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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Daguerre e Paz









Diáfana fotografia à luz da lamparina /esculpida pela sombra/ na parede torta...
Meu pai assobia, o canário canta. / Olho pessegueiros cheios de flores/ e a ventarola assovia. Meus ouvidos são conchas submersas, / colhendo pérolas nas paredes. / Quero ouvir passarinhos... / Ouço a folharada seca, / espessa, posta em fantasia pelo vento. / Não conheço gardênias. / Peregrino de jardins, / ouço meu pai assobiando. / E o melro canta. / No meu coração há espaço para tanto
Difícil voltar a escrever, meu coração ainda dói muito e todos que já perderam alguém compreenderão o que falo. Eu me solidarizava com a dor das outras pessoas, mas não compreendia verdadeiramente a dor. Passei a saber agora sentindo, porque é minha e tem que ser vivida por mim.
Falava quase diariamente com meu pai ao telefone. Falávamos sobre tudo, principalmente sobre a vida e poesia. Na véspera de sua morte ligou para se despedir de mim, assim como fez com muitas pessoas que encontrou na sua última ida a Rio Pomba.
- Estou de partida, declarou. Tomou seu último sorvete e retornou a Silveirânia. Rezou, acendeu uma vela e disse à minha mãe que estava pronto. Sabia que ia morrer.
 Deu-me os mesmos conselhos, como se eu ainda fosse a pequena menina,  porque para os pais nunca crescemos: - Minha filha, se quer mesmo ser escritora continue estudando, não pare nunca; leia muito, leia tudo, principalmente filosofia. Ah! Vou lhe dar um dicionário, ele tem que ser a sua “bíblia”...
Suas últimas palavras reverberam dolorosamente no meu coração: - Leia! Leia! Leia! E desligou, interrompendo o eco que se propagava entre a sua cidade e a minha; e eu nem imaginava que era a última vez que escutava sua voz.
 Na nossa infância era assim que ele fazia. Assoviava músicas clássicas, enquanto trabalhava horas intermináveis, como se buscasse motivos para enternecer suas mãos e assim suavizar rugas, cansaço e sofrimentos dos rostos que retocava. Era uma “fraude” desejável e perdoável; ser mais desenhista que fotógrafo, para poder interferir livremente na rigidez do tempo retratado. Desenhava minimamente sobre a imagem, conferindo belezas, violando a rígida eficácia da luz sobre o filme. Maneira generosa de burlar a severidade das formas e interferir na imagem. Retirava generosamente imperfeições que a vida pudesse conferir e fazia o rosto mais jovem, mais feliz. Era arte, desenho e inspiração. Fotografar é escrever com a luz.
Desenhista, fotógrafo, pai... Bravo e bravo pai, nas duas acepções da palavra... Enérgico e valente pai... Colocava-nos em torno da mesa ampla da cozinha, onde toda a filharada se sentava. Oito filhos e a nossa mãe do lado, reunidos para ouvir suas lições. Não tínhamos televisão, ou qualquer outro apelo, capaz de desviar o sentido didático dos finais de tarde sustentados por sua brilhante retórica. Suas aulas eram bem na hora da Ave-maria, e devia ser mesmo sua forma de fazer oração, cumprindo com amor sua missão de pai. Fazia disso um ofício prazeroso, muito maior que a acadêmica responsabilidade da escola. Educar-nos era, antes de tudo, uma obrigação sua, pensava. Hoje até posso reconhecê-lo como um preceptor notável, desses que só os mais nobres tinham. Era em nossa casa que devíamos aprender e assim fomos habituados a ouvi-lo e a ler a Enciclopédia Delta Larousse, na ocasião moderníssima fonte de toda informação que precisássemos. Palavras como ética, moral, religião, verdade, justiça, honra, preconceito e tantas outras eram quase diariamente ditas por ele e digeridas minuciosamente por nós. Insistia em nos fazer compreender, ouvir, corrigir, argumentar, concluir. Sempre afirmava categórico: - Pobre tem que estudar vinte e cinco horas por dia. Se o dia só tem vinte e quatro horas, deem um jeito e arranjem mais uma.
Hoje entendemos o que é ser órfão. É o que somos agora, seus oito filhos, e nos sentimos meninos pequenos, desprotegidos, desvalidos. Não posso negar que tenha sido um homem polêmico, muitas vezes duro, severo, exigente, características muito marcantes de sua personalidade. Mas nunca se poderá dizer que foi um homem indiferente. Sua visão do mundo oscilava entre o pessimismo de Schopenhauer, e o trágico de Nietzsche, o que nos revelava aos poucos que não estávamos diante de um homem comum, que parecia prever os rumos do mundo. Não se contentava em viver, mas questionava, como o grande pensador que sempre foi, a própria existência. Chegou ao final dos seus dias com a mesma força de pensamentos de outrora; lúcido, engajado, exercendo o seu direito de voto, criticando, cobrando, questionando o sistema e indignando-se com as injustiças. Tinha sua forma peculiar de amar e respeitar seu Deus, hermeticamente escondida pela caridade, porque não suportava o sofrimento e a miséria. Embora de gênio forte, muitas vezes incompreendido, posso, todavia, enumerar mil outras qualidades, muito mais notáveis, entre as quais a sensibilidade, a lealdade aos amigos, o gosto estético, o senso de justiça e o apreço pela verdade. Daquelas características mais incompreensíveis para quem não o conhecia intimamente, talvez se pudesse concluir erroneamente pela desmedida severidade... Entretanto, nem mesmo ela, a severidade, comprometeu o exacerbado amor e respeito que sentimos por ele. Apregoou a união entre nós e ainda temos necessidade de nos reunir em torno da nossa mesa “escola”. Exigia de nós nobreza de caráter, dignidade e justiça. Quase nos exigia a perfeição e, durante a vida toda, nos esforçamos de maneira exasperada para não decepcioná-lo. Era difícil, para cada um de nós, ser filho de nosso pai, mas como foi honroso e como valeu a pena!... Acho que conseguimos não a inaccessível perfeição que ele exigia de nós, mas crescer e amadurecer com dignidade num mundo tão desprovido de valores. Teve um final tranquilo, porque pôde auferir do que plantou. Quero isto também para mim: Chegar ao final de minha vida e poder ver meus filhos vitoriosos homens de bem.
No último telefonema declarou: - Minha filha, eu acho que Deus se esqueceu de mim, numa queixa ao seu cansaço físico dos 87 anos, que ele dizia 89 e, principalmente, numa evidente inadequação aos dias de hoje. Estava muito insatisfeito com o destino da humanidade, porque nunca abandonou suas reflexões existenciais. Era um humanista. É isto, o velho Daguerre sabia que o mundo, com suas recentes concessões, permissões e inserções de “não valores”, estava cada vez mais inadequado para ele. Era mesmo melhor partir...
 Do Zoberto restarão palavras contestadoras; restarão ideias e irretocáveis fotografias, tiradas no inesquecível “Foto Daguerre” concebidas ao estilo Rembrandt, num exercício de arte e luz, onde procurava enaltecer no rosto de cada um que retratava o seu melhor atributo. Restarão pela cidade as inúmeras casas que desenhou em cujas fachadas sempre quis agregar jardins e flores e disfarçados encantamentos, onde se materializavam sonhos e arquiteturas de lares e famílias. Restarão intermináveis declarações de amor que nos fizemos ao longo de nossas vidas e ecoarão para sempre suas últimas palavras: - Leia! Leia! Leia! Estude! Principalmente filosofia. Ah! Vou lhe comprar um dicionário...
Lamentável, fiquei sem seu dicionário com dedicatória.
De bem material trouxe comigo o que penso me bastar: um par de meias de meu querido pai, que calçarei toda vez que sentir muito frio e toda vez que eu não souber por onde, nem para onde ir, na esperança de que ele possa me mostrar a direção... 
Meu pai assobia, o canário canta/ no meu coração há espaço para tanto... /
Incrível, mas seu canarinho belga, em compasso com o coração dele, na mesma semana também morreu. Quem sabe irremediavelmente saudoso de ouvir seus assovios, ou também por sentir-se inadequado para gaiolas e o mundo atual. Para compensar a dor de seus filhos, as borboletas chegaram ao meu jardim... Vou tentar prosseguir apreciando flores, ouvindo pássaros, percorrendo meu caminho sem os seus conselhos, sem as suas ideias, sem o seu amor...
É isto, velho e admirável Zoberto. Pai bravo... BRAVO pai... Vou copiar Nietzsche e dizer: “Eis o homem”...
Ah! Sabem como sempre nos despedíamos? Eu te amo. “Ne me quitte pas...” Inevitável, teve que me deixar.

Valéria Áureo – novembro de 2004