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terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Metafísica do Amor





                                                      Ilustração: Fonte Internet


          - Você me dá o seu coração? Você me dá o seu coraçãozinho?


          Eu nem me atrevi a olhar para o lado e interromper o idílio entre duas pessoas apaixonadas. Permaneci  imóvel e em silêncio. Seriam dois jovens descobrindo o primeiro amor? Ternuras trocadas com olhares lânguidos e promissores de beijos juvenis?... Pensei no amor de juventude, que acomete a todos. Pensei em todas as suas possibilidades... Amor, entrega e paixão.


          Ele repetiu: - Você me dá o seu coraçãozinho? Fui além em meus devaneios e pensei no amor e na sexualidade. A metafísica do amor... Ele queria uma entrega absoluta; a entrega do coração.  Não sei se pedia a alma, mas tenho certeza que desejava o corpo com todas as suas minúcias e os seus sentimentos. E, para minimizar essa entrega, esse desprendimento radical da mulher amada, ele usava o diminutivo do coração. Pedia da amada a renúncia do próprio ser, tão poderosa e dizia: me dá o seu coraçãozinho?... Com o coração viriam os braços, as pernas, as coxas, os seios, os lábios?...


          Lembrei-me das lições de Schopenhauer, que traçou uma investigação sobre a sexualidade humana baseada na metafísica da vontade, articulada às suas observações da vida. Ele apresenta o amor como um instrumento da vontade, e não de uma escolha pessoal ou racional.Sua conclusão pode chocar as concepções mais otimistas e ingênuas sobre o amor, pois a paixão nada mais é que estratagemas da vontade da natureza, ou espécie, impostas à vontade dos indivíduos. Os indivíduos acreditam que têm alguma vantagem pessoal no prazer físico e que escolhem racionalmente seus pares. Na verdade, diz Schopenhauer, eles são marionetes do gênio da espécie, um grande manipulador que se esforça por iludir os amantes com o gozo físico, ou mesmo com beleza visual que só o apaixonado enxerga. Tal fascínio atende ao propósito da conservação da espécie, que também é a perpetuação do sofrimento, através do nascimento no mundo dos fenômenos.


           E, enquanto eu voava em minhas considerações sobre o amor e suas dores, doçuras e vicissitudes, novamente eu o ouvia dizer:


          - Vai me dar o seu coraçãozinho? Vai me dar?...


          Ele repetia e ela dava risadinhas quase pueris. Devia estar enrubescida, tímida, mãos suadas e frias.


          Ah! O amor e suas peripécias... Um segredo aqui, um beijo roubado ali,  ciúmes e mais ciúmes acolá. E lá se iam os pares de mãos dadas, buscando o infinito. Amor cego, amor surpreendente, amor das idades mais inquietantes: alvoroços, suspiros, risos, afagos e lágrimas.


          - Você me dá o seu coraçãozinho, ou terei que roubar?


          Ela não respondia, apenas ria... Ele insistia: - vou roubar seu coraçãozinho!...


          Notei que o impasse se alongava e a moça não se decidia em dar o coração ao apaixonado. Decidi olhar para o casal embevecido em ternuras, com certa inveja... Também eu sou sonhadora. Eu também queria ter um amor assim, de entrega absoluta e visceral do próprio coração... Senti inveja da mulher da mesa ao lado.
          O homem com um golpe certeiro e definitivo espetou o garfo em um coraçãozinho frito no prato da mulher e o abocanhou de uma só vez.


          Ah! O amor é surpreendente.


Valéria Áureo
In: Conjugando O Amor Líquido


08/09/2017

domingo, 6 de agosto de 2017

Gelosia - O que vai na alma?


 


                                                    Ilustração: Fonte Internet


 

- Em que você está pensando? Olha para mim... Dentro dos meus olhos.

 - Eu? Não penso em nada especificamente. Penso nas questões do dia-a-dia. Casa, filhos, o que fazer para o jantar; nada de especial. Como posso olhar para você e dobrar a roupa, ao mesmo tempo?... O que você quer?

   - E por que você está com esse olhar perdido? Aconteceu alguma coisa? Onde estão os seus pensamentos?

- Como assim, olhar perdido? Estou olhando para as roupas. Estou atenta, ocupada, não está vendo? Lavo, passo, dobro, guardo a roupa toda. Quer me ajudar?

- Olhar assim, perdido, como se estivesse pensando em alguém...

- Mas não estou pensando em ninguém! De onde tirou isto agora? Estou ocupada, não me venha com besteiras! Não tenho tempo para conversa sem sentido. Ajude aqui, que será mais útil!

-De onde eu tirei? Você não me engana, com esses olhos perdidos e esse sorriso escondido.

- Não vá começar de novo com essa bobagem de ciúmes. Tem graça mesmo, querer adivinhar os meus pensamentos. Nem eu mesma me dou conta do que se passa em minha cabeça no momento em que eu dobro as roupas. São milhares de pensamentos ao dia, tão insignificantes e sem nexo que nem me dou conta. Só sei que penso, porque é normal para todo mundo pensar o tempo todo. Daí a saber tudo o que penso, já é demais! Talvez eu até pudesse pensar como os meninos estão crescendo, que preciso comprar mais blusas de frio para eles, olhando esta pilha de roupas, mas não posso afirmar.

- Está pensando em alguém, tenho certeza!

- Não diga bobagens. Pensando em quem? Não diga asneira! Deixa de falar bobagens. Eu aqui tão ocupada com o serviço da casa... Não tenho tempo nem mesmo de pensar em mim.

- Você não me engana; eu conheço esse seu olhar!  Esse seu silêncio. Vamos, fale comigo! Viaja para um lugar em que eu jamais posso entrar. Diga em quem está pensando de uma vez! Diga! Estava sorrindo, estava cantando. Diga com quem estava sonhando! Eu não suporto mais isso. Você me atormenta com esse seu olhar que nada me conta... Um olhar intraduzível. Vive escondida nesse sorriso incógnito. Não é sublime um olhar que me deixa de fora!

- Que questão mais metafísica!  Não estou rindo, nem pensando, nem nada. Estou respirando, se é que isso você me permite. Deixe dessa loucura de traçar a anatomia dos sentimentos e venha me ajudar!Você está infernizando a minha vida com essas desconfianças. Eu preciso é de paz, está ouvindo? Eu preciso de paz!

- Eu queria encontrar o lado bom da vida ao seu lado, mas você não compartilha o que vai à sua alma... Preciso saber o que vai à sua alma!...

- Minha alma precisa é de sossego! Deixe de asneira e vai procurar um serviço e me deixa trabalhar em paz!

Valéria Áureo

6/08/2017

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Persuasão


 
Ilustração: Internet

 

         - Então, é seu primeiro assalto, já respondeu por alguma coisa?

         - É, sim senhor! Só fui pego na malandragem antes, coisa de moleque “di menor”. Mas a minha ficha está limpa.

         - E o que pretendia com isso?

        - Tô sem dinheiro, senhor, sou trabalhador. Os coroas estavam aqui perto, deram oportunidade e eu me senti desafiado. Bolsa, colar, relógio celular, tudo dando mole, me chamando pro combate. Foi convite pra ação, sabe como?

        - E por isso acha que pode sair roubando por aí? Ainda mais um casal de idosos? Não tem vergonha não?

        - Eu tô na noia, senhor! Mas eu não judiei de ninguém não; foi tudo na diplomacia. Foi no diálogo, no argumento, na inteligência, doutor!... Não mostrei arma nenhuma não, porque respeito os cabelos brancos. Velho me comove! Não mostrei arma não! Ficou guardada na cintura só para a minha segurança; é que eu estava muito nervoso. Olhei para os dois velhinhos e me lembrei de minha vó. Sabe como é, a primeira vez a gente titubeia. Se ficasse pensando muito na minha velha, aí é que eu não conseguia mesmo fazer o assalto e  nem conseguia desvendar o bagulho. Ela não ia gostar de me ver nas quebradas, aprontando. Mas eu agi com cuidado, com respeito. Não agredi e nem ofendi; até chamei de senhor e senhora... Foi tudo no respeito e elegância. Só entrei na mente do sujeito para ele me dar o dinheiro, não teve agressão. Sou um cidadão educado, só entrei na mente dele com muita diplomacia, dialogando, senhor!.

        E como é que você faz para entrar na mente da pessoa?

        - Ah! Senhor, aí eu digo que vou fazer isso e aquilo e aquilo outro. Eu não boto terror! É um trabalho de persuasão, está me entendendo? Na eloquência! Falo, mas nem grito, só trabalho no contexto da paz e do amor. Falo assim: - Se não der isto, já sabe o que pode acontecer, meu bom! Eu aviso! Não ataco e nem machuco ninguém. Eu convenço a pessoa a me dar o que eu quero, mas eu não toco em um fio de cabelo dela, nem falo palavrão. Chego ao assunto com o cliente, com cordialidade, argumento e domino a mente dele, olho no olho. Nem mostro a arma, porque eu ajo com a cabeça e as palavras, tá ligado? Arma só em último caso, se o sujeito for mesmo cabeça dura; mas, se ele está pronto para o diálogo tudo acaba bem. É tudo na diplomacia, doutor! Não sou sujeito de violência não!  Eu só trabalho na mente do sujeito. Tem que ter retórica, doutor! Tem que ler Aristóteles, esses caras, tá ligado?Agora eu posso ir embora, doutor?

    Autora: Valéria Áureo

01/08/2017