Ilustração: Internet
-Enfim, o que traz você aqui?
-Vim mesmo por recomendação médica. Não deixa de ser
interessante: ter uma pessoa para conversar, mesmo que se pague por isto. Perdoe
o meu comentário. É para descontrair um pouco. A senhora tem com quem
conversar?
-Tem razão, é importante ter com quem falar. Mas vamos
ao seu caso... O que mais o aflige?
-Eu não sei bem. Eu perco as pessoas.
-Como assim? Como perde as pessoas?
-Não sei bem dizer. Aliás, meu problema sempre foi com
as palavras. Sempre achei que as conhecia, que as dominava, que as usava bem e,
no entanto, acabei falando sozinho...
- Seu problema é com as palavras? Fala sozinho?
-Não! Meu problema é com as pessoas. Com as palavras eu me saio muito bem. Eu sempre
acredito no que as pessoas me dizem. Confio nelas. Talvez eu seja um inocente
útil...
- Sente-se mal a esse respeito?
-Talvez!Estou tentando compreender a transitoriedade.
A transitoriedade das coisas, das pessoas... Confiava na eternidade dos
sentimentos. E na permanência das pessoas.
-E isto o incomoda?
-Muito.
- E o que espera com a sua vinda aqui?
- Sei lá!... Ao menos descarregar esta dor no coração.
Parece que vou explodir. Meu peito dói.
-Dor no peito? Tem problema no coração? Tem pressão
alta? Toma algum remédio?
- Não se preocupe; não é uma dor física. É uma dor da
alma. Uma mágoa, uma nódoa.
-Tem dormido bem?
-Não! À noite é a pior hora da solidão. A cidade
silenciosa. As janelas fechadas dos apartamentos... Tudo apagado. Um som
ecoando lá longe. Um abismo no tempo, um gato notívago... Também ele se arrasta
nos miados que vibram na noite. Tenho pena dos gatos. Ou será pena de mim mesmo?
Acho que é autopiedade.
-E toma algum remédio para dormir?
-Atualmente não! Já tomei. Não quero mais. Não quero
depender dos medicamentos, mesmo porque eles me fazem dormir na hora errada.
Eles me atrapalham quando eu tenho que ficar acordado. Os remédios são uma
ilusão, não acha?
- Depende. Cada caso é um caso.
- Sim. Cada caso é um caso. O meu caso é perder as
pessoas. Já lhe disse, não é? Sempre perco as pessoas.
-Sim, disse. Mas aonde é que você perde as pessoas?
-Não se trata de um lugar; trata-se de uma condição. A
perda das pessoas é uma condição subjetiva. Não sei para onde vão. Sei que elas se perdem, ou melhor,
elas vão se soltando.
-E você? Tem ideia de onde está, ou para onde quer ir?
-Estou sempre em casa. A vida é muito complicada.
Difícil viver, não acha?
-E como pensava que seria a vida? Que sonho existiu de
verdade?
-A princípio não pensava nada. Ia vivendo um dia
depois do outro. Não pensava muito sobre a minha existência, até que me dei
conta de que nada era tão simples, como era a vida dos bichos e das plantas,
que pareciam perfeitamente ajustados ao meu olhar contemplativo... Havia paz no
horizonte e na alma. Tudo era muito perfeito.
- E você? O que pensa de si mesmo?
- Já lhe disse, eu perco as pessoas.
- Sim. Você as perde assim que elas se soltam.
-Pois é! Eu não desejo que se soltem, mas elas se vão.
Sempre tive muitas coisas para dizer e achava que isto seria o bastante:
preencher a vida das pessoas com as histórias, as palavras, as novidades. Tinha
sempre muita coisa para dizer e nada, nada passava despercebido nesta vida. A
mim não bastava saber, conhecer; precisava compartilhar. As palavras se chegando ao meu ser, dando-me uma aflição. Eu tinha que esvaziar a cabeça, o
coração. Eu me inteirava com avidez de tudo o que havia para ser conhecido.
Devo confessar que havia muita facilidade em transitar entre os universos. Nada
me parecia difícil ou incompreensível. Havia um momento de transbordar. E, para
demonstrar a alegria de saber eu precisava das pessoas. Nunca pude existir
sozinho.
- Sim, precisava das pessoas.
- É!Pessoas com quem pudesse compartilhar. Pessoas
dispostas a ouvir. Com a maturidade percebemos o quanto acumulamos. Eu
precisava falar. E, afinal, para que
serve tudo o que acumulamos? Acaba se transformando num fardo a nossa história.
Eu imaginava que as pessoas pudessem me ouvir, por puro prazer. Mas, ao
contrário do que eu imaginava, elas chegavam tão incomunicáveis, a princípio,
que eu precisava me desvencilhar de minha necessidade de falar, de minha
história... Eu tinha que ouvi-las. Era visceral a minha necessidade de ouvir,
de me envolver, de me emocionar. Sempre gostei muito de ouvir, esta é a
verdade. Para elas tudo era prisão e sufocante engano. Como poderia saber o que
sentiam, o que temiam, o que queriam? Eu tinha que ouvi-las toda vez que me
procuravam. Todas elas eram silêncios pesadíssimos que vinham eclodir nos meus
ombros. Pareciam máquinas emperradas... Eu começava a copiar os sinais que
emitiam, com atenção, carinho, ternura. A cabeça, o coração, os braços, as
pernas... Tudo era uma máquina emperrada. Eu era um aparelho a decifrar as suas
verdades, os seus medos. Eu decifrava neles o esforço para viver, o esforço para
não sofrer e para não morrer. Eu via neles as consequências dos seus atos, os
arrependimentos e as renúncias. Muitas renúncias para não pecar e que levavam
ao sofrimento. O amor que tomamos, tomamos sem saber... Eu juntava os cacos das
pessoas despedaçadas... Eu as ouvia por horas, dias, meses, anos, até que
chegava um dia e elas partiam, sem mais nem menos. Quando a máquina finalmente
voltava a funcionar, as pessoas voltavam a sorrir, a cantar, a assoviar. Elas
se libertavam. Eu as curava. E eu, que havia me afeiçoado a elas, que chegava a
amar muito era friamente abandonado. Quando partiam eu ficava novamente
sozinho, apenas acompanhado das lembranças delas. Já lhe disse, eu perco as
pessoas. Este é o meu problema.
-Seu tempo acabou. Por hoje é tudo. Na próxima semana continuaremos.
E, por favor, assine o recibo com a secretária lá na recepção. Pode ir. Até
quinta-feira.
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Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amor Líquido
In: Conjugando o Amor Líquido