Diáfana fotografia
à luz da lamparina /esculpida pela sombra/ na parede torta...
Meu pai assobia, o canário canta.
/ Olho pessegueiros cheios de flores/ e a ventarola assovia. Meus ouvidos são
conchas submersas, / colhendo pérolas nas paredes. / Quero ouvir passarinhos...
/ Ouço a folharada seca, / espessa, posta em fantasia pelo vento. / Não conheço
gardênias. / Peregrino de jardins, / ouço meu pai assobiando. / E o melro
canta. / No meu coração há espaço para tanto
Difícil
voltar a escrever, meu coração ainda dói muito e todos que já perderam alguém
compreenderão o que falo. Eu me solidarizava com a dor das outras pessoas, mas
não compreendia verdadeiramente a dor. Passei a saber agora sentindo, porque é
minha e tem que ser vivida por mim.
Falava quase
diariamente com meu pai ao telefone. Falávamos sobre tudo, principalmente sobre
a vida e poesia. Na véspera de sua morte ligou para se despedir de mim, assim
como fez com muitas pessoas que encontrou na sua última ida a Rio Pomba.
- Estou de
partida, declarou. Tomou seu último sorvete e retornou a Silveirânia. Rezou,
acendeu uma vela e disse à minha mãe que estava pronto. Sabia que ia morrer.
Deu-me os mesmos conselhos, como se eu ainda
fosse a pequena menina, porque para os
pais nunca crescemos: - Minha filha, se quer mesmo ser escritora continue
estudando, não pare nunca; leia muito, leia tudo, principalmente filosofia. Ah!
Vou lhe dar um dicionário, ele tem que ser a sua “bíblia”...
Suas últimas
palavras reverberam dolorosamente no meu coração: - Leia! Leia! Leia! E
desligou, interrompendo o eco que se propagava entre a sua cidade e a minha; e
eu nem imaginava que era a última vez que escutava sua voz.
Na nossa infância era assim que ele fazia.
Assoviava músicas clássicas, enquanto trabalhava horas intermináveis, como se
buscasse motivos para enternecer suas mãos e assim suavizar rugas, cansaço e
sofrimentos dos rostos que retocava. Era uma “fraude” desejável e perdoável;
ser mais desenhista que fotógrafo, para poder interferir livremente na rigidez
do tempo retratado. Desenhava minimamente sobre a imagem, conferindo belezas,
violando a rígida eficácia da luz sobre o filme. Maneira generosa de burlar a
severidade das formas e interferir na imagem. Retirava generosamente
imperfeições que a vida pudesse conferir e fazia o rosto mais jovem, mais
feliz. Era arte, desenho e inspiração. Fotografar é escrever com a luz.
Desenhista,
fotógrafo, pai... Bravo e bravo pai, nas duas acepções da palavra... Enérgico e
valente pai... Colocava-nos em torno da mesa ampla da cozinha, onde toda a
filharada se sentava. Oito filhos e a nossa mãe do lado, reunidos para ouvir
suas lições. Não tínhamos televisão, ou qualquer outro apelo, capaz de
desviar o sentido didático dos finais de tarde sustentados por sua brilhante
retórica. Suas aulas eram bem na hora da Ave-maria, e devia ser mesmo sua forma
de fazer oração, cumprindo com amor sua missão de pai. Fazia disso um ofício
prazeroso, muito maior que a acadêmica responsabilidade da escola. Educar-nos
era, antes de tudo, uma obrigação sua, pensava. Hoje até posso reconhecê-lo
como um preceptor notável, desses que só os mais nobres tinham. Era em nossa
casa que devíamos aprender e assim fomos habituados a ouvi-lo e a ler a
Enciclopédia Delta Larousse, na ocasião moderníssima fonte de toda informação
que precisássemos. Palavras como ética, moral, religião, verdade, justiça,
honra, preconceito e tantas outras eram quase diariamente ditas por ele e
digeridas minuciosamente por nós. Insistia em nos fazer compreender, ouvir,
corrigir, argumentar, concluir. Sempre afirmava categórico: - Pobre tem que
estudar vinte e cinco horas por dia. Se o dia só tem vinte e quatro horas, deem
um jeito e arranjem mais uma.
Hoje
entendemos o que é ser órfão. É o que somos agora, seus oito filhos, e nos
sentimos meninos pequenos, desprotegidos, desvalidos. Não posso negar que tenha
sido um homem polêmico, muitas vezes duro, severo, exigente, características
muito marcantes de sua personalidade. Mas nunca se poderá dizer que foi um
homem indiferente. Sua visão do mundo oscilava entre o pessimismo de
Schopenhauer, e o trágico de Nietzsche, o que nos revelava aos poucos que não
estávamos diante de um homem comum, que parecia prever os rumos do mundo. Não
se contentava em viver, mas questionava, como o grande pensador que sempre foi,
a própria existência. Chegou ao final dos seus dias com a mesma força de
pensamentos de outrora; lúcido, engajado, exercendo o seu direito de voto,
criticando, cobrando, questionando o sistema e indignando-se com as injustiças.
Tinha sua forma peculiar de amar e respeitar seu Deus, hermeticamente escondida
pela caridade, porque não suportava o sofrimento e a miséria. Embora de gênio
forte, muitas vezes incompreendido, posso, todavia, enumerar mil outras
qualidades, muito mais notáveis, entre as quais a sensibilidade, a lealdade aos
amigos, o gosto estético, o senso de justiça e o apreço pela verdade. Daquelas
características mais incompreensíveis para quem não o conhecia intimamente,
talvez se pudesse concluir erroneamente pela desmedida severidade...
Entretanto, nem mesmo ela, a severidade, comprometeu o exacerbado amor e
respeito que sentimos por ele. Apregoou a união entre nós e ainda temos
necessidade de nos reunir em torno da nossa mesa “escola”. Exigia de nós
nobreza de caráter, dignidade e justiça. Quase nos exigia a perfeição e,
durante a vida toda, nos esforçamos de maneira exasperada para não
decepcioná-lo. Era difícil, para cada um de nós, ser filho de nosso pai, mas
como foi honroso e como valeu a pena!... Acho que conseguimos não a
inaccessível perfeição que ele exigia de nós, mas crescer e amadurecer com
dignidade num mundo tão desprovido de valores. Teve um final tranquilo, porque
pôde auferir do que plantou. Quero isto também para mim: Chegar ao final de
minha vida e poder ver meus filhos vitoriosos homens de bem.
No último
telefonema declarou: - Minha filha, eu acho que Deus se esqueceu de mim, numa
queixa ao seu cansaço físico dos 87 anos, que ele dizia 89 e, principalmente,
numa evidente inadequação aos dias
de hoje. Estava muito insatisfeito com o destino da humanidade, porque nunca
abandonou suas reflexões existenciais. Era um humanista. É isto, o velho
Daguerre sabia que o mundo, com suas recentes concessões, permissões e
inserções de “não valores”, estava cada vez mais inadequado para ele. Era mesmo melhor partir...
Do Zoberto restarão palavras contestadoras;
restarão ideias e irretocáveis fotografias, tiradas no inesquecível “Foto
Daguerre” concebidas ao estilo Rembrandt, num exercício de arte e luz, onde
procurava enaltecer no rosto de cada um que retratava o seu melhor atributo.
Restarão pela cidade as inúmeras casas que desenhou em cujas fachadas sempre
quis agregar jardins e flores e disfarçados encantamentos, onde se
materializavam sonhos e arquiteturas de lares e famílias. Restarão
intermináveis declarações de amor que nos fizemos ao longo de nossas vidas e
ecoarão para sempre suas últimas palavras: - Leia! Leia! Leia! Estude! Principalmente
filosofia. Ah! Vou lhe comprar um dicionário...
Lamentável,
fiquei sem seu dicionário com dedicatória.
De bem
material trouxe comigo o que penso me bastar: um par de meias de meu querido
pai, que calçarei toda vez que sentir muito frio e toda vez que eu não souber
por onde, nem para onde ir, na esperança de que ele possa me mostrar a
direção...
Meu pai
assobia, o canário canta/ no meu coração há espaço para tanto... /
Incrível, mas
seu canarinho belga, em compasso com o coração dele, na mesma semana também
morreu. Quem sabe irremediavelmente saudoso de ouvir seus assovios, ou também
por sentir-se inadequado para
gaiolas e o mundo atual. Para compensar a dor de seus filhos, as borboletas
chegaram ao meu jardim... Vou tentar prosseguir apreciando flores, ouvindo
pássaros, percorrendo meu caminho sem os seus conselhos, sem as suas ideias,
sem o seu amor...
É isto, velho
e admirável Zoberto. Pai bravo... BRAVO
pai... Vou copiar Nietzsche e dizer: “Eis o homem”...
Ah! Sabem como sempre nos despedíamos? Eu te amo. “Ne me quitte pas...”
Inevitável, teve que me deixar.
Valéria Áureo – novembro de 2004