Pelas
barbas do profeta! Dizia-se por espanto, juramento ou garantia de avalista.
Valha-me Deus, Nosso Senhor, pois o mundo está perdido, ou está para acabar; é
pedido de socorro! Benditas invocações sacras!... São Jerônimo e Santa Bárbara
protejam-me contra relâmpagos, raios e trovões.
É comum que se utilize o reforço do que
é sábio e do que é sagrado, para firmar e ratificar a vontade e dar peso à
palavra e súplica do homem comum. Evocava-se Deus para se afastar o medo
atávico, instintivo e irracional. O medo animal e primitivo. O medo do
desconhecido que acometeu Moisés ante a visão da sarça ardente e a voz de Deus...
O medo das forças invisíveis, quando prudente era persignar-se pelo sinal da
Santa Cruz, para afastar o mal. Valei-me, Nosso Senhor! Palavras, a nossa
matéria prima, a expressão da alma, o verbo e o reflexo do ser pensante. Palavras
e água benta, para a purificação.
Recentemente se vê o uso de expressões
"divertidas", inspiradas no contraste, ou mesmo no choque (absurdo)
do que é sagrado e do que é profano, de tal maneira que provoque o
estranhamento e consequentemente o riso. Isto não é recente. O fenômeno de
provocar o riso já era conhecido em evento na Igreja, na cerimônia do risus
pascalis, após o luto e o
sofrimento vividos na Semana Santa, quando se recomendava, por gestos e
palavras aos devotos, a volta à vida, à alegria, aos prazeres e aos costumes e
hábitos do quotidiano.
Antes de tudo, é prudente estabelecer a
diferença entre os termos sagrado e profano, especialmente porque esse último é
compreendido pelo senso comum de maneira pejorativa. Por vezes, esse termo é abarcado
como oposto, ou contrário ao sagrado e, portanto, distante do divino, do
misterioso. No entanto, o termo profano deve ser entendido como aquilo que não
é sagrado. Mas o que é o sagrado? Segundo Jorge Simões, na obra Cultura
Religiosa: o homem e o fenômeno religioso, Otto define o sagrado como um mysterium tremendum et fascinans,
mistério tremendo e fascinante, ou seja, o sagrado envolve “um duplo movimento
espiritual. De um lado, o medo, o respeito, a reverência e, de outro, a
atração, a alegria, a confiança” Em outras palavras, provoca o temor e a
fascinação, é um mistério tremendo e fascinante, provoca temor e inspira
confiança. “é um amor que teme e um temor que ama”.
De forma “divertida” e irreverente, a
peça Il Primo Miraculo, de Dario Fo*, satiriza os valores da sociedade, a
partir da história bíblica, mas sem nenhuma conotação religiosa. A montagem cria
uma relação cômica e sarcástica da infância de Jesus, com questões polêmicas como
a opressão, o racismo, a fome e o exílio, expondo as relações de poder e as
várias formas de segregação. Tenho a impressão de que não se teme
mais nada. Tínhamos constantes na vida o “temor reverencial”.
Na televisão hoje é comum surgir
uma série de frases polêmicas em que o sagrado é "profanado" por
ditos e feitos, agora inseridos nas conversas do quotidiano. É comum se ouvir "joguei
pedra na cruz", "salguei a Santa Ceia" e os mais inesperados contrassensos
das falas do personagem, como fruto de uma vertente de humor sarcástico e ácido
que alguns consideram desrespeitos e blasfêmias.
Nesta linha de contrapor o sagrado ao
profano com picardia e
humor amargo, para demonstrar o sofrimento (merecido, no sentir do escritor, tal a
injúria e a profanação do sagrado), o autor contrapõe o absurdo inominável da
ação ao consequente castigo. Assim, muitas expressões vão surgindo, ao gosto e
à imaginação popular, dando provas da versatilidade e da dinâmica linguística. Muitas
vezes a criatividade extrapola os limites e nos assusta. Das mais remotas eras,
surgiram gírias das diversas categorias de trabalho e profissões, de povos
nômades, de ciganos, com os seus jargões, os calões, os falares das galés e dos
presídios etc. Assim é a língua viva, ora dinamizada
pelo humor, pela irreverência, pelas ondas recentes dos stands ups, ou pela
riqueza de recursos e imaginação. Vemos um personagem carismático insuflado
pela inspiração do autor, de humor cáustico, cruel e às vezes requintado. A ironia transborda e quase
não há mais limites. Não há medo... Rir de tudo porque tudo é provisório e,
portanto, pode ser debochado. Programas de humor, pegadinhas, cenas cômicas, ridicularização
de pessoas e situações nos telejornais sensacionalistas são alguns exemplos do
que acontece.
Um dos fatores que subverte e confunde
os ritos é a desorganização dos sinais, colocados de modo artificial,
imprevisível e sem ordem, causando a sensação de fragmentação, incompletude e
imperfeição. A esse fator soma-se a ambiguidade da interpretação presente nos
jogos de palavras, nos contrastes nas narrativas alegóricas que acontecem na
comunicação. Isso se observa na decodificação das obras de arte, na
desconstrução no mundo das artes visuais, nas intervenções no que era óbvio e
comum, nas interferências em textos, na ficção, jornais, produção estética,
etc.
Nessa realidade comunicativa de ambiguidade
existe uma luta entre a presença do caos, da desconexão e a necessidade de
processos significativos. Com isso, o que está em jogo é a sobrevivência do
rito e do rito religioso, que em si parece funcionar como fiador da ordem, da
organização e da coerência, diante da incoerência e fragmentação da sociedade
do espetáculo. O rito religioso ressente-se da mesma fragmentação e perda de
identidade a que estão sujeitas todas as performances que garantem o espetáculo
midiático. Aparecem como uma série de momentos desconectados e sem coordenação.
Igualmente a vida parece uma sucessão de episódios, nenhum dos quais
definitivos. Vai se levando tudo na gozação e na ironia. Nada como rir de si
mesmo.
Nessa
linha recente de intervenções e recriação linguística podemos ouvir o que nos
causa espanto e “riso”, através dos bordões, combinações e contrastes: “tomei caipirinha no Santo Graal”, “ fiz
chapinha nos cachos de Sansão”, “ensinei funk a Salomé” ,“dei caldo em São João
Batista no Rio Jordão”, "fiz confete com os papiros do Mar Morto",
"bati bife nas tábuas da Lei", “fiz pole dance na Santa Cruz”, “ surfei
no rio Jordão”, “colei chiclete na cruz”,“manchei o Manto Sagrado”, “entornei
vinho na toalha de mesa da Santa Ceia”, “cortei os cachos de Sanção”, “ pus a
corda no pescoço de Judas e fiquei com os trinta dinheiros”, “joguei água na
estátua de sal”,“rasguei os Dez Mandamentos”, “escondi as botas de Judas”
“tirei a bengala do cego de Jericó”, “ roubei as sandálias do bom samaritano”, “
lavei a cueca na manjedoura”, “ cobrei pedágio na via crucis”, “fiz churrasco com a
única vaca da Barca de Noé”, “cobrei pedágio dos reis magos” etc.
Pois
bem... Li na internet esta semana: “uma famosa lanchonete de Chicago (Estados Unidos) gerou uma
grande polêmica com a comunidade católica da cidade ao oferecer o
"Hambúrguer do Espírito Santo", que inclui entre seus ingredientes
uma hóstia junto às batatas, molhos e carne. Em sua página do Facebook, a
lanchonete explica que o "Ghost Burger" (alusão ao Espírito Santo)
inclui pimenta, queijo cheddar branco “vinho tinto reduzido (o sangue de
Cristo) e hóstia (o corpo de Cristo)". Pois é... Não é de hoje que a coisa
vem degringolando. A hóstia que acompanha o hambúrguer bovino, explica a
lanchonete, para se defender, não é benta, mas tem o símbolo da cruz”.
Só posso repetir: valha-me Deus, Nosso
Senhor! Não há mais
o medo, o respeito e a reverência ao sagrado. Quanta invencionice! É o apocalipse!
Valéria Áureo
*Prêmio
Nobel de literatura, Dario Fo (1926) ator, mímico e palhaço. Dario Fo improvisa
perante a plateia, numa mistura de dialetos italianos, onomatopeias e palavras
inventadas. O alvo mais polêmico das sátiras de Fo é a burocracia da Igreja
Católica. A comédia era baseada no grammelot, uma língua inventada por Fo
baseada na mistura de fonemas modernos e dialetos em desuso da região padana,
ao Norte da península Itálica.