Clara corria para não perder a
aula de canto. De longe já podia imaginar a professora ao piano fiscalizando o relógio. Sempre exigia pontualidade. Clara tinha pressa,
mas não devia correr. Perderia o fôlego e não poderia cantar tão bem; precisava
controlar sua respiração e assegurar a calma.
No caminho o telefone tocou... O
som era agradável: “Edelweiss”... A mensagem chegou através de um
torpedo de celular; único, certeiro e fulminante. Ninguém por perto... Ninguém
para testemunhar os repentinos traços de dor no seu rosto atônito... Clara não tinha
nunca um sorriso assim, como aquele que acabava de se fazer em seu rosto
independentemente de sua vontade. Sorriso até então estranhamente posto ali por
engano de seus reflexos. Aliás, as faces sempre traíam suas emoções; isto desde
pequena, quando a mãe podia adivinhar até seus pensamentos, pelo discreto
estremecer das sobrancelhas. Agora não era aquele o sentimento que devia
transparecer... Era justamente o contrário de rir... De súbito houve um estirar
dos lábios para baixo num arremedado sorriso e choro que os olhos não acompanharam. Não
havia prazer naquela sugerida transfiguração de felicidade. Era uma máscara
macilenta, plástica, artificial. Logo ela sentiu a náusea que acompanhava a dor
no peito e se dobrou ali mesmo, para não cair no meio da rua estreita e escura.
Ouviu em silêncio o que dizia a mensagem de voz... Um
míssil... Uma bomba atômica na declaração judiciosa, condenatória. Uma sentença
tal como uma música melancólica de Dolores Duran que restringia o universo de
Clara e eliminava qualquer hipótese de indagação e resposta. Um funesto recado enviado pelo cyber
espace estilhaçava o seu peito. A calçada estava ocupada de alguns passantes indo e vindo,
distraídos e taciturnos. Ignoravam aquela bala perdida que atravessava
silenciosamente o peito da transeunte. Muito barulho de carros, ao longe. Nada
que fizesse recordar um pub onde se ouvisse música de fossa e se sentisse o
cheiro de fumaça. Clara lembrou-se em tempo que o amor asfixia, dói, fere, maltrata e mata...
Lembrou-se da professora que a aguardava. Ah! Minhas aulas de piano:
"Foi sinhá moça que disse
Pra mim lhe dizer ansim
Entre nós tudo acabou-se
O nosso amor é tulice
Não pregunte mais pro mim"
Caiu em si, diante do recado, tal
a violência com que foi atingida. Não imaginava que o celular fosse mortal como
um revólver, uma faca, uma navalha; uma arma municiada pronta para disparar um
tiro certeiro nos miolos. Quem poderia imaginar que uma mensagem desse
fim à vida, a tal sorte, capaz de aniquilar tão eficazmente, sem deixar
vestígios? Clara ouviu alguém perguntar se ela precisava de ajuda. Alguém tocava seus ombros. Ouviu
palavrões de pessoas que se incomodavam em vê-la estirada na calçada; deixou-se
ficar, sem poder reagir. Não mais podia com o que se passava em torno de si e em volta da cabeça. Alguém sugeriu que
se ligasse para os bombeiros. Ela, sem poder articular palavra ou respirar,
sofria. A voz insistia em dizer que ela não poderia ficar ali, que precisavam
avisar alguém da família... Clara via tudo escuro, as pernas entrando no escuro
e gelando os ossos... Um túnel se abriu diante de si. A mensagem penetrou seu coração dilacerando-lhe a pele, os
músculos, as artérias. Não havia mais chances para um cardiologista...
Lembrou-se do anel de noivado no dedo fino. Podia distinguir no meio dos sons
da rua as notas da música que estudava:
"Que adevolve este biête
Este lenço, esta lembrança
Os anel e os bracelete
Mais os brinco e a aliança."
Aos poucos as pessoas se
acostumaram com o corpo estatelado na rua. Tudo muito igual... A vida foi
voltando ao normal e ela foi depositada no banco da pracinha, por caridade de
uns e praticidade de outros, para que aguardasse socorro sem atrapalhar tanto. Um dos passantes
apressou-se em lhe retirar da mão hirta o minúsculo celular e a aliança,
escondendo o achado na mochila suja. Fez, antes que outro o fizesse,
defendeu-se. Era pequena peça de valor. Ganharia uns bons trocados no câmbio da
feira. Pequeno, fácil de esconder... A aliança daria para a primeira mulher por
quem se apaixonasse; se merecesse, é claro. O policial de plantão tocou os braços e pernas da moça
estirada na rua, cogitando ser mais um drogado na pracinha. Os braços decaídos
apontavam para o chão, a cabeça tombada para o lado esquerdo do peito, como se
consolasse o coração ora abatido pelo golpe mortal; um corpo sem a identidade e sem os sapatos. O
piano e a voz da professora Anthea soavam fraternalmente em sua cabeça, como o único consolo no fim... As aulas
de canto repetem-se ao longe em seus ouvidos:
"Sinhá moça também disse
Que entonces lhe pidisse
De vorta a fita das trança...
- Que mais sinhá disse?
- Eu não se esqueci de nada
Se não estou enganada
Falou corqué coisa mais..."
Clara restava imóvel no meio da
cidade que ia se apagando. O corpo foi ficando rígido, ela tombada como se
dormisse....
"Ah! Que eu fosse em disparada
Pelo ataio da cancela
Pra mim dizê pra ela
Ah!Ah! Ah! Ah
A cara que sinhô faz."
De madrugada na troca de turno,
outro policial vendo-a ali deitada tocou seu corpo rudemente com a ponta do
cassetete. Fez cara de desprezo, tão banal era a miséria na cidade. Só então
constatou que estava morta, a roupa úmida de neblina colada ao corpo pequeno. A
fita das tranças desprendida dos cabelos enfeitava o chão imundo.
No atestado de óbito constou:
causa da morte desconhecida ( ou ataque do coração?)
Ninguém saberá que morreu atingida por um
torpedo; uma palavra disparada por um telefone celular que explodiu
impiedosamente dentro do seu coração. Só ela ouviu o RECADO.
Crônica
inspirada na música O RECADO de Babi de Oliveira – Pianista e compositora brasileira.
Autora: Valéria Áureo - in Sortilégio dos signos