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sexta-feira, 28 de abril de 2017

Conjugando o amor líquido

                                                              Ilustração: Internet


Helga era alemã, Pétros era grego. Eles se conheceram em um cruzeiro marítimo. Um mergulho na mesma onda... Um não sabia falar o idioma do outro, mas se gostaram profundamente e se entenderam. Com um simples olhar, ou um toque, eles se comunicaram mais do que se tivessem palavras em comum. Em tempos de amor infinito, decidiram pelo infinitivo ficar, namorar, beijar, pedir, dar, amar, casar...
Em tempos de amor líquido viviam se derretendo um pelo outro, tocando-se, se olhando com carinho, preenchendo os vazios do coração com o amor que estava entornando nos silêncios. A cada dia iam sorvendo a paixão um pelo outro.
O amor era líquido e estava contido em um recipiente aberto dentro do peito. Pelo vão do coração rasgado o amor escapava; ia escorrendo pelo corpo e pela alma em gerúndios... Longos gerúndios na gramática dos sentimentos. Amando, querendo, esperando, sorrindo, desejando, dando e recebendo amar...
O tempo, levando os toques e os olhares, ia alongando o afeto sem palavras para um lugar desconhecido.
O tempo foi passando, passando e passando... E eles, que outrora se amaram no presente, caíram no precipício da rotina e no particípio do verbo: amado, querido, desejado, sofrido, pedido, negado, abandonado.
Eles foram ao gerúndio mais doloroso, em tempos de amor líquido: sofrendo, chorando, mentindo, traindo, acusando, odiando, pedindo, negando, esquecendo, esquecendo, esquecendo...
Chorando, porque o amor líquido gosta de provocar lágrimas, Helga saiu de casa no meio da noite, sem falar para Pétros que partia.
Chorando, porque o amor líquido gosta de provocar dilúvios, Pétros saiu na mesma noite, sem falar para Helga que a deixava.
Ambos tinham sofrido; ambos viveram mortificados; cada um se acusando, remoendo a culpa de ter deixado o outro sofrendo.

Autora: Valéria Áureo




sábado, 22 de abril de 2017

Cantigas de amigo, de amor, de escárnio e maldizer...



                                                                                                                    ILUSTRAÇÃO: INTERNET

Interessante como as ideias podem nos levar a viagens distantes. Lembrei-me das aulas de literatura portuguesa, tão primorosas e inesquecíveis no antigo Regina Coeli, sob a maestria de madre Adeodata.
Estou a um passo dos menestréis medievais, em busca de inspiração. O trovadorismo foi a primeira manifestação literária da língua portuguesa, no século XII, com a Cantiga da Ribeirinha, ou Cantiga da Garvaia, em plena Idade Média, período em que Portugal estava no processo de formação nacional. Na lírica medieval, os trovadores eram de origem nobre, que compunham e cantavam, com o acompanhamento de instrumentos musicais, as cantigas (poesias cantadas). Eram poesias satíricas (Cantigas de Maldizer e Cantigas de Escárnio) e líricas (Cantigas de Amor e Cantigas de Amigo).
Bom, vou levar adiante a minha narrativa, do contrário essa história vai se transformar em uma aula de literatura, e nem todos gostam; voltemos ao fato. O que mais importa nesse momento é o ocorrido.
Sempre fomos encantados por música na casa 87 da Rua Domingos Inácio; ou nós mesmos nos embalávamos e cantávamos até dormir, ou o som vinha do Clube dos Trinta, em noites de bailes.  Sempre havia um fundo musical nas nossas noites. A música do Clube dos trinta ecoava atravessando o Bequinho da Zulmira, o quintal de Dona Lulu e as paredes da nossa casa, até nos fazer dormir. Nesse afã de cantar, dançar, pular de alegria, íamos crescendo, sem nos dar conta de que tudo passaria tão depressa. De uma hora para outra a casa tinha mocinhas e rapazes, andando aqui e ali.
Minha narrativa não tem nada a ver comigo, porque eu ainda me perdia entre livros e bonecas e não era o objeto de nenhum afeto ou  amor escondido. Tão escondido que nem mesmo as moças da casa sabiam. Mas me lembro do fato em uma noite qualquer do final dos anos 60.
Noite alta, já beirando a madrugada, ouve-se um violão e a voz melodiosa, de um cantor fazendo serenata em nossa porta.  Era agradável e surpreendente uma melodia tão próxima.  Era a primeira vez que ouvíamos uma serenata. Música lá fora... Em contrapartida havia risos e alegria do lado de dentro da casa.
Apesar de todos nós gostarmos da cantoria, nenhuma Julieta teria chances de se chegar à janela (o balcão de Shakespeare) para ver quem seria o valente Romeu. Não com o nosso pai já de pé e atento, movendo-se de um lado para outro, sem acender as luzes, para resolver a situação. A música e o cantor eram acompanhados por um coro de rapazes, amigos com certeza do jovem menestrel apaixonado, naquele desafio considerável de fazer ousada corte a uma das moças da casa 87.
Segue a música atravessando a noite fria do final da década de 60. Silêncio dentro de casa e melodia do lado de fora. Tudo ia bem até que...
Um tiro para o ar.  Dois tiros, três... Uma voz imitando o uivo de um lobo!  Auuuu!... A música aveludada do menestrel dá lugar a uma correria desesperada, uma gritaria desafinada e outros barulhos: corre, corre, corre!Pega o banquinho!...
No outro dia, jogados à porta da casa 87,  havia um banquinho e o violão. Quanto ao seresteiro ousado, nunca se soube de quem se tratava. Uma pena, não é?
Um cantinho, um violão /Esse amor, uma canção /Prá fazer feliz
A quem se ama... /Muita calma prá pensar /E ter tempo prá sonhar...


Autora: Valéria Áureo 
To: Patrícia Áureo Cerqueira de Souza

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Narrativa das Improbabilidades I


Quando a infância era a sua única razão de ser, a criançada já entendia o pai com um simples olhar. Ele baixava os óculos até a ponta do nariz e pronto. Tudo esclarecido e nem mais um som.
Os distúrbios que pudessem existir eram folhas corrigidas do livro de doutrinação que o vento levava rapidamente e dava sabedoria às variadas idades. Dava compreensão. Dava perspicácia e discernimento. E ai de quem não compreendesse suas mensagens, pois a vida não dava chance para os tolos.
Poucas palavras, gestos e mímica formavam um código secreto entre eles. A casa poderia até ser um campo concentrado de vontades de guerra, embates, egos, se não houvesse um líder. Mas o líder não deixava que isso acontecesse. Assim seus oito soldados marchavam em harmonia com outras crianças refreadas em casa e nos anos de escola. Tudo ia bem...
O pai falava aos filhos com os olhos e até com silêncios. Palavras deviam ser decifradas com inteligência e rapidez de raciocínio...
E assim se deu a narrativa das improbabilidades: ia ele com a filha adolescente no ônibus até Barbacena, onde a menina estudava; linda, ingênua, cabelos longos, olhos doces e convicções de menina esperta, mas que ainda tinha que ser protegida pelo pai. No ônibus ela sentou-se no banco da frente e atrás se sentou o pai. Eram os únicos lugares vazios. Do lado dela o banco estava ocupado por um rapaz que logo se engraçou, aprumando-se ao vê-la. Empertigou-se ardiloso e achegou-se aos longos cabelos dela. A cada curva, mais e mais ele se lançava sobre ela. Ela, cada vez mais espremida em seu assento, sem poder se desvencilhar, não sabia reagir.
O pai sabia que não poderia mais agir como sempre agira em sua juventude: um soco nos queixos do malandro e pronto. Mas agora a questão exigia prudência e sabedoria.
Foi então que o pai exclamou: - Minha fia, como estão te tratando lá no leprosário? A menina, percebendo a intenção do pai respondeu: - Estão me tratando bem, pai. Não se preocupe!
- E as feridinhas no seu corpo, já secaram?
- Não, pai, ainda não!... Tem muitas nos ombros.

Pois nem foi preciso mais nenhuma palavra. O rapaz que até então estava com a cabeça sobre os ombros da menina, deu um salto; desvencilhou-se pálido, tremendo, apavorado. Deu sinal para o motorista e saltou no meio da estrada.
É isso que acontecia com quem se engraçava com as filhas do meu velho.


Autora; Valéria Áureo 
To: Margareth Áureo Cerqueira de Souza

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Se eu estiver mentindo...



A cada vez que tinha que se explicar Antonio dizia: se eu estiver mentindo, que um raio do Deus Todo Poderoso caia na minha cabeça e me parta ao meio. E isto fazia parte de todas as suas narrativas para se explicar diante da esposa. A frase já era até repetida inconscientemente, antes de todos os outros argumentos. De mentira em mentira ele ia se livrando das brigas com a mulher. Ela se acostumando com o que ele dizia e Antonio se acostumando com a explicação forjada ao longo do caminho de volta para casa; o mais difícil era o enredo de cada história antes da frase conclusiva: se eu estiver mentindo... Ela fingindo que acreditava nele e Antonio sem poder repetir histórias que já havia inventado. Tinha que ser cauteloso e criativo. Nisso a mulher até se divertia, sabendo o quanto ele tinha que se esforçar para não se atrapalhar.  A prosa nem ia muito longe, porque a mulher já conhecia o final da trama e Antonio já soltava o desfecho: se eu estiver mentindo...  E a conversa acabava nisso. Assim iam vivendo.

Um dia desses não teve jeito. Tantas ele fez que...

 Choveu muito. Muita água, raios e trovões tomaram a cidade. Para a admiração da mulher ela ouviu no noticiário: raio cai na praia da Barra e mata casal na areia.

Ela ficou desnorteada ao constatar que se tratava de Antonio. Sofreu, gritou, chorou muito, mas logo a dor deu lugar à dúvida: o que seu marido teria inventado para a amante, a ponto de Deus perder a paciência e parti-lo ao meio?



Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amor Líquido

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Flor de Estampa






São quatro irmãos reunidos naquela casa antiga de sobrado. Três homens e uma mulher.  A irmã já não contava mais.
Agora só restavam os três homens. Cada um com a sua guerra particular e seus ressentimentos. Tinham raiva um do outro e mostravam os dentes uns aos outros. Havia muito tempo que não visitavam o casarão. É como se não soubessem mais para que lado a vida tinha seguido, sem saída e sem paixão. Todos eles, coincidentemente tinham afeição aos cães. Como não conseguiam amar uns aos outros, amavam exclusivamente os seus bichos de estimação. Eles sim eram depositários de todos os afetos de cada um deles. Todos os levavam a passear na pracinha iluminada da cidade. Cada dono com o seu cão; e nem os cães se entendiam com os demais cachorros, nem com os outros irmãos, como se a amizade entre eles fosse uma traição aos donos.
Os cachorros saíam à noite e os seus donos aceitavam felizes serem arrastados pelas correntes, cada um para um lado diferente do outro. Os cães não eram os únicos a usar coleira. Seus donos sempre tinham um entrave na garganta. Era um nó, um espinho pontiagudo que descia até o peito.  Depois do passeio os cachorros decidiam que era hora de ir e os donos voltavam submissos ao casarão.
Chegaram! Vamos jantar! — disse a mãe. Há tempos não comiam juntos; cinco anos...  Eram ocupados demais, cada um em sua cidade e em suas mágoas... Mágoas e nem se sabia mais a razão delas, naquele momento; apenas foram se acumulando como o mofo nas paredes da velha casa. E quando se deram conta, não se olhavam mais nos olhos. Mal se falavam, depois de anos e anos distantes.
Cada um olhava e conversava apenas com o seu cão. Há muito tempo não detinham a imagem de afagos e declarações de amor do passado. Perderam-se cinco anos antes, depois do enterro do pai, disputando seu espólio. O pai era um numismático, um colecionador de moedas e cédulas. Tinha uma caixa grande onde guardava dezenas e mais dezenas de cédulas no estado de “flor de estampa” (novinhas em folha, sem dobras e com alto relevo preservado). A caixa foi a razão de toda a discórdia. Agora a irmã era uma só chave para abrir os quatro mundos e libertar os espíritos aprisionados no passado.
Hoje foi inevitável se encontrarem. Deviam se perguntar ao verem a irmã pela última vez: por que ela está dormindo nessa caixa? (Silêncio). Por que ela está dormindo nessa caixa toda enfeitada de flor? (silêncio). Puderam pensar que ela mais parecia uma cédula preciosa no estado de “flor de estampa”. Todos pensavam que seria melhor se ela acordasse e saísse da caixa!Tão jovem, tão linda, tão perfeita em seu estado virginal. Sim, uma preciosa flor de estampa.
Assim sobraram os três irmãos para repartir a vida com ela, a mãe já envelhecida. Nada mais fazia sentido depois do espólio do pai. Cada um com seu cão e a imagem da irmã naquela caixa de flores.
                             Pela manhã, no café daquele dia do enterro da irmã, dividiram os sonhos, como nunca tinham dividido. A vida lhes parecia nova, apesar do reencontro em uma circunstância tão triste. Uma caixa triste, onde não havia mais nada a repartir, senão a irmandade em flor. A mãe chorou muito e perdoou. Conversaram as antigas saudades. Eram tentativas de amizade e do estreitamento do amor fraterno. Quem sabe se tornassem amigos? Riram, conversaram e se abraçaram. Olharam-se profundamente nos olhos, tocaram-se, perdoaram-se, beijaram-se, enquanto os cães ficaram do lado de fora do sobrado... Os cães enciumados mudaram com os seus donos... Começaram a ter raiva e a mostrar os dentes.

Autora: Valéria Áureo