- Menina, diz a mãe, vá brincar!... Vai ficar com as
pernas atrofiadas, tanto tempo no computador... Vive trancada nesse quarto,
parece um caracol.
Imagina!... Eu me olhava no espelho, na tela
refletida do monitor e não via nada diferente das outras meninas... Via dentro
das águas dos olhos vertigens o que a boca não descrevia; a mim, à imagem e
semelhança de Deus, a quem nunca vi, de fato, só mesmo manifestado na arte...
Uma imagem vale mil palavras; uma palavra descreve uma imagem ou mil e uma em
tantas noites, mesmo que depois eu fique em silêncio, calada para o resto da
vida...
O pai resmunga: - Deixa a menina!...
- Agora não, mãe!... Agora não! A menina selvagem, já ia bem longe dali, sempre lendo,
acompanhada de pássaros, de uma tinta de magnólia escorrida nas faces,
carregando punhados de renda... Fugiu para encontrar-se com Henriqueta em Lisboa.
A mãe, agoniada e tão inocente, achando que ela estava trancafiada em casa. Não
compreende que agora ela navega, viaja com Gulliver. Também como ele a menina quis levantar-se, mas tem os
cabelos presos ao chão e os braços e pernas imobilizados por uma porção de
amarras. Está presa na rede...
Sobre o corpo uma multidão de homenzinhos dança, pula, se precipita. Está certo
que passava muito tempo trancada e a mãe não gostava. Que absurdo, presa,
trancada, reclamava sempre agoniada... A verdade é que Lya Luft nO Quarto Fechado...
Minha mãe acha que não faço mais
nada... Não leio, não escrevo, só fico no computador, navegando. O importante
em navegar é não naufragar em informações efêmeras. Pois aprendi que para
ser Pessoa "Navegar é preciso, viver não é
preciso", mas sei bem o que quero aprender...
Como pode imaginar que não leio mais? A verdade é que eu estou até o pescoço
com Papéis
Avulsos e Páginas Recolhidas que Machado me emprestou. Como dizer que não escrevo? Se “o que me atrapalha a
vida é escrever”. Mas
agora é, e para sempre, a minhA Hora da Estrela, porque também quero viver...E quando preciso, bem faço eu que
repouso Perto
do Coração Selvagem, onde
encontro música, tecido de sons que a alma de Clarice suportava, metonímia de todas as
linguagens humanas, ritmos de todos os sons... Pois danço, canto, faço música e
sonho...
Fujo para me esconder de minha mãe na
mata Matisse de todas as cores. Ele está ali
há um bom tempo e pede para eu não atrapalhar; ilustra e me faz um ramalhete
de Fleurs
du mal de Baudelaire e lembra-me que é tarde e preciso me arrumar para sair.
Disse Picasso que Matisse tinha um "sol na
barriga", cujas cenas brilhavam com a luz radiante do Mediterrâneo. Achei
muito engraçado; já tinha ouvido falar em rei na barriga; já minha mãe diz que
não tenho nada na cabeça e nem na barriga, porque não me lembro nem de
comer.... Eu olho escondida atrás da porta, para que ela não me veja vestida
com a Blusa Romena; seria um escândalo. Ela me diz que
não tenho idade nem para usar batom... Miró- me no espelho assim mesmo, vaidosa e tão sozinha como o Cão latindo para a lua. Oh!... Esqueci-me por completo d'A lição de piano. Amanhã à noite no Claire de Lune eu me dedico mais e me debruço
nos braços de Debussy
Windows aberto para os olhos nunca me
deixam parar de ler ou escrever! Minha mãe reclama que vivo trancada no meu
quarto, não solto um pio sequer... Não percebe que estou a compartilhar dos
gorjeios e não sinto fome... Já voo com a matinal Ave, Palavra! Pássaro libertado de Guimarães Rosa e todas as outras flores; Florbela Espanca-me... Com doçura, palavra por palavra
e imagem. Estas todas que se encontram, se fundam, confundem, explicam,
complicam, celebram interação perfeita, varando as veredas da linguagem e
alcançando novo universo, terceira margem do rio na varanda. Terceira dimensão,
flash, poeta e kodak do "retrato-relâmpago" no porta-retrato estático, feito de luz sobre o móvel.
Imóvel, diante do computador, faço a imagem dançar com palavras sob o encanto
do cursor imaginário em busca do universo paralelo... Depois, quando tiver
fome, posso muito bem comer Maçãs e Biscoitos de Cézanne.
Imagina!... Presa eu?... Se com Pedro Nava navego à Beira Mar com o coração juiz-forano em
seu Balão
Cativo, enquanto ele
ilustra Macunaíma de Mário só para me encantar. Imagina!.. Como posso estar só
no meu quarto, se o Galo-das-Trevas canta e eu aprecio?!...
Já é quase manhã, eu ainda nem dormi...
E minha mãe achando que estou perdendo a infância, sem saber brincar... Faço
brinquedos de palavras e cores, enquanto Bandeira tremula nas telas de Volpi. Vou pisando em chão de estrelas, Estrela
da Vida Inteira, hasteada
no céu, só para recuperar o tempo perdido de Proust, tempo perdido diante do computador, diz minha mãe. Mal
sabe ela que Proust me empresta todo o tempo diante das velas de regata, porque
os vestidos das moças não atrapalham, aos olhos de um pintor impressionista, o
espetáculo do mar eterno. A imagem é uma caixa fechada que Edgar Allan Poe põe na minha mão e eu gosto de
abrir... Não, melhor, talvez a imagem seja um papel, um bilhete, uma carta,
um Manuscrito
encontrado em uma garrafa nos
tantos mares que navego, enquanto eu cresço. Eu queria dizer para minha mãe que
eu saio mesmo é para brincar nos quintais de Quintana, n'A Rua dos Cata-ventos, onde ando calmamente com meu Sapato Florido, só pisando nuvens, porque sou
também O
Aprendiz de Feiticeiro e
tenho atrás de mim, ao meu encalço O Batalhão de Letras.
Se eu me cansar de escrever, porque
ainda aprendo como uma menina treinando em caderno de caligrafia, descanso um
pouco recostada na Pedra do Sono que João Cabral erigiu com projeto d'O Engenheiro. Muito mais cansado estava ele de ver
a Morte
e Vida Severina terracota dor, que todos os dias eu
vejo na caixa televisiva; eu introspectiva, e a vida internética, explosiva, me
fazendo sofrer. Morro do que há no mundo, disse-me Cecília e
a circunferência fica, em redor, fechada...
Minha mãe diz que tenho que sair para
brincar, exercitar as pernas. Já expliquei que não estou trancada no quadro na
parede, na tela de plasma... Se Sangue e areia é o nome de mais uma novela que se espalha na minha sala,
no meu quarto e no Iraque, eu fujo porque não suporto o sofrimento da
humanidade. Não se espante... Melhor que eu Solte os Cachorros no Prado de Adélia, porque lá poderei recolher Cacos para um vitral. É isto, meninas como eu passam
o Verão
no Aquário ou n'A estrutura da bolha de
sabão, procurando peixes e
caçando borboletas, assim me disse a Lygia.
Tenha à mão, assim como eu faço, um
Cursor Virtual de palavras penduradas nas paredes feito quadros de Dali; Dali em diante Salvador, enquanto o inconsciente fala e ele
planta a Rosa Meditativa no meu coração... Eu me salvo enquanto escrevo...
Estranho ferreiro que sou, ainda Noviço, tentando fazer pinturas de letras... Muito distante do
que Martins só com a Pena soube escrever. Estou
aprendendo... Outros escrevem fácil, fácil, brincando, derretendo... Derretendo
metais; Ferreira diz que vai me ensinar a moldar a
imagem na palavra, mais ainda... estranGULLAR, desde que eu não faça Barulhos nem pise n'O formigueiro... Meninas
metidas com poesias e sonhos acham que podem mexer em tudo que encontram. Fará
isto Por
você, por mim... Sim, por mim, por ti, Portinari... “Quanta coisa eu contaria se pudesse e se
soubesse ao menos a língua, como a cor”.
Autora: Valéria Áureo
Prêmio Academia Brasileira de Letras e Folha Dirigida - 2005