Uma vez a
menina ficou pendurada na janela, não se sabe como. Não era o jeito habitual de
apoiar-se nos cotovelos, sobre o peitoril da janela, sustentando a cabeça
pacientemente, absorvendo a vida com calma. Daquela vez tinha os pés no
parapeito e as mãos estendidas para cima, seguravam a vidraça erguida.
A menina estava pendurada na janela da casa 87
da Rua Domingos Inácio. Pés no ar, o pequeno corpo balançando e as duas mãos
presas na vidraça. O tempo passou, mas... Ainda agora, está sustentada na eternidade
da janela, cujos vidros são finos e originais. A janela é a mesma, dividida em
quadrados que se sustentam nos esquadros por duas borboletas laterais de metal.
Sei que ainda está pendurada pelas pontas dos dedos, pelas mãos, pelas unhas.
Naquele dia pouco podia, erguida nos braços, naquela imensidão vazia e os pés
no ar que anunciavam uma inevitável queda. Os braços finos sustentavam um peso
que quase não podiam conter.
Provavelmente, desafiava a gravidade, ou apenas pressentia os voos do coração.
O tombo era provável e a altura era grande para a fragilidade do corpo. Não
restava a ela mais que chorar e gritar por ajuda, sem poder descer sozinha...
Sempre gostou de ficar ali. Lá ela via uma aranha papa-mosca, que parecia ser a
mesma que a acompanhava, adiante pela vida, naquela visita diária, na agradável
visão da rua. Ficava ali muito tempo, porque o tempo da criança e da aranha
parece demorar mais a passar. Ela olhava a aranha, olhava a rua, olhava o sol, olhava a borboleta,
olhava o mundo...
A menina
chorou por tempo que nem se lembra. Mesmo com medo, podia ver que uma
correição de formigas tinha destino certo naquela janela. Era uma procissão que
seguia a estreita trilha das ínfimas “lavadeiras” até o buraco onde se
encaixava o trinco. Elas seguiam, umas atrás das outras, carregando pequenos
resíduos de miolo de pão. Também a janela tinha seu destino: mostrar-se, abrir-se,
fechar-se à noite, para ela, enquanto não crescesse. Na janela,
extraordinariamente degrau, improvisada escada, ela via a rua pelo alto, como
se tivesse jeito de gente grande e achava a visão bonita. O novo ângulo apontava
detalhes que ainda não tinha percebido. Via de bem perto como era a vidraça,
aberta para o mundo, e olhava para dentro de si, compreendendo o medo de cair,
a leveza de ter a cabeça no ar, pensando nas pessoas que via passar na rua.
Via, enquanto o coração voava perdido nas nuvens, o caminho das formigas, a
aranha assídua, o reflexo colorido do sol no alto dos vidros, que nunca tinha
visto de perto, provocando arco-íris.
A menina que
eu fui sempre teve o coração atento. Via as pessoas por dentro, por fora, em
volta do riso delas. Gostava de ouvir o silêncio delas, ver seus retratos, seus
rostos congelados nos flashes... Em volta da cabeça delas vislumbrava suas ideias
e sentimentos. Sob os chapéus dos que andavam pela rua, inventava histórias. Via
a tristeza disfarçada num pedaço de fala, via a fugaz sinceridade de uma conversa
e um guarda-chuva pendurado cautelosamente no braço. Via um homem carregando
uma caixinha de fogo dentro do bolso e um cigarro de palha descansando na
orelha... Via quem passava de cabeça baixa, camuflando um silêncio na boca e na
alma. Via as sapatilhas cor- de- rosa, nos pés que brincavam descalços. Via tantos
outros sentimentos que costumam habitar o homem; ela se comovia mais, bem mais
com as dores alheias, do que com o próprio medo.
Via o vermelho da parede descascada da casa e
um buraco na calçada, logo ali na junção da entrada d’água, onde o cano deixava
vazar um esguicho fresco e fino, desenhando no chão um longo, estreito e
imorredouro rio. Via a poça e os olhos dentro dela, dentro das lágrimas. Se as
pessoas achavam que aquele eterno jato escorrendo indefinidamente enfeava a
rua, era puro engano. Era uma chuva artificial que rolava, como se recuperasse
o leito da terra ali disfarçado, irrigando sementes invisíveis, fazendo nascer
capim entre os paralelepípedos. Sob os calçamentos, sob as pedras, sob os
encanamentos, havia senão a terra, o rio, a paisagem inicial, sem a interferência
humana. Assim, uma água que vazava infinitamente na minha porta, era um rio com
barcos embutidos... Era a particularidade da calçada, com uma atmosfera de
riacho, que ela nunca deixou de apreciar. O coração margeava uma planície
escondida na calçada da minha casa, desenhando um lago.
Do alto da
janela via os telhados e as calhas e o céu e as nuvens interrompidas pela
arquitetura. Se não tivesse telhado, pensava, seria só um azul calmo sobre
nossas cabeças. E mesmo que houvesse chuvas, seria um provável princípio de
férias de dezembro. Sem telhados, pensava, teríamos só estrelas sobre nossas
cabeças. Estrelas eram bem mais que telhas... Do alto, via a distância do chão,
a distância da maturidade, a distância da humanidade. A altura da janela era o
tempo. A menina via e temia perder-se na
visão do lado de fora, temia perder sua janela para a compreensão e a morte da
inocência. Temia perder seu próprio rio mágico sob seus pés soltos, erguidos na
imensidão do ar.
A menina viu
o olhar das pessoas que passaram naquela tarde de um passado remoto. Viu em
torno da alegria delas, viu dentro do silêncio delas... Viu a moça carregando
um coração bonito nos lábios de batom vermelho e cheiro de flor. Viu aparecer
um moço que sorriu para ela, dando-lhe um abraço, a bênção, porque era seu
padrinho Zeca Fernandes; deu uma nota para comprar balas para si e seus irmãos
e assim estancar as lágrimas com doces. Viu o padrinho ainda tão moço
resgatá-la das alturas, brincando de avião e colocá-la no chão, onde pudesse se
sentir segura e andar feito criança. Do alto da janela, sob a transparência das
vidraças, a menina vislumbrou-se refletida na poça d’água de sua porta, mais
velha que menina. Pôde compreender-se, olhando para cada um que passava
distanciada no tempo e tão próxima da vida. A menina descobriu a chave da
poesia, das ilusões, dos sonhos. A menina aprendeu a crescer com felicidade,
sonhando, sonhando, sonhando. Sempre prestando atenção em portas e janelas.
Sempre prestando atenção em pessoas, observando do alto, com pés no ar e cabeça
nas nuvens.
Valéria Áureo
27/05/2003
Ilustração:Internet
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