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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O Homem que usava armaduras



 

 

          O homem de armadura empurrou a porta do consultório suavemente e entrou na sala atapetada, que amortecia as suas passadas pesadas. Sempre teve pavor de médicos e evitou visitá-los o quanto pode. Diante da insistência da mulher, decidiu se consultar. Ultimamente sentia o corpo cansado, as juntas inchadas e doloridas, dor abdominal e um aperto no peito, como se estivesse sem ar. Também notou queda de cabelo e constante mal humor. Vivia carrancudo. Havia outros desconfortos com os quais não se incomodava mais. Foi ao Dr. Bernard, o melhor médico do mundo. Ao menos era isso o que diziam dele.

          A armadura pesada era de cortes de malha de ferro, peitorais de aço,braçadeiras, luvas, caneleiras e botas; por baixo dessa armadura o homem usava uma camisa e uma ceroula de tecido macio como algodão, para reduzir a fricção da malha, mas principalmente para reduzir a força de impacto dos golpes. A vida dava golpes de todos os lados e ele devia amortecê-los.

          Apesar de se acreditar que armaduras imobilizavam o usuário, na verdade, a armadura medieval permitia o seu movimento fácil; o que o limitava era o peso e o desconforto causado por usar tal vestimenta constantemente, além do barulho e da dificuldade na hora de dormir.

          Ele entrou na sala e ficou de pé, ao lado dos demais clientes do Doutor Bernard. Ele não se movia e observava todos que esperavam a sua vez. O rosto continuava encoberto pelo capacete de metal, mas isso não impressionava ninguém. Aliás, ninguém parecia notar que ele usava uma reluzente armadura. Usava também um elmo com uma plumagem vermelha que lhe garantia altivez, mas parecia que ninguém notava.

          O homem de armadura tinha se colocado próximo ao corredor, o que atrapalhava a passagem dos demais, porque suas longas pernas rígidas tornavam o lugar mais exíguo. Ele retirou as luvas metálicas com cuidado, pois havia notado que o ar condicionado não estava ligado e ele estava suando. Havia muitos clientes e, provavelmente o Dr. Bernard tinha se atrasado.

          À sua direita notou uma mulher de cabelos pintados, ainda úmidos, que lia uma revista, ou a folheava distraidamente, para se ocupar com a espera. Ao lado dela uma senhora mais velha lia uma revista alemã, de modas. Como a primeira mulher, ela também não usava joias.  A mais jovem fumava um cigarro americano encaixado em uma piteira dourada. À sua frente um senhor bastante idoso usava chapéu e tinha um guarda-chuva no colo. Ele olhava o chão sem se mover. O homem de armadura resolveu se acomodar na cadeira, fazendo um barulho distinto dos demais. Assim deixava mais livre o espaço para os clientes. Era um ranger de metais, como as dobradiças enferrujadas de uma porta. O barulho fez com que todos olhassem para ele, o que o deixou constrangido. Em segundos todos se voltaram aos seus interesses sem se importarem mais com a sua presença. Pouco caso faziam de sua armadura, seu elmo e capacete, porque parecia que não os viam.

          A campainha tocou e o velho que estava imóvel, usando chapeu foi o primeiro a entrar. Ergueu-se lentamente sem fazer barulho. Permaneceu trinta minutos na companhia do médico. Ao sair o velho acenou lépido para todos da sala se despedindo. Saiu sorridente, dando a impressão de que a notícia tinha sido boa. A enfermeira conduziu a segunda paciente, que era a moça de cabelos pintados. Levou-a para dentro do consultório. Ela também saiu sorridente meia hora depois, com um sorriso radiante.

          Enfim a enfermeira se dirigiu ao homem de armadura. Ela o guiou até o interior do consultório. Conduziu - o por um labirinto e o deixou diante de uma porta onde estava escrito HOMENS. Ela disse para que ele entrasse no banheiro e se despisse e ficasse à vontade. Ele se perguntou se ela tinha notado a sua armadura. De qualquer forma ele se preparou para a consulta; afinal o Dr Bernard  era o especialista mais renomado no assunto. O melhor médico do mundo, afirmavam.

          Ele notou os cabides de acrílico presos nos azulejos, mas eram inúteis para sustentar as peças de seu vestuário. Retirou o capacete, o elmo com plumas vermelhas, dando enfim liberdade ao seu rosto bem barbeado; libertou os cabelos louros já embranquecendo. Torceu as roscas com ruído e desencaixou as mangas, libertando os braços. Depois as depositou no chão, apoiadas na parede. Desencaixou as pernas e as botas de pontas estreitas com um pouco mais de dificuldade, ferindo-se levemente nos joelhos. Restava apenas a proteção do tronco. Desvencilhou-se dessa última peça com certa dificuldade. Retirou a roupa de malha que ia sob a armadura. Finalmente ficou completamente nu. Sentiu-se leve sem o peso dos metais. Deu alguns saltos, girou o tronco para a esquerda e a direita, abaixou-se, levantou-se, flexionou braços e pernas.  Respirou fundo. Acomodou todas as peças de sua armadura sobre a cadeira e saiu do cubículo para a consulta.

          Finalmente estava diante do melhor médico do mundo. O médico perguntou quanto tempo havia que ele não se consultava, advertindo que com a saúde não se brinca. Depois afirmou: um metro e oitenta de torax, o senhor nunca terá problemas de pulmão. Suba nessa balança! Peso ideal, nem gordo e nem magro. Diga trinta e três! Pressão arterial normal, temperatura normal. Gânglios normais... Vamos colher o sangue, urina, esperma. O resultado sai em algum tempo, pode ficar aqui mesmo e aguardar. Hoje é tudo muito rápido com exames feitos por computador. Faremos radiografia, ultrassonografia e o que mais eu achar necessário, já que o seu plano cobre tudo. A enfermeira vai conduzi-lo e é só ficar tranquilo.

          O homem nu foi conduzido pela enfermeira por inúmeras salas; em cada uma delas se submetia a um exame sem qualquer constrangimento. Assim que eles terminaram ele retornou à sala do Dr. Bernard. Ali ele ficou a espera do médico e do resultado com certa apreensão. Acabou dormindo na cama do consultório; depois o Dr Bernard retornou com um ar suave no rosto e o acordou.

          O senhor está em boas condições, meu caro. Apenas um valor maior de ferro no organismo, facilmente tratável e nada mais.Não deve se preocupar. O excesso de ferro no sangue pode ser tratado com o uso de medicamentos que diminuem a quantidade desse mineral no corpo, com alterações da dieta e com uma sangria terapêutica. A melhor forma de corrigir isto é fazendo doação de sangue. Faça isso agora! Vou chamar a enfermeira!

           A enfermeira prrparou o paciente e retirou a quantidade de sangue que o médico havia prescrito. Depois disso ela o liberou, orientando-o para que voltasse a cada seis meses.

           O homem que estava nu sorriu para o médico e se despediu muito satisfeito com a consulta e com o seu imediato bem estar. Era muito bom saber que não tinha nada de grave. Ele passou calmamente pelos outros clientes da sala, despedindo-se de todos com cortesia. Foi capaz até de sorrir. Esqueceu-se completamente de vestir a sua armadura, largada definitivamente sobre a cadeira do banheiro e saiu dali mais leve do que nunca; leve de corpo e de alma.

Autora: Valéria Áureo – 28/09/2017