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sexta-feira, 21 de junho de 2019

Meu amigo, Machadinho


                                                        Fonte de ilustração: Internet

 Eu gosto de catar o mínimo, o escondido... *



   - Então, meu jovem, cá estás. Demoraste hoje. 
O que te impediu que  viesses me ver mais cedo?
         - Vim ter contigo, à sombra da Academia.  Estou ocupado em fazer uma resenha sobre ti, meu amigo. Pena que me limitaram a sessenta linhas... Acho tão pouco; há tanto que falar de ti! Incomoda-me ver-te aí sozinho, vendo o tempo passar. Não te aborreces com a solidão? A mim, dói-me o coração.
         - Eu compreendo... O coração é a região do inesperado. Tudo cansa, até a solidão.  Tédio por dentro e por fora... Mas não estou assim tão só; Carolina me vigia da janela do sobrado. Bem sabes quanto ela é ciumenta. Não te recordas das brigas por causa de Helena? Então, meu amigo, cem anos!... Daqui onde estou vi enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros com a mesma rapidez e igual monotonia. Daqui deste trono de bronze inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas. Vi o tempo correr... Nós matamos o tempo, mas ele enterra-nos. A grande vantagem da morte é que, se não deixa boca para sorrir, também não nos deixa olhos para chorar. Mas, escrever sobre mim? Quer fazer-me elogios? É o que eu disse: Está morto; podemos elogiá-lo á vontade. Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões de minha vida são as dos jantares em que sou brindado. Mas, meu caro, há coisas que melhor se dizem calando...
         - Calar, como? Preciso escrever sobre ti; enaltecer-te no centenário de tua morte. Deliberação de teus confrades; deves saber, no último chá. Tu és tão admirável! ... Preciso dizer que tu vives; preciso dizer que permaneces inquebrantável no tempo, um século depois... Não sei bem por onde começar...
        - Ora, o tempo... O tempo, que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é, pelo contrário, um eterno rapagão; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude. Comece pelo começo... Vejamos: o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Lembra-te de minhas Advertências? E mais: Palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies. Não te esqueças: sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa.... Quanto a eu estar ainda vivo... Sei; ao menos nos livros e memórias dos amigos. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem.
        - O que poderei falar de ti em tão poucas linhas? Conto da Academia? Falo do retrato social em tua obra? Digo da ironia? Das metáforas incomparáveis? Não quero fazer uma biografia. Quero dizer do teu estilo, do valor de teus romances, teus contos, tuas crônicas... Sempre os indico aos alunos.
        - Dize que inaugurei o realismo nas letras brasileiras! Dize que me tornei um arguto observador e analista psicológico dos personagens! Dize que fiz várias digressões e narrativas de maneira irreverente e irônica e me fiz passar por um "defunto autor" (e não um "autor defunto", como podem pensar)!. Ele, que por estar morto, se exime de qualquer compromisso com a sociedade, estando livre para criticá-la e revelar as hipocrisias e vaidades das pessoas com quem conviveu. Dize que interrompi a narrativa, o tempo; que dialoguei com o leitor e que sugeri estar escrevendo algum capítulo e até mesmo propus ao leitor a supressão de algum outro! O tempo foi uma brincadeira... Uma ilusão! Como é agora. Não estamos cá nós dois a conversar? Pois fui ao passado, conheci dos segredos após a morte, sem revelar ao leitor tais mistérios; um narrador irônico acerca das paixões humanas. Dize, sobretudo, que vivi e que amei Carolina, a luz dos meus olhos!...

        - Não sei se tu mereces um escritor tão sem prestígio quanto eu.... Queria ser um cronista, de imaginação inesgotável para declarar ao mundo a tua importãncia. Mereces um autor de espírito!....
         - Se queres compor o livro, aqui tens a pena, aqui tens papel, aqui tens um admirador... Meu amigo,  a imaginação e o espírito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. Anima-te, escreve como sabes! Não deixes de arriscar. A vida é uma enorme loteria; os prêmios são poucos...

         -Mas, escrever em tão poucas linhas? Sou um sujeito prolixo. Poderia dizer muito de ti. Levaria meses escrevendo... Há particularidades que não encontro em outro autor... Mas o pouco tempo e o espaço me intimidam a imaginação... Temo me perder, extrapolar o limite das sessenta linhas...

        - Prazos largos são fáceis de subescrever. A imaginação nos faz infinitos. A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre por mais vontade  que tenha de as infringir deslavadamente. Limita-te, portanto! Respeita as exigências!.Dize simplesmente: trata-se de um escritor carioca, brasileiro, mulato, o pai do realismo ( "Não tive filhos... Deixo livros, ao menos...)! Conta de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Dom Casmurro, de Quincas Borba, de Helena, dos contos, como Papéis Avulsos. Dize do conto O Alienista, no qual discuto a loucura! Loucura é um tema instigante. Conta das poesias e que fui um ativo crítico literário, um dos criadores da crônica no país!. Conta que fui o fundador da Academia Brasileira de Letras com outros notáveis! Escreve, amigo!... Escrever é uma questão de colocar acentos. Vamos!... Inspira-te logo  e mãos à obra!...
         - Ora, tu e tuas Advertências... Elas servem para que fiquemos avisados, assim não se espera ser censurado, admoestado e nem se tem que se acautelar contra livros e contos de um escritor tão famoso que escreve tão bem, todo o mundo respeita, e até já morreu. É difícil falar de ti, estando na tua presença.
        - Eu, já não importa mais quem eu fui. Elogia minha obra e dou-me por satisfeito; Fiz o que pude.. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Não te esqueças, meu caro rapaz, a respeito de tua resenha: Ao vencedor, as batatas. E termina logo esta narrativa que já estás a estourar os limites!...Não te alongues tanto; assim não te consideram o trabalho, nem te publicam.

Valéria Áureo 
Rio de Janeiro
Março de 2008


*A autora se valeu de vários recursos para tornar crível um diálogo entre ela e Machado de Assis. Utilizou o vocabulário elegante da época e, como característica mais significativa, optou pela IRONIA, traço marcante na criação machadiana. As frases em negrito são autênticas, recolhidas da extensa obra de Machado de Assis, dando veracidade ao “colóquio”. 

Dance Comigo, Meu Bem!


                                                  Ilustração: Internet


          

Uma máquina barulhenta recortava ladrilhos no apartamento luxuoso ao lado ( agora uma espelunca esfumaçada  de escombros, resultado de um recente incêndio). Se ao lado era a feiura de fuligem e restos de móveis contorcidos, mais ao alto estavam as nuvens, na concepção do novo morador. Eu, o novo morador, um rapaz irrequieto e cheio de imaginação. Eu acreditava que acima de minha cabeça, seria o paraíso. Enquanto eu escrevia, ouvia tudo o que acontecia no andar de cima. Ouvia a dança que se arrastava no salto alto ( devia ser vermelho), ouvia os passos ritmados sobre a ardósia fria e brilhante; ouvia a respiração, sentia o suor ( que devia escorrer pelo decote e o perfume)... Ela devia se chamar Elisa, leve como o vento... E me imaginava dançando com ela ( que devia ser linda, jovem, delicada). Os passos sussurravam delicadamente em meus ouvidos atentos. Ela, que saberia o que fazer, se quisesse me conquistar para sempre. Ah! Se ela quisesse, ela desceria pela escada, até o quinto andar, exalando o perfume da pele bronzeada, aquecida pela dança... Tocaria a campainha de meu apartamento, e me chamaria para dançar; amarraria uma fita amarela no corrimão, deixaria como sinal, o lenço caído no primeiro degrau do quinto andar, ou no corredor...   

          Então me foi dada a permissão de escrever mais palavras, mas o que eu tinha a dizer nada acrescentaria ao que eu tinha dito ou imaginado. Foi um equívoco, um triste desperdício do idioma, no rol escolhido de palavras sensuais, para uma conquista: a música do andar de cima silenciou; alguém bateu a porta de casa com força, passou a chave e saiu, descendo ritmadamente pela escada; a luz do corredor do quinto andar acendeu. Passos se detiveram diante da minha porta. Prendi a respiração. Três batidas e eu abri, com o coração galopante e atrevido. Pensei que ia morrer. Uma senhora se apresentou como Dona Dadá, uma competente professora de dança. Arfante, de seios enormes e boca vermelha, falou: meu par não veio hoje! Dance comigo, meu bem?

Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações