Ilustração : Internet
Sua fala não parece mais tão
agradável e compreensível. Ainda ontem ela conversava tão bem, com uma voz doce
e límpida. Perguntou à filha as horas. Hora de dormir e sonhar, disse a
jovem. A mãe se acomodou diante da televisão. Vieram-lhe à mente, logo no
primeiro sono, matizes de sapatilhas, sapatos, sandálias, saltos... Talvez ela
soubesse dançar... Não tinha certeza. Perguntou à filha se sabia dançar; não a
filha, ela! Insistiu e a filha disse que não. Agora dorme! Ela ainda conseguia
se lembrar da noite em que, entre o francês e o português que sempre falara tão
bem, as palavras começaram a lhe faltar.
Eram tantas as palavras, de tão
diferentes fontes e sabores, que cabiam àquela mulher, que agora estranhamente,
todas elas se resumiam a pés e sapatos. Estava aprisionada no campo semântico
de saltos, solas, scarpins... As palavras concentravam em si tamanha quantidade
de significados e evocações, que algumas delas já não conseguia guardar, sem
que antes tivesse que perguntar à filha. Sabia que, ainda ontem, alguém
(preferia não dizer o nome dele) gostava de presenteá-la com lindos sapatos;
aliás, quase todas as semanas. Sapatilhas, sapatos, sandálias, saltos... Eram
tantos os enfeites que ele dava para aqueles pés delicados e pequenos, que ela
mal conseguira usá-los! Eles formavam um casal atraente que ia a muitos lugares
juntos. Os generosos mimos que ele lhe dava faziam parte desse
encantamento de estar simbolicamente junto dela. Era um perene saber por onde
ela andava, o que alentava o coração dos dois. Ele mantinha a ilusão de que
controlava os seus passos, ou que estava sempre por perto, quando ela andasse
sozinha.
Agora ele (não quer dizer de quem
se trata) estava distante dela. Os adornos ficaram presos no tempo, em
que ambos percorriam de mãos dadas os mesmos lugares. Naquele tempo os passos
da sua bela Condessa Descalça ao seu lado eram alcançáveis e seu destino comum
era resguardado. Depois que os pés dela tomaram outro rumo (tragicamente
traçado por ele, em um arroubo de ciúmes), a vida dos dois mudou
definitivamente. Ambos viveram separados em seus destinos, e chegaram em uma
idade, em que só sabiam apresentar um tímido arrazoado de sons impenetráveis
(cada um em seu mundo). A volúpia comum do íntimo entendimento de outrora
estava preservada nas caixas de sapatos que chegavam pelo
Sedex... Preferiu guardar para si o nome dele. Mais uma noite... Mais uma
vez ela suspirou tristemente mirando os pés descalços.
Autora: Valéria Áureo
In Entre Mentes e Corações