Minha mãe dizia: - Antes dos dezoito, nem pensar! Não há de ser com o
meu consentimento que você vai fazer uma
loucura dessas. Nem adianta me pedir, pois eu não deixo.
Acatei, como boa filha. Assim que veio a minha maioridade, finalmente
liberta, minha mãe disse que nada mais poderia fazer por mim. Ela disse ao meu
pai: - Não dou um dia e nossa filha vai aparecer aqui cheia de garatujas e
desenhos por todos os lados.
O fato é que não, não apareci! Ou melhor, não tatuei desenhos em minha
pele. Comecei pelas palavras... Uma,
outra, mais outra. Nos braços, nas costas, na barriga, nas coxas... Palavras,
mais do que escritas, eram santificadas com o meu sangue, na minha pele. Fiz de
meu corpo um santuário para elas. Um santuário ornado com rosas e espinhos.
Eram sacramentadas com as minhas lágrimas. Eram palavras de dor, cruentas, nos
quadris e nos altares. Eram palavras de consolo, calientes, tatuadas nos seios.
Eram palavras de paixão tatuadas nas nádegas. Palavras de fuga tatuadas nas pernas e nos
pés. Escondi o quanto pude. Tatuei palavras pesadas escritas nos ombros e
difíceis de serem carregadas, como a dor e o medo. Palavras esculpidas nas
costas serviam-me de agasalho, como uma segunda pele. Outras tantas escrevi no
peito, bem próximas do coração: orações, versos, salmos, súplicas, pedidos,
ordens, preces... Fiz do meu corpo um mosaico.
Não é que eu tivesse o dom de furtar palavras, como costumava dizer.
Furtar exige aptidão e inclinação e eu não tenho nem uma e nem a outra. Exige
outro tipo de personalidade. Para a
minha defesa posso dizer que não furto, mas as palavras me alcançam, fogem de
onde estão e colam na minha pele, como se eu fosse imantado e elas de aço.
Palavras – confusas, estrídulas, exóticas – que me tocam, chamando a minha
atenção. Se eu as ignoro elas se apresentam e grudam em minha textura; o
alfabeto insuspeito, lineado em vocábulos enternecedores, me convida ao furto.
São palavras vorazes, audaciosas que me tratam como rainha exótica das ciências
ocultas dos signos. Elas criam comigo um mundo coeso, apropriado para os meus
propósitos de colecionador. Eu, honesta, até tento me desvencilhar das palavras
furtadas, das palavras dos outros, que ouço em todos os lugares. Tento me
bastar com o meu alfabeto, o meu dialeto, mas sou um perigo quando escuto
conversa alheia, trazida pelo vento. Não adianta. As palavras me querem. Elas se
desprendem de onde estão e vêm comigo. Por isso eu decidi tatuá-las em meu
corpo.
Quando as minhas palavras não puderam mais ficar escondidas, minha mãe
se surpreendeu:
- Cadê os desenhos? Eu respondi:
- Não são desenhos! São palavras!
Estão aqui, impregnadas na minha pele, como rendas, em um lindo bordado.
- E por que faz isto com o seu corpo, minha filha?
-Ora, mãe. Eu sou um livro aberto!
Autora: Valéria Áureo
31/07/2017