Apresentação

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quinta-feira, 27 de julho de 2017

CONSTA AQUI











- Boa tarde, senhor! Estou procurando André Muletta, morador da casa 11, da Rua dos Inválidos, aqui no Bairro do Descanso Sereno. Sou fiscal da Receita. Estamos atualizando o nosso cadastro de pessoas ineficientes e improdutivas para o país. Aqui consta o seu nome, endereço, identidade e CPF. Confere?

- Sim, confere, sou eu mesmo, André Muletta, Rua dos Inválidos, Bairro do Descanso, mas espere! Que história é essa de pessoa ineficiente e improdutiva para o país?

- Seus impostos estão em dia?

- Claro que estão. Não devo nada a ninguém e nem ao governo, esse ladrão!

- Não se exalte! Vamos aos fatos! Consta tudo aqui... Verificamos que Vossa Senhoria atingiu o limite de idade, conforme a Lei Estadual nº100004287, parágrafo 25, alínea b. Consta em nossos arquivos do IBGE e da Receita que a existência de Vossa Senhoria nessa idade atual não confere nenhuma vantagem para a sociedade, bem como lhe causa danos econômicos irreversíveis. O senhor é um peso morto para a sociedade!

- Como assim, peso morto? Está de brincadeira comigo, seu cabra? E eu causo danos? Está ficando louco? Como não interessa mais para os outros a minha existência? Mas por que me diz uma sem vergonhice dessas? Está dizendo que sou inválido, um traste, um inútil que não sirvo mais para nada? Eu estou vivo, pô... Ando, falo, escuto, vejo...

- Não sou eu quem diz, é a Lei. Veja este documento! Consta aqui nos documentos oficiais. Já se deu conta de sua situação miserável? Pela sua idade o senhor está aposentado... Não serve para mais nada. Come, dorme, come e dorme e mais nada de útil para o país... O Governo está mudando... Estamos em crise e precisamos economizar. A previdência não tem mais condições de garantir as pensões e aposentadorias. Não temos como suportar o pagamento de tantas aposentadorias, entende? É o seu caso, Seu Muletta. O país envelheceu! Estamos precisando de sua colaboração.

- Estão ficando loucos? E eu com isso? Eu sempre paguei os meus impostos em dia! Trabalhei a minha vida toda. Me matei, dei o meu suor e meu sangue para este governo.

- Mas o senhor está aposentado. Parou de produzir. Está aqui no documento oficial da Receita Federal. Por esse motivo " Vossa Senhoria deverá comparecer ao Crematório Municipal da Vila Alpina, ala 06, até oito dias após o recebimento desta notificação oficial, às 14 horas, diante do forno crematório 06, ala norte, para que seja providenciada a vossa incineração".

- Como é que pode? Estão ficando doidos? Como é que pode uma desgraça dessas? O sujeito do imposto de renda vem aqui na minha porta, para fazer uma coisa indecente dessas com o povo? Está dizendo que sou um peso morto?... Só eu? Então eu vou andando daqui da minha casa até o cemitério, para eles me tacarem fogo? Chego lá andando, falando? Vocês do governo chegam aqui em casa e falam uma coisa dessas? Está errado, isto não está certo não! Então! Vou daqui de casa, direto no cemitério e chego lá, me apresento pros caras, mostro os meus documentos e falo que é para me queimarem vivo?

- Sim, os documentos são muito importantes. Não poderá esquecê-los. Lá mesmo eles darão baixa, se é que me entende e já colocam o seu nome no arquivo morto.

- Ô Xente! Quando chegar lá eles vão me queimar vivo, é isso? Vou chegar lá e dizer o quê? Que vim aqui me entregar para me queimarem?

- O senhor não está entendendo, meu amigo. É a lei. Pela sua idade... Então? Setenta anos, pelo jeito que está aí...

- Pelo jeito que está aí? Uai, eu estou andando, falando, Tudo normal! Tudo; estou bão, o senhor não está me olhando aí? Não tô morto não, seu safado!

- O que o senhor vai trazer de benefício para o Estado? Está no cadastro de pessoas ineficientes. O governo precisa economizar. Está sem dinheiro!

- Ah! Que é que é isso? Que desgraçados! Os safados, vagabundos e ladrões roubam o dinheiro todo do país e eu é que vou para a fogueira? Eu não sou ineficiente, seu corno. Querem fazer churrasco de mim, seus safados? Como não interessa mais para os outros? Sou importante, pelo menos para a minha família. Isto não está certo. Estão ficando doidos? Trabalhei a vida todinha e agora o senhor me traz isto aqui e eu vou lá me
entregar para os caras? Agora, porque estou com setenta anos, vou sair da minha casa, porque o senhor mandou e vou dizer lá no cemitério: vim aqui me entregar para o senhor me queimar, porque o governo mandou!... Tá louco? Estão ficando doidos? Trabalhei a vida toda, nunca fiz nada de errado sempre fui honesto, trabalhador, paguei em dia as minhas contas... E agora querem me queimar vivo? Estou bão, estou andando, aí... Num tá vendo? Até trabalho para completar a miséria da aposentadoria.

- O senhor não está entendendo, mas não se exalte; consta tudo aqui... O seu nome está aqui no cadastro. Deixa eu falar com o senhor, Seu Muletta , e dar as instruções. " Vossa Senhoria deverá comparecer ao local, munido de cinco metros cúbicos de lenha de boa qualidade, com certidão de procedência, para não poluir o ambiente. Levar saco plástico tamanho 10, padrão B, número 53, de cor preta, sem costura, de acordo com as Normas da ABNT... Levar dez litros de gasolina azul, aditivada! Levar um isqueiro descartável. Antecipadamente declaramos os nossos agradecimentos por vossa imensa colaboração e reiteramos a nossa mais elevada estima. Adeus!"

- Adeus? Mas que desgraçado! Que vagabundo! E não é a gás? O crematório é a lenha? E eu ainda levo a lenha, a gasolina e o saco? Ô xente! E ainda pago a farra do boi?

- É... Lenha de boa qualidade, com registro de procedência; as normas ambientais são rígidas. A Petrobras está em crise. O gás está muito caro. O governo precisa de nós. Pode assinar aqui, por favor?

- Assinar? Eu vou assinar a minha sentença de morte? Está louco? Eu não, seu safado de uma figa! Se eu não fiz nada de errado? Ainda quer que eu pague o imposto de renda e deixe a minha casa para vocês? O senhor está doido? Vá para o diabo que o carregue, seu chifrudo. Eu só saio da minha casa, morto, está entendendo?! Ainda quer que eu leve o saco, o carvão, a gasolina e o diabo que o carregue, para me queimar vivo e vá
andando para o cemitério? Vá se queimar o senhor, no raio que te parta, no quinto dos infernos, seu safado, seu filho da p... Governo desgraçado! Só saio daqui morto! E vão fazer isso com todo mundo da minha rua, é? Vagabundos; só saio morto, está ouvindo, só saio daqui morto!




Autora: Valéria Áureo





"Duas figuras eram mestres na arte de criar situações fazendo uso de falsos memorandos ou falsas cartas: Alberto Carvalho e Carlos Heitor Cony. A dupla tinha o requinte de guardar papeis timbrados que chegavam à redação e recortar logotipos e cabeçalhos para "oficializar " memorandos ou comunicados".
No texto acima eu me inspirei em um desses memorandos "oficiais" criados pelos jornalistas que resolvem "zoar" um amigo. Escrevo esta crônica com as devidas atualizações e adaptações ao contexto , servindo-me da referida "notificação oficial" e que mantenho entre aspas, para preservar a autoria dos referidos jornalistas. Trata-se de uma crítica social, em tempos de reformas.