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quinta-feira, 28 de julho de 2016

Conversa além do tempo



                                                         ILUSTRAÇÃO: INTERNET


- Veja só, Normélia!... Ali, no Coreto, lendo um jornal. Aquele é o rapaz que veio me entrevistar. Chegou de longe, como ele mesmo me disse, mas não me explicou de onde veio. Falou alguma coisa sobre o intangível e o imponderável e ficou algum tempo calado... Fez algumas perguntas, algumas considerações, como se já soubesse as respostas. Comportou-se, comedido nas palavras e econômico nos gestos. Falou-me um pouco de metafísica, alguma coisa assim. Eu o convidei a passar em casa para apresentá-lo a você e tomar um cafezinho, mas não teve jeito. Arredio, de certa forma, se esquivou. Ficamos mesmo a conversar no Largo, apesar do calor. Disse-me, entre outras coisas, que tem boas recordações daqui, como se já tivesse vivido na cidade. Achei-o bem tímido e apressado, sempre olhando o relógio. Disse-me que tinha hora para partir e que precisava da entrevista, antes que os minutos se esvaíssem... Do jeito que chegou ele partiu. Pois vejo que está de volta... Será que tem alguma novidade?

E você, querida, gostou da edição de 25 de junho? Leu o que escreveram sobre o nosso jornal? Eu fiquei entusiasmado com a repercussão e o tanto que comemoraram. Linda homenagem. Fizeram bem em celebrar a data, tão importante para nós.

- Gostei muito, meu querido. Confesso que foi uma grande surpresa. Uma edição em festa, moderna, colorida. Bem ao gosto de nossa neta. Foi uma edição especial que muito me emocionou. Compensou os esforços de toda a família.

- É verdade. Muita gente boa escreveu. Apreciei cada texto. Já li, reli e não me canso. Acha que devemos falar com ele? É o único com quem podemos falar sobre esse acontecimento. Os outros nunca vêm nos ver. Gostaria de conversar com Santão, Nicolau, Roberto...

- Claro que sim. Vamos falar com ele. Tenho a impressão que vocês se tornaram amigos, irmanados pelo gosto das letras, das ideias e das boas conversas. Assunto não lhes deve faltar.

- Pois venha comigo! Vamos antes que ele se vá. Não sei se teremos outra chance.

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- Então, meu rapaz? Que surpresa agradável. Não contava em vê-lo mais uma vez. Soube que voltou porque o tempo lhe permite tudo e eu aprecio muito suas viagens. Elas me dão certo conforto, pois é o jeito que tenho de me manter informado, por obrigação de jornalista, posso assegurar. Não se perde o vício do ofício. Pois mesmo querendo ficar longe do caos em que se encontra o país, a minha obrigação é acompanhar os fatos. Sinto-me desanimado, vexado até, com os últimos episódios de corrupção. Quanta roubalheira! Não podia esperar por esta. Mas, deixemos a política de lado. Sua nova visita é bem oportuna, pois precisava lhe contar de minha alegria com a repercussão da festa do meu jornal; então, somos o terceiro jornal mais antigo do estado e o quinto mais antigo do país? Não imaginava uma coisa desta. Veja só! Eu inseguro, sem saber se deveria tentar novamente e as notícias são tão boas! Pois esta é a prova incontestável do sucesso de minha família. Devo lhe dizer que muitos deles estão aqui comigo, faz algum tempo e que todos vibraram com a edição especial dos 120 anos. Já sabe... O tempo é uma ilusão! Esses anos se misturam no antes e no depois... Não se sabe do começo e nem do fim. Bem, deixemos de filosofar!... Afinal, por que veio? Alguma matéria especial? Ou já sentiu saudades da terrinha?

- Saudades também. Para ser sincero eu relutei em vir... Temia incomodá-lo novamente neste seu afã do lançamento de O Imparcial. E, por mais confuso que possa lhe parecer, sua neta estava na azáfama da edição especial. É um ir e vir incessante no tempo, como se a minha alma habitasse o absoluto. É uma profusão de datas, de 1896 a 2016, num piscar de olhos, em que tudo se mistura em um grande livro, onde não há começo e nem fim. Eu o abro na primeira página e lá está o senhor com as suas dúvidas. Folheio e me deparo com José de Assis e suas certezas; vou mais adiante e lá está sua neta Carmen Lúcia, às voltas com as próximas edições. Um instante se passa e eu me dou conta dos cento e vinte anos passados. Vou de um extremo a outro e todos estão trabalhando, trabalhando, trabalhando. Milhares de folhas de jornal voando pelos domingos, ano a ano. O senhor sabe... O tempo é absoluto porque não varia, apesar de nos iludir com o contrário; é infinito e independente e passamos por ele afobados e distraídos. É absoluto, espacial e minha alma circula livremente encontrando quem o meu coração deseja. Gosto dessas viagens no tempo e no espaço, com a leveza de um sopro. O tempo não passa, nós é que “acontecemos” nele, escrevendo as nossas histórias. Movimento e tempo são criações da nossa consciência; são interpretações que fazemos para organizar a existência e a compreensão de nós mesmos e do universo que nos cerca. A consciência, esta sim é dinâmica, variável, expandindo-se, contraindo-se e curvando-se. Nós somos os viajantes, não acha? Diante disto está a minha facilidade de me deslocar no ontem e no amanhã. Eu estou lá e cá, sempre que minha imaginação me leva. Sei que o senhor também pode deslocar-se com facilidade, como a maioria dos escritores, ou estou enganado?

- Não, não está enganado; eu mesmo costumo visitar meus entes queridos com certa frequência.

- Então, o senhor me compreende. Fico mais à vontade em despedir-me. Desculpe-me, mas tenho pressa. Preciso deixar que tudo aconteça normalmente, porque já interferi demais.. Não posso mais atrapalhar, meu caro Francisco Vieira... Sinto muito em deixá-lo e à sua esposa, mas tenho um último pedido a lhe fazer antes de partir... Gostaria muito que todos fôssemos ao Foto Daguerre, na Domingos Inácio, para que Seu Zoberto fizesse uma fotografia de todos nós. Seria uma bela recordação de um episódio que os incrédulos acham improvável, não acha?

- Ótima ideia! Vamos lá!... A foto comprovará o nosso extraordinário encontro.



Valéria Áureo
Publicado em O Imparcial
08/07/2016