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segunda-feira, 31 de julho de 2017

A Arte de Furtar Palavras


 

 




 






Minha mãe dizia: - Antes dos dezoito, nem pensar! Não há de ser com o meu consentimento  que você vai fazer uma loucura dessas. Nem adianta me pedir, pois eu não deixo.

Acatei, como boa filha. Assim que veio a minha maioridade, finalmente liberta, minha mãe disse que nada mais poderia fazer por mim. Ela disse ao meu pai: - Não dou um dia e nossa filha vai aparecer aqui cheia de garatujas e desenhos por todos os lados.

O fato é que não, não apareci! Ou melhor, não tatuei desenhos em minha pele. Comecei pelas palavras...  Uma, outra, mais outra. Nos braços, nas costas, na barriga, nas coxas... Palavras, mais do que escritas, eram santificadas com o meu sangue, na minha pele. Fiz de meu corpo um santuário para elas. Um santuário ornado com rosas e espinhos. Eram sacramentadas com as minhas lágrimas. Eram palavras de dor, cruentas, nos quadris e nos altares. Eram palavras de consolo, calientes, tatuadas nos seios. Eram palavras de paixão tatuadas nas nádegas.  Palavras de fuga tatuadas nas pernas e nos pés. Escondi o quanto pude. Tatuei palavras pesadas escritas nos ombros e difíceis de serem carregadas, como a dor e o medo. Palavras esculpidas nas costas serviam-me de agasalho, como uma segunda pele. Outras tantas escrevi no peito, bem próximas do coração: orações, versos, salmos, súplicas, pedidos, ordens, preces... Fiz do meu corpo um mosaico.

Não é que eu tivesse o dom de furtar palavras, como costumava dizer. Furtar exige aptidão e inclinação e eu não tenho nem uma e nem a outra. Exige outro tipo de personalidade.  Para a minha defesa posso dizer que não furto, mas as palavras me alcançam, fogem de onde estão e colam na minha pele, como se eu fosse imantado e elas de aço. Palavras – confusas, estrídulas, exóticas – que me tocam, chamando a minha atenção. Se eu as ignoro elas se apresentam e grudam em minha textura; o alfabeto insuspeito, lineado em vocábulos enternecedores, me convida ao furto. São palavras vorazes, audaciosas que me tratam como rainha exótica das ciências ocultas dos signos. Elas criam comigo um mundo coeso, apropriado para os meus propósitos de colecionador. Eu, honesta, até tento me desvencilhar das palavras furtadas, das palavras dos outros, que ouço em todos os lugares. Tento me bastar com o meu alfabeto, o meu dialeto, mas sou um perigo quando escuto conversa alheia, trazida pelo vento. Não adianta. As palavras me querem. Elas se desprendem de onde estão e vêm comigo. Por isso eu decidi tatuá-las em meu corpo.


Quando as minhas palavras não puderam mais ficar escondidas, minha mãe se surpreendeu:

 - Cadê os desenhos? Eu respondi:

-  Não são desenhos! São palavras! Estão aqui, impregnadas na minha pele, como rendas, em um lindo bordado.

- E por que faz isto com o seu corpo, minha filha?

-Ora, mãe. Eu sou um livro aberto!

 

Autora: Valéria Áureo

31/07/2017