Apresentação

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domingo, 3 de março de 2019

Maria vai...





          Maria, você vai? Você vai sozinha? Vem comigo?... Você vai, ou fica? Vamos logo, entre no carro! Eu queria que a intimação soasse leve, como um convite. Ela era tão delicada, que eu cuidava de adoçar a voz.
          Não se ouve nada no quarto e nem no corredor, só o barulho das chaves na minha porta; um lacônico comentário atravessa a garagem quase vazia, antes de entrarmos no carro.  Caladas! Estávamos atrasadas e provavelmente os demais moradores já estavam longe. Eu e ela, lado a lado no carro, percorríamos o silêncio. Eu fazendo as minhas associações de ideias e ela balbuciando uma canção. Como Maria gosta de cantar! Eu atrapalhei tudo!...
          O sinal está fechado! Ela com pressa, porque tem provas no colégio, está impaciente; eu sem pressa nenhuma, querendo alongar a sua presença ao meu lado, até a eternidade. Finjo que estou calma. A vida nos seus segundos é tão delicada! Maria é delicada! A existência repartida em horas é tão buliçosa, seguindo sempre em frente; não pode, não quer e nem sabe se deter. Maria vai no compasso da música que cantarola; como sempre e do meu jeito, eu acelero os meus pensamentos, enquanto piso no pedal. O sinal de trânsito cordialmente abre para nós! O cachorro atravessa o nosso caminho, quebrando a cor cinzenta do asfalto. O cachorro é branco. Meus pensamentos cinzentos. Percorremos as ruas ainda bem cedo, quase vazias, e cruzamos avenidas, mais silenciosas do que o costume. Maria sentada comigo, vai tomando o seu caminho de moça. Os primeiros alvoroços de moça apontam em seus olhos, lábios, seios. Maria vai, Maria vem... Ela não é; ela está se fazendo uma mocinha. Ela vai com as outras, pois as amigas a esperam do lado de fora do portão. E eu não posso ser vista, porque ela é grande, é uma mocinha, e não se sente mais a filhinha da mamãe.
          Maria acena para mim despedindo-se, bem de longe, para que não vejam que a mãe amorosa ainda a acompanha e aguarda os beijos infantis. Ela acena para as outras Marias - a mão com unhas de esmalte rosa e a sua pretendida condição de emancipação: já sabe andar sozinha, sabe pegar ônibus, sabe pegar metrô, sabe falar inglês. Sabe tudo! Quer fazer intercâmbio, quer viajar, quer fazer faculdade fora do país e morar sozinha. Eu, os meus medos!
          Eu, toda manhã, insisto em trazê-la, sob o mesmo pretexto de apenas ficar um pouco mais junto dela, que vai crescendo tão rapidamente e ocupando mais espaço no mundo a cada dia que passa. E eu vou deixando minha agenda cada dia mais vazia. Eu vou me encolhendo e cada dia ocupo menos espaço.
          Desta vez, pouco nos falamos, porque o meu caminho vai ficando para trás, com a urgência das rodas no asfalto cinzento,  rapidamente percorrido pelo cachorro branco, enquanto o caminho dela se descortina morosamente, como por encanto. O momento é delicado e estou meio sorumbática. O cachorro segue adiante correndo, correndo...
          Vou ficando mais velha, vou rezando mais o terço e as novenas, a cada dia; vou observando mais, vou temendo mais, implorando mais... É mais uma data importante que preciso registrar nos meus álbuns de nostalgias. Pego o celular e faço uma selfie; Maria a contragosto não quer essas demonstrações públicas de afeto e se afasta de meu beijo maternal. Maria vai!
          Há outras mães enfileiradas em seus carros, em uma caravana dolorosa, cujas filhas se exercitam na ocultação das demonstrações de carícias, afastadas da entrada do colégio. Maria se afasta. Maria vai... Maria vai com as outras, de mãos dadas, rindo efusivamente e esquecendo-se de mim. O sinal ficou fechado, enquanto eu interrompia a identificação desse afastamento físico e emocional com lágrimas quentes escorrendo em meu rosto gelado. O sinal abriu e um carro atrás buzinou, acelerou e fez ruídos com uma obstinação raivosa, que não convinha à hora nem ao trânsito tranquilo. Hoje não! Hoje eu não poderia me aborrecer com absolutamente mais nada, porque ir além era o meu destino. Eu teria que deixar de ouvir os pequenos incômodos dos pensamentos cinzentos e me abastecer de paciência e esperança, enquanto eu deixava Maria crescer. Maria vai, adentrando o colégio; Maria vai com as outras, de mãos dadas, humanizada com outras meninas iguais, na urgência de deixar-me e a infância para trás. Vai, Maria! Vai Maria, vai com as outras! ...

To: Candice Áureo C. L. Fonseca