Apresentação

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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Recado/Torpedo






Clara corria para não perder a aula de canto. De longe já podia imaginar a professora ao piano fiscalizando o relógio. Sempre exigia pontualidade. Clara tinha pressa, mas não devia correr. Perderia o fôlego e não poderia cantar tão bem; precisava controlar sua respiração e assegurar a calma.

No caminho o telefone tocou... O som era agradável: “Edelweiss”... A mensagem chegou através de um torpedo de celular; único, certeiro e fulminante. Ninguém por perto... Ninguém para testemunhar os repentinos traços de dor no seu rosto atônito... Clara não tinha nunca um sorriso assim, como aquele que acabava de se fazer em seu rosto independentemente de sua vontade. Sorriso até então estranhamente posto ali por engano de seus reflexos. Aliás, as faces sempre traíam suas emoções; isto desde pequena, quando a mãe podia adivinhar até seus pensamentos, pelo discreto estremecer das sobrancelhas. Agora não era aquele o sentimento que devia transparecer... Era justamente o contrário de rir... De súbito houve um estirar dos lábios para baixo num arremedado sorriso e choro que os olhos não acompanharam. Não havia prazer naquela sugerida transfiguração de felicidade. Era uma máscara macilenta, plástica, artificial. Logo ela sentiu a náusea que acompanhava a dor no peito e se dobrou ali mesmo, para não cair no meio da rua estreita e escura.

 Ouviu em silêncio o que dizia a mensagem de voz... Um míssil... Uma bomba atômica na declaração judiciosa, condenatória. Uma sentença tal como uma música melancólica de Dolores Duran que restringia o universo de Clara e eliminava qualquer hipótese de indagação e resposta. Um funesto recado enviado pelo cyber espace estilhaçava o seu peito. A calçada estava ocupada de alguns passantes indo e vindo, distraídos e taciturnos. Ignoravam aquela bala perdida que atravessava silenciosamente o peito da transeunte. Muito barulho de carros, ao longe. Nada que fizesse recordar um pub onde se ouvisse música de fossa e se sentisse o cheiro de fumaça. Clara lembrou-se em tempo que o amor asfixia, dói, fere, maltrata e mata... Lembrou-se da professora que a aguardava. Ah! Minhas aulas de piano:



"Foi sinhá moça que disse

      Pra mim lhe dizer ansim

Entre nós tudo acabou-se

O nosso amor é tulice

Não pregunte mais pro mim"



Caiu em si, diante do recado, tal a violência com que foi atingida. Não imaginava que o celular fosse mortal como um revólver, uma faca, uma navalha; uma arma municiada pronta para disparar um tiro certeiro nos miolos. Quem poderia imaginar que uma mensagem desse fim à vida, a tal sorte, capaz de aniquilar tão eficazmente, sem deixar vestígios? Clara ouviu alguém perguntar se ela precisava de ajuda. Alguém tocava seus ombros. Ouviu palavrões de pessoas que se incomodavam em vê-la estirada na calçada; deixou-se ficar, sem poder reagir. Não mais podia com o que se passava em torno de si e em volta da cabeça. Alguém sugeriu que se ligasse para os bombeiros. Ela, sem poder articular palavra ou respirar, sofria. A voz insistia em dizer que ela não poderia ficar ali, que precisavam avisar alguém da família... Clara via tudo escuro, as pernas entrando no escuro e gelando os ossos... Um túnel se abriu diante de si. A mensagem penetrou seu coração dilacerando-lhe a pele, os músculos, as artérias. Não havia mais chances para um cardiologista... Lembrou-se do anel de noivado no dedo fino. Podia distinguir no meio dos sons da rua as notas da música que estudava:



"Que adevolve este biête

Este lenço, esta lembrança

Os anel e os bracelete

Mais os brinco e a aliança."



Aos poucos as pessoas se acostumaram com o corpo estatelado na rua. Tudo muito igual... A vida foi voltando ao normal e ela foi depositada no banco da pracinha, por caridade de uns e praticidade de outros, para que aguardasse socorro sem atrapalhar tanto. Um dos passantes apressou-se em lhe retirar da mão hirta o minúsculo celular e a aliança, escondendo o achado na mochila suja. Fez, antes que outro o fizesse, defendeu-se. Era pequena peça de valor. Ganharia uns bons trocados no câmbio da feira. Pequeno, fácil de esconder... A aliança daria para a primeira mulher por quem se apaixonasse; se merecesse, é claro. O policial de plantão tocou os braços e pernas da moça estirada na rua, cogitando ser mais um drogado na pracinha. Os braços decaídos apontavam para o chão, a cabeça tombada para o lado esquerdo do peito, como se consolasse o coração ora abatido pelo golpe mortal; um corpo sem a identidade e sem os sapatos. O piano e a voz da professora Anthea soavam fraternalmente em sua cabeça, como o único consolo no fim... As aulas de canto repetem-se ao longe em seus ouvidos:



"Sinhá moça também disse

Que entonces lhe pidisse

De vorta a fita das trança...

- Que mais sinhá disse?

- Eu não se esqueci de nada

Se não estou enganada

Falou corqué coisa mais..."





Clara restava imóvel no meio da cidade que ia se apagando. O corpo foi ficando rígido, ela tombada como se dormisse....



"Ah! Que eu fosse em disparada

Pelo ataio da cancela

Pra mim dizê pra ela

Ah!Ah! Ah! Ah

A cara que sinhô faz."



De madrugada na troca de turno, outro policial vendo-a ali deitada tocou seu corpo rudemente com a ponta do cassetete. Fez cara de desprezo, tão banal era a miséria na cidade. Só então constatou que estava morta, a roupa úmida de neblina colada ao corpo pequeno. A fita das tranças desprendida dos cabelos enfeitava o chão imundo.

No atestado de óbito constou: causa da morte desconhecida ( ou ataque do coração?)

Ninguém saberá que morreu atingida por um torpedo; uma palavra disparada por um telefone celular que explodiu impiedosamente dentro do seu coração. Só ela ouviu o RECADO.





         Crônica inspirada na música O RECADO de Babi de Oliveira – Pianista e compositora brasileira.

Autora: Valéria Áureo - in Sortilégio dos signos