Apresentação

Total de visualizações de página

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Pelas barbas do profeta, pelos cachos de Sansão e outras invencionices!

                                                                     Fonte: Internet






         Pelas barbas do profeta! Dizia-se por espanto, juramento ou garantia de avalista. Valha-me Deus, Nosso Senhor, pois o mundo está perdido, ou está para acabar; é pedido de socorro! Benditas invocações sacras!... São Jerônimo e Santa Bárbara protejam-me contra relâmpagos, raios e trovões.

        É comum que se utilize o reforço do que é sábio e do que é sagrado, para firmar e ratificar a vontade e dar peso à palavra e súplica do homem comum. Evocava-se Deus para se afastar o medo atávico, instintivo e irracional. O medo animal e primitivo. O medo do desconhecido que acometeu Moisés ante a visão da sarça ardente e a voz de Deus... O medo das forças invisíveis, quando prudente era persignar-se pelo sinal da Santa Cruz, para afastar o mal. Valei-me, Nosso Senhor! Palavras, a nossa matéria prima, a expressão da alma, o verbo e o reflexo do ser pensante. Palavras e água benta, para a purificação.

        Recentemente se vê o uso de expressões "divertidas", inspiradas no contraste, ou mesmo no choque (absurdo) do que é sagrado e do que é profano, de tal maneira que provoque o estranhamento e consequentemente o riso. Isto não é recente. O fenômeno de provocar o riso já era conhecido em evento na Igreja, na cerimônia do risus pascalis, após o luto e o sofrimento vividos na Semana Santa, quando se recomendava, por gestos e palavras aos devotos, a volta à vida, à alegria, aos prazeres e aos costumes e hábitos do quotidiano.

        Antes de tudo, é prudente estabelecer a diferença entre os termos sagrado e profano, especialmente porque esse último é compreendido pelo senso comum de maneira pejorativa. Por vezes, esse termo é abarcado como oposto, ou contrário ao sagrado e, portanto, distante do divino, do misterioso. No entanto, o termo profano deve ser entendido como aquilo que não é sagrado. Mas o que é o sagrado? Segundo Jorge Simões, na obra Cultura Religiosa: o homem e o fenômeno religioso, Otto define o sagrado como um mysterium tremendum et fascinans, mistério tremendo e fascinante, ou seja, o sagrado envolve “um duplo movimento espiritual. De um lado, o medo, o respeito, a reverência e, de outro, a atração, a alegria, a confiança” Em outras palavras, provoca o temor e a fascinação, é um mistério tremendo e fascinante, provoca temor e inspira confiança. “é um amor que teme e um temor que ama”.

        De forma “divertida” e irreverente, a peça Il Primo Miraculo, de Dario Fo*, satiriza os valores da sociedade, a partir da história bíblica, mas sem nenhuma conotação religiosa. A montagem cria uma relação cômica e sarcástica da infância de Jesus, com questões polêmicas como a opressão, o racismo, a fome e o exílio, expondo as relações de poder e as várias formas de segregação. Tenho a impressão de que não se teme mais nada. Tínhamos constantes na vida o “temor reverencial”.

        Na televisão hoje é comum surgir uma série de frases polêmicas em que o sagrado é "profanado" por ditos e feitos, agora inseridos nas conversas do quotidiano. É comum se ouvir "joguei pedra na cruz", "salguei a Santa Ceia" e os mais inesperados contrassensos das falas do personagem, como fruto de uma vertente de humor sarcástico e ácido que alguns consideram desrespeitos e blasfêmias.

        Nesta linha de contrapor o sagrado ao profano com picardia e humor amargo, para demonstrar o sofrimento (merecido, no sentir do escritor, tal a injúria e a profanação do sagrado), o autor contrapõe o absurdo inominável da ação ao consequente castigo. Assim, muitas expressões vão surgindo, ao gosto e à imaginação popular, dando provas da versatilidade e da dinâmica linguística. Muitas vezes a criatividade extrapola os limites e nos assusta. Das mais remotas eras, surgiram gírias das diversas categorias de trabalho e profissões, de povos nômades, de ciganos, com os seus jargões, os calões, os falares das galés e dos presídios etc. Assim é a língua viva, ora dinamizada pelo humor, pela irreverência, pelas ondas recentes dos stands ups, ou pela riqueza de recursos e imaginação. Vemos um personagem carismático insuflado pela inspiração do autor, de humor cáustico, cruel e às vezes requintado. A ironia transborda e quase não há mais limites. Não há medo... Rir de tudo porque tudo é provisório e, portanto, pode ser debochado. Programas de humor, pegadinhas, cenas cômicas, ridicularização de pessoas e situações nos telejornais sensacionalistas são alguns exemplos do que acontece.

        Um dos fatores que subverte e confunde os ritos é a desorganização dos sinais, colocados de modo artificial, imprevisível e sem ordem, causando a sensação de fragmentação, incompletude e imperfeição. A esse fator soma-se a ambiguidade da interpretação presente nos jogos de palavras, nos contrastes nas narrativas alegóricas que acontecem na comunicação. Isso se observa na decodificação das obras de arte, na desconstrução no mundo das artes visuais, nas intervenções no que era óbvio e comum, nas interferências em textos, na ficção, jornais, produção estética, etc.

        Nessa realidade comunicativa de ambiguidade existe uma luta entre a presença do caos, da desconexão e a necessidade de processos significativos. Com isso, o que está em jogo é a sobrevivência do rito e do rito religioso, que em si parece funcionar como fiador da ordem, da organização e da coerência, diante da incoerência e fragmentação da sociedade do espetáculo. O rito religioso ressente-se da mesma fragmentação e perda de identidade a que estão sujeitas todas as performances que garantem o espetáculo midiático. Aparecem como uma série de momentos desconectados e sem coordenação. Igualmente a vida parece uma sucessão de episódios, nenhum dos quais definitivos. Vai se levando tudo na gozação e na ironia. Nada como rir de si mesmo.

        Nessa linha recente de intervenções e recriação linguística podemos ouvir o que nos causa espanto e “riso”, através dos bordões, combinações e contrastes:  “tomei caipirinha no Santo Graal”, “ fiz chapinha nos cachos de Sansão”, “ensinei funk a Salomé” ,“dei caldo em São João Batista no Rio Jordão”, "fiz confete com os papiros do Mar Morto", "bati bife nas tábuas da Lei", “fiz pole dance na Santa Cruz”, “ surfei no rio Jordão”, “colei chiclete na cruz”,“manchei o Manto Sagrado”, “entornei vinho na toalha de mesa da Santa Ceia”, “cortei os cachos de Sanção”, “ pus a corda no pescoço de Judas e fiquei com os trinta dinheiros”, “joguei água na estátua de sal”,“rasguei os Dez Mandamentos”, “escondi as botas de Judas” “tirei a bengala do cego de Jericó”, “ roubei as sandálias do bom samaritano”, “ lavei a cueca na manjedoura”, “ cobrei pedágio na via crucis”, “fiz churrasco com a  única vaca da Barca de Noé”, “cobrei pedágio dos reis magos” etc.

        Pois bem... Li na internet esta semana: “uma famosa lanchonete de Chicago (Estados Unidos) gerou uma grande polêmica com a comunidade católica da cidade ao oferecer o "Hambúrguer do Espírito Santo", que inclui entre seus ingredientes uma hóstia junto às batatas, molhos e carne. Em sua página do Facebook, a lanchonete explica que o "Ghost Burger" (alusão ao Espírito Santo) inclui pimenta, queijo cheddar branco “vinho tinto reduzido (o sangue de Cristo) e hóstia (o corpo de Cristo)". Pois é... Não é de hoje que a coisa vem degringolando. A hóstia que acompanha o hambúrguer bovino, explica a lanchonete, para se defender, não é benta, mas tem o símbolo da cruz”.

        Só posso repetir: valha-me Deus, Nosso Senhor! Não há mais o medo, o respeito e a reverência ao sagrado. Quanta invencionice! É o apocalipse!



Valéria Áureo


*Prêmio Nobel de literatura, Dario Fo (1926) ator, mímico e palhaço. Dario Fo improvisa perante a plateia, numa mistura de dialetos italianos, onomatopeias e palavras inventadas. O alvo mais polêmico das sátiras de Fo é a burocracia da Igreja Católica. A comédia era baseada no grammelot, uma língua inventada por Fo baseada na mistura de fonemas modernos e dialetos em desuso da região padana, ao Norte da península Itálica.