Apresentação

Total de visualizações de página

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Vovô é trans...











Há tempos tenho notado que vovô não está bem. Tem-se perdido nas palavras e nas ideias, o que me deixa muito preocupado. Ele começa a falar, mas não completa a palavra, como se não houvesse sentido concluir o que diz. Em razão desse sintoma estranho, que sempre nos deixa sem entender o que ele fala, marcamos uma consulta com seu geriatra. Preservando os últimos ensaios de autonomia, ele insistiu em ir sozinho ao consultório. Para nosso sofrimento, el...e voltou triste e intimidado do médico. Voltou com menos palavras ainda.
Eu insisti: - Vovô, o que o senhor tem? O que o médico disse? Alguma coisa séria?
- Bota sério nisso. Ele disse que eu sou trans! O que é que os meus amigos vão pensar de mim? Na minha idade virei trans. Eu sou trans! Foi isso o que ele disse, na minha cara.
Eu dei um pulo do sofá, percebendo que realmente meu avô não estava bem. Como assim, vovô? O senhor é trans?! Que maluquice é essa agora?
- Foi exatamente isso o que o médico disse. Eu sou trans! Estou acabado!
Eu o deixei na sala, cabisbaixo e envergonhado. Fui ao quarto de vovó e falei do resultado da consulta. Ela perdeu o ar e emendou assim que pode falar novamente. Que conversa é essa, agora? Como é que o seu avô pode ser trans?
Eu ainda me arrisquei, perguntando: - a senhora nunca o viu usando uma roupa sua, pegando um batom, uma calcinha, um brinco, um sapato alto, se depilando?...
- Deixa de safadeza, menino! Seu avô sempre foi um ogro, barbado, peludo dos pés à cabeça; se fosse trans eu seria a primeira a saber... Que caduquice é essa? Eu estou dizendo; ele não está nada bem!
Vovô ficou revoltado com o médico, dizendo que ele era uma besta, que não sabia de nada, que tinha comprado o diploma. Trans, veja só! Ele disse que eu sou trans! E nada mais o acalmava. E eu, intimamente a observar cada detalhe do corpo e dos gestos de meu avô, tentando identificar algum sinal estranho. Naquela idade?
Diante dessa consulta desastrosa, decidi acompanhá-lo ao geriatra, para que esclarecesse o diagnóstico.
- Como está, seu Agenor? Qual o motivo de sua volta? Não marcamos consulta só para daqui a três meses? Está tomando o Diazepam que eu lhe receitei? Já sentiu melhoras? Vai dormir bem melhor. Vovô prontamente respondeu: eu vim aqui para deixar de ser trans.
- Como assim, deixar de ser trans? Que novidade é essa agora?
- O senhor é quem disse que eu sou trans.
- Mas de onde tirou isso? O senhor nunca foi trans... Eu disse que o senhor anda transtornado. Transtornado, seu Agenor! Trans-tor-na-do!


Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes

sábado, 28 de outubro de 2017

Novos Matusaléns em Balbúrdia


 



 

Finalmente pude conhecer a tão propagada Balbúrdia, o que eu já tinha tentado algumas vezes. Houve um arrefecimento nas crises internas e o país abriu as portas ao turismo novamente. O governo precisava arrecadar mais tributos, com os visitantes ocupando a sua rede hoteleira, que até então tinha sofrido um grande desgaste. Estrangeiros insistiam em conhecer as ruelas, que mesmo em guerra estavam acessíveis aos turistas. O risco de uma bala perdida fazia parte do pacote de emoções oferecido pela agência de turismo. Estrangeiros vinham em busca de vertigens e adrenalina, alinhavadas com teses de estudos antropológicos. Também vinham em busca de artesanato em gesso e mármore só encontrado no local.

Devo dizer que o país, de certa forma me encantou, pois tinha se tornado referência mundial, com a ajuda do prêmio Nobel de Medicina, de origem em Balbúrdia. Havia festejos e muita esperança, afinal Balbúrdia tinha conquistado para o seu povo, mediante muita pesquisa científica e medicina de ponta, um título Nobel e a tão perseguida “ longevidade humana”, que agora atingia a faixa etária de no mínimo 140 anos. Balbúrdia era um expoente, recentemente notável em todo o mundo. Jovens que tanto temiam envelhecer comemoravam efusivamente. Idosos, agora com muitos anos pela frente, não deixavam um só instante de celebrar o futuro pleno de saúde. E assim, diante de tantas conquistas, não se incomodaram em contribuir com as reformas que estavam por vir. Por conta de muitos anos maravilhosos em uma pátria tão hospitaleira e cuidadosa com a sua população, o governo propôs uma reforma na Previdência social chamada Requiescat in pace;  tudo com o objetivo primordial de prolongar as benesses que o governo já oferecia aos seus contribuintes, desde o nascimento de um balburdiense, até a sua aposentadoria gloriosa, a partir do centenário do contribuinte.

Balbúrdia rompeu a barreira dos 60/70 anos de vida do homem; mais que dobrou a expectativa de vida do balburdiense, garantindo-lhe o melhor para a tão almejada aposentadoria. Há muito tempo os cientistas e alquimistas de Balbúrdia dedicavam suas vidas à busca da poção da juventude eterna. E, em meio às atribulações que uma crise econômica e moral provocam, o cenário se descortina agora, para notícias promissoras. Agora não se trata mais de mitologia grega, em que se creditava a certos alimentos uma relação estreita com a juventude, tal como ocorreu com a ambrosia – o manjar dos deuses no Olimpo; alimento tão poderoso que conferia a um mortal que o comesse, a imortalidade. Nem se trata de mitologia nórdica, onde as maçãs, colhidas pela guardiã Iduna, podiam dar aos deuses (então mortais), a vida eterna. Nem se trata do ouro dos alquimistas chineses e o elixir da longa vida. A solução para o dilema da morte está em Balbúrdia. Pelo menos, é o que anunciam as autoridades, garantindo vida longa ao povo. Não se sabe ainda se na água, no ar, nos alimentos, ou nos remédios oferecidos pela rede pública. O certo é que os governantes de Balbúrdia mantém o segredo a sete chaves.

Então, vamos lá, rumo aos cento e quarenta anos! Tudo sob o patrocínio da Previdência Social, pacote Requiescat in pace*.

*Do latim - Descanse em paz.

Divindade Ladrax e cântaros




 

Estão perguntando se tenho endereço fixo, uma vez que tanto viajo. Moro em Pasárgada, na Pérsia; (A Persia, correspondente, hoje, à moderna província iraniana de Fars). É meu endereço oficial, para citações e intimações judiciais, pois sempre sou processado.  E, por incrível que pareça, aqui no Irã eu tenho paz, onde posso escrever tranquilamente e conviver com os amigos. Fui por muito tempo vizinha de Manuel Bandeira. Depois nos distanciamos, pois ele era amigo do rei, tinha muitas mulheres e vivia um mundo à parte. Só pensava em ginástica, andar de bicicleta, montar burro brabo, subir pau de sebo, tomar banho de mar e deitar na beira do rio.  Sou mais reservada e quieta.

Passarei algumas semanas em casa, onde a calma impera e depois irei às Ilhas Canálias e Ilhas Temerárias. Fiquei sabendo por correspondentes internacionais que as Ilhas Temerárias e Ilhas Canálias são lugares notáveis e de piada pronta ( não confundam com as Ilhas Canárias - As Ilhas Canárias são um arquipélago espanhol no Oceano Atlântico, ao largo de Marrocos, constituindo uma Região Autônoma da Espanha. Aqui eu nem entrarei no mérito da vizinha região da Catalunha, onde o tempo ferve e o povo domina as ruas.

Eu, que adoro histórias engraçadas, vou gostar muito de Canálias e Temerárias, ao leste de Cretínia e Cretineia. As ilhas praticamente pertencem a duas famílias que formam dois grupos com concessões portuárias e tornaram a região um paraíso fiscal. Um grupo importa couro do curtume mais famoso do mundo, o de Fès, de Marrocos, também chamado de tannerie. O couro marroquino é feito com peles de cabra, de  vaca ou de ovelha, tingidas do lado do pelo, com um formato irregular e granulado, de toque agradável e altamente resistente. Malas resistentes, maleáveis e leves e muito utilizadas no transporte de valores, o que se tornou uma prática muito comum entre os homens do governo.  Malas à primeira vista frágeis, mas que suportam pesos incalculáveis, o que tem sido o diferencial de outras marcas. O mais interessante é que o comércio de importação de malas cresceu assustadoramente, o que, aliás, beneficiou a família Gerder. Em contrapartida a família Temel fundou uma fábrica de tornozeleiras personalizadas: Lar & Cela, hoje de fama internacional devido a demandas originárias de Banânia, Parvópolis e Cretineia. O negócio prosperou e superou as expectativas. Enfim, são dois empreendimentos muito prósperos e os donos das fábricas decidiram por formação de holding familiar. Isto se deu por causa de um problema fiscal, em que o presidente da Fábrica Temel foi acusado de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. O julgamento do dono foi bem estranho e ocupou o noticiário de muitos países. Foi constituído um tribunal de exceção para julgá-lo, o que é bem compreensível nessas duas ilhas longínquas. Os constituintes do tribunal de exceção eram também sócios das duas empresas: Lar & Cela e Gatex Malas.  Eles também estavam envolvidos em pendências judiciais; apesar de notório estranhamento do povo, nada os impediu de julgar. Temel foi absolvido e continua na presidência da Gatex Malas. Não restou outra solução, senão decidir pela constituição do Holding Familiar, uma solução para os empreendedores que pretendem prolongar a existência de suas atividades comerciais com resguardo patrimonial, planejamento tributário e sucessório, evitando conflitos entre familiares e concentrando todas as forças para o crescimento e profissionalização do grupo. O mesmo se deu na Lar & Cela, que também se constituiu em holding familiar.

Canalias é um arquipélago de 171 ilhotas, que fica mais adiante, próximo à região dos mares Boba e Tremebundo. É quase uma aldeia com tendas típicas, onde se vendem flechas, bombas e cântaros. Canalias é cheia de turistas que ficam nas praias a espera das gaivotas atraídas pelos pescados; a pesca é uma grande riqueza para os nativos.  O povo é humilde e mantém casas esparsas no arquipélago, construídas com barro e bambu. Os habitantes são muito fervorosos e creem nos poderes de uma anciã adivinha, que funciona como a porta-voz da divindade Ladrax.  Eles confiam cegamente nas previsões da anciã e a ela recorrem cada vez que há conflitos entre as ilhas e questões pessoais. As mulheres a visitam para pedir ajuda para encontrarem maridos e fortuna.  Os homens buscam respostas para os negócios e as carreiras políticas. Eles levam os cântaros onde são recolhidas as águas do riacho Propinuz, para seus banhos no altar do Planalto central do arquipélago. Há filas enormes em Canalias para a visita à anciã; muitos pretendem ter respostas para 2018. Eu entendi porque se vendem tantos cântaros em Canálias, uma vez que são muito utilizados nos cerimoniais do Planalto, em presença da anciã profetisa, mas ainda não pude compreender por que vendem flechas e bombas. Será que são oferendas à divindade Ladrax?




 

sábado, 14 de outubro de 2017

Cretineia





Saí de Parvopolis (Parvópolis) ao entardecer e fui para Banânia, com escala em Balbúrdia. No aeroporto alguns parvopolenses (parvopolitanos) ainda fizeram selfie comigo. Saí de lá com fama de artista genial, depois de meu vômito no mármore branco do museu. Nem desci do avião na escala em Balbúrdia, pois o clima estava bem desfavorável e chovia!
A viagem foi de pequena duração e pude apreciar o voo sobre o oceano. Viagens longas me aborrecem e essa estava perfeita. Parvopolis, onde se fala o parvopolês, tem ótima relação comercial com Banânia; os dois países se complementam economicamente. Banânia exporta fumo, biquínis e instrumentos musicais, além de banana, é claro. Parvopolis, por sua vez exporta cultura, como lhes disse. São grandes produtores de arte, no estilo vangard escatologique e vangard déchets. Tal arte lhes tem dado fama internacional, mas não dinheiro. Por isso sobrevivem com exposições itinerantes pelo continente.
Passei poucas horas em Banânia, cujo idioma oficial é o bananês, pois havia uma crise política no país. Uma investigação tinha descoberto políticos honrados, incorruptos, no senado e na câmara, o que levou o governo a um constrangimento internacional jamais experimentado, além de descrédito dos bananienses. Trataram logo de deportá-los para a Île Honestus onde cumprirão pena. Diante dos protestos do populacho clamando por guilhotina para os políticos honrados, eu decidi partir para Cretineia, outro país bastante curioso.
Em Cretineia, onde se fala o cretinês, o que mais me impressionou foi a educação; os pais entregam os filhos para o governo assim que desmamam; cabe ao governo central de "La Maison de Mère Joanne" educá-los e os inserir na sociedade, bem como lhes definir o sexo, uma vez que é proibido aos pais divulgarem se tiveram menina ou menino. Só recebem o registro de definição do sexo ao completarem seis anos, quando eles mesmos optam a que “gênero” querem pertencer. Assim que atingem a maioridade estão aptos a voltar para casa dos pais. Os educadores de "La Maison de Mère Joanne" usam a medicina de chás, infusões e inalações, o que torna os jovens mais dóceis e maleáveis e o processo educativo é mais eficiente. Tais medidas arrancam-lhes quaisquer tentativas de subverter a ordem. Assim são facilmente educados em conformidade com os preceitos da Pedagogia do governo Herr Fresh. Cretineia era uma democracia até pouco tempo. E como democracia o presidente e pedagogo Herr Fresh propôs plebiscito para que o povo decidisse sobre manter ou não o policiamento de qualquer natureza, bem como as forças armadas. Todos foram votar depois de dose extra de inalações medicinais distribuídas pelo estado. A grande maioria decidiu pelo fim do policiamento, pelo fim do Ministério de Defesa, pelo fim do Exército, Marinha e Aeronáutica. Assim se instaurou um novo ordenamento nas cidades. Isso desencadeou no caos. E, para conter o caos, o presidente Herr Fresh instaurou a ditadura.
Bom, vou continuar minha viagem, pois há muitos países a conhecer.
Autora: Valéria Áureo

sábado, 7 de outubro de 2017

Viagem a Parvopolis




 

          Cheguei a Parvopolis depois de treze horas de voo. Tomei café no avião. Cheguei ao hotel e fui dormir, pois ainda era de madrugada. Acordei às duas horas da tarde. Tomei meu banho e fui dar uma volta pelas redondezas. Cidade calorenta! Entrei em um restaurante de comida típica local; muito tempero, pimenta e excesso de gordura. Deixei um pouco de comida no prato e fui conhecer o tão famoso Museu.

          Entrei. O Museu era enorme. Havia artistas fazendo performances. No primeiro plano uma jovem se apresentava com uma lata de molho de tomate e um abridor. Ela tentava abrir a lata e demonstrava total inabilidade para fazer isso - abrir uma lata. Os minutos passavam e ela se atrapalhava sem conseguir; finalmente abriu a lata e todos os parvopolenses aplaudiram efusivamente. Eu ainda pensei: se ao menos ela tivesse simulado um suicídio e jogasse o molho vermelho sobre o próprio corpo, teria um enredo. Mas, enfim, fui para o outro lado da sala. Um modelo nu esfregava a imagem de Nossa Senhora na genitália. Todos em torno reagiam: os parvopolenses aplaudiram e os estrangeiros ficaram atônitos. Ele continuou a apresentação; pegou um ralador tão grande que pudesse encobrir a genitália desnuda e se pôs a ralar a imagem da Virgem Maria. Parvopolenses em suas parvoíces aplaudiram, assoviaram, gritaram eufóricos. Os estrangeiros se mantinham calados. Em outro ponto do museu um homem representava Cristo e palitava os dentes com um espinho arrancado da coroa. Outro performático distribuía hóstias escritas com os nomes dos órgãos sexuais e outras bizarrices. Os parvopolenses aplaudiam. Um macaco foi colocado no colo da Virgem Maria, substituindo o Menino Jesus; o Cristo foi mimetizado com uma divindade hindu com muitos braços. Em cada mão um apetrecho. Outra artista em cócoras retirava o crucifixo das entranhas. Os parvopolenses comemoravam. Um grupo fazia pinturas escatológicas em um grande mural; usavam chocolate como fezes e lambiam os dedos com gestos tribais. Os parvopolenses aplaudiram estrondosamente. Eu nauseada vomitei no piso branco de mármore. A comida e a arte de Parvopolis me fez muito mal. Eu vomitei no chão e os parvopolenses me aplaudiram de pé e gritaram viva, viva, viva! Eles tiraram muitas selfies comigo e disseram que eu era uma artista fantástica.

País muito estranho Parvopolis! E mais estranhos ainda são os parvopolenses!

 

Autora: Valéria Áureo