâmica econômica. Uns produzem cestos, balaios e os trocam por banana, abacaxi ou outra fruta do lugar. Todos se unem também na insatisfação com os governantes que formam uma grande família, cujos membros se alternam no poder. Morre o pai e elege-se o filho. Os “fiotes” dos governantes não se preocupam muito com a vida, pois contam com a ingenuidade do povo, que lhes garante existência pública fundamentada no DNA. Atualmente os moradores do lugar são visitados por pessoas estranhas, que jamais souberam da existência deles. É a corrida ao ouro, ou melhor dizendo, é a corrida eleitoral.
Angústias é aprazível e acolhedora e está em polvorosa. Escolhe-se um novo líder em meio ao caos dos mais recentes acontecimentos. O que não falta é gente para se oferecer de corpo e alma, para resolver os problemas da população esquecida. É como se estivessem falando em nome de Deus; são arautos angelicais distribuindo “santinhos”, porque fórmulas milagreiras proliferam e o eleitor é o grande alvo. O objeto de desejo – o voto – que até então era trocado em Angústias, por um par de óculos, botinas, ou uma singela e sorridente dentadura, teve seu valor disparado no mercado. Ninguém mais quer a dentadura, o que tem bastante lógica. A dentadura, depois das eleições, nunca mais sorri, pois não lhes cabe na boca e o povo continua desdentado. Se cabe bem rente, a ponto mesmo de machucar, algumas vezes a dentadura tem o efeito de mordaça e torna o presenteado um conivente. Recebe o presente e fica calado para sempre. E, calado, consente! Quando a dentadura se ajusta na boca, não tem serventia, pois falta ao povo o que mastigar.
Acreditem, Angústias pode mudar de nome depois das eleições e dependendo do resultado, isso já é esperado. Uns sugerem Catástrofe, outros mantêm a esperança e desejam que seja Colossus. Vai depender da maioria. O voto, essencial para a grande mudança, vale muito mais do que o tapinha nas costas, dado pelo candidato com nojo de gente, espanando a caspa dos ombros do homem vergado pelo peso da existência; vale muito mais do que o sorriso platinado em prótese, o elogio fácil e a elevação do homem comum ao status de cidadão em dias de campanha. Considerem isso.
Parece-me que os moradores locais de Angústias chegaram ao limite e descobriram que o voto vale o peso de cada um em ouro. Vale quanto pesa! Sim, se você está com setenta e dois quilos, em Angústias, isso equivale a setenta e dois quilos de ouro e não mais um pé de uma botina. Sim, pois o eleitor até então, valia um só pé de bota, tanto quanto valia a perna única do Saci Pererê. E, como Saci Pererê é uma ficção, considero que o homem comum é visto assim – não existe na realidade. E, lembrando sempre que o par de botas só era formado se o “padrinho” ganhasse a eleição. O povo continuava a andar com um pé descalço em terreno árido e sem direção certa. Claro, sem resolver o seu problema, criava outro muito maior, porque com um só pé da bota, passava a mancar e ficava coxo. E assim tem sido! Andando, capengando, se arrastando e caindo... E correndo o sério risco de nunca mais se levantar.
Autora: Valéria Áureo -
In: Docilidade de Sobreviventes

Intimidade


Havia invejável intimidade entre minha mãe e Deus. Ao longo da vida ocorreu essa comunhão, que foi se solidificando cada vez mais. Por mais que parecesse fraca e oprimida, Deus a considerava forte e especial e assim a tratava, como filha amada. Da mesma forma ela devotava a Ele amor imensurável. Ambos eram fiéis. Conversavam todos os dias. Mesmo quando ela se perdia em lágrimas, havia o diálogo silencioso que só as almas sagradas decifram. Talvez as lágrimas fossem rios navegáveis que a levavam ao Pai. Ela conhecia o caminho e com Ele chegou ao seu destino, sem nunca ter perdido a direção.
Antes de partir minha mãe decodificou o enigma da oração para seus filhos.

Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes