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sábado, 16 de dezembro de 2017

O Encontro com Rêve ( encontro à meia-noite)


Januário entupia o estômago de comida, se embriagava, xingava, badernava, beijava as mulheres, amaldiçoava os homens, batia o carro e se desculpava: - É Natal, tempo de alegria!... E assim foram mais seis dias de comemorações e embriaguez, alternando os últimos dias do ano. Árvores, enfeites, presentes, bebida, comida, muita comida... Não havia lugar para as preces e o perdão. Ele vivia uma desmedida solidão. Sua vida nunca tivera sentido e nunca clamava por Deus, Nosso Senhor...
Januário clamava por uma noite de sono, depois de dias de intensa comemoração e folia. O corpo já não suportava os desmandos da cabeça vazia. Finalmente ele assumiu estar no limite da exaustão. Januário dizia estar no bagaço...
- Acorda, está na hora. Um toque suave de mão leve e fria nos pés de Januário adormecido o fez estremecer. Está na hora, vem comigo, vibrava a voz sussurrante e morna em seus ouvidos!... São 11 horas e quarenta e cinco minutos... Não tenho mais tempo, ou vou ter que arrastá-lo pelos cabelos?
- Ei, que é isso? Quem é você? Ir para aonde, a estas horas da noite? Eu quero é dormir! Deixe-me quieto, porque preciso descansar. Suma logo daqui, com esse hálito macabro, que estou perdendo a paciência. E Januário voltou a ressonar, variando entre a lucidez e o sonho.
- Já dormiu demais nessa vida, falou o jovem sacudindo-o com força. E vai ter todo o resto para descansar. Agora é hora de sair comigo. Vamos embora, que tenho gente para levar. Vamos parar com essa indolência e sair logo daqui, porque nosso compromisso é inadiável. Estamos perdendo preciosos minutos, não vê?...
Januário, mais desperto, olhou apavorado para o desconhecido que o apalpava com a mão fria; na outra mão ele segurava uma taça de champanhe e falava:
- Nosso encontro está marcado, desde sempre. É uma data prevista, marcada no calendário. Deixa de inventar pretextos para não me companhar!... Chegou a hora! Já estou perdendo a paciência! Tenho muito que fazer.
- Chegou a hora! Chegou a hora de que, afinal? Januário arregalou os olhos assombrados. O coração acelerado fazia seu corpo estremecer, a ponto de ter um infarto. Não vá me dizer que... Não! Não pode ser!... Não, eu não vou com você a lugar nenhum. Afinal, que roupa é essa que está usando? Você não é aquela mulher que só usa roupa preta e um capuz a lhe esconder a face desgraçada? Mãos magras, unhas longas e dedos finos e firmes a empunhar uma foice afiada? Ou vai me dizer que a dama maldita de negro também é transformista?... Não me admira nada. Um terno branco, alinhado, engomado, na maior estica!... Virou homem, é?... O mundo está mesmo virado. Até a “indesejada das gentes” não é mais a mesma. Vou nada! Está louco?
- Mas o que é que você está inventando agora? Não fantasie motivos para não me acompanhar. Trate de se levantar e se arrumar em cinco mintos, pois a hora está chegando. Meia-noite é o meu tempo exato de... Meia-noite e nem mais um segundo! Aliás, meia-noite, nem mais e nem menos. Eu sou preciso como um cronômetro.
- Nem amarrado eu saio daqui. Está louco? Só saio daqui morto, está ouvindo? Bem, morto não! Nem morto eu saio daqui; nem morto! Sai pra lá, Dona morte! Sai pra lá em busca de outro distraído, porque eu não vou, de jeito nenhum! Valei-me Nossa Senhora, São Pedro e São João! Valei-me e me livre dessa maldição! E retirou-se voando, rezando, gritando escada abaixo, em direção à rua toda iluminada.
- Mas que sujeito louco esse Januário! De onde tirou a ideia de que sou a morte? Sou Rêve, o Ano Novo. Eu só queria levá-lo a 2018.

Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes