Apresentação

Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de julho de 2013

Querida, o que temos para o jantar?



 Ilustração: Internet


         A fome é um problema imediato, sério e com ela não se brinca. Tão sério que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), propôs em Roma um programa que incentiva a criação em larga escala de insetos, para reforçar a segurança alimentar. Segundo o órgão, insetos são alimentos ricos em nutrientes, gorduras e minerais; são de baixo custo, ecológicos e "deliciosos". Apesar da ideia nos parecer inusitada, e mesmo repugnante, nossos índios já nos ensinavam isto consumindo tanajuras e larvas.

           Os trilhões de insetos, que se reproduzem sem parar na terra, no ar e na água, "apresentam maiores taxas de crescimento e conversão alimentar alta e um baixo impacto sobre o meio ambiente durante todo o seu ciclo de vida", defendem os especialistas. De acordo com seus cálculos, cerca de 900 espécies de insetos são comestíveis. A criação de insetos é simples e extremamente ecológica, sem os impactos da criação do gado, por exemplo.

       O consumo de insetos, chamado de entomofagia, já é difundido e praticado há muito tempo em regiões da África, Ásia e América Latina. Outro argumento a favor da criação de insetos é que eles “podem ser colhidos em seu estado natural, cultivados, processados e vendidos pelos mais pobres da sociedade”. Se a fome é o grande mal, ela tem que ser combatida da forma que for possível. É questão de sobrevivência.

   Apesar da seriedade do tema, não resisti a uma situação engraçada em que me envolvi hoje. Voltemos ao supermercado. Nada como passar pelas alas de produtos expostos, olhar a diversidade de formas, cores, aromas e paladares... Pensar nas possibilidades e opções do que preparar, nos preços, na fome do mundo e ouvir trechos de conversas.

    Parei na seção de peixes e frutos do mar e me deparei, entre tantas iguarias envolvidas pelo gelo, com uma bandeja que me chamou muito a atenção: “lacraias*, dez reais e noventa centavos o quilo”. Depois do estranhamento e do susto comecei a argumentar com o responsável pelos produtos.

    -Meu senhor, acha mesmo que alguém vai comer isto? É de assustar a aparência deste bichinho vermelho, do tamanho da mão, da largura de três dedos, com dezenas de pares de pernas, de olhos saltados como se não fizessem parte do corpo, pendurados na ponta de duas hastes longas, como um ser extraterrestre...

   -Sim, muito esquisito, muito feio mesmo, dona, mas é muito bom!...

   -Lacraia? Tem certeza? É mesmo este o nome? Lacraia não é aquele bichinho venenoso de esgoto, também conhecida como centopeia?...

  -Ah! Lacraia é venenoso e de esgoto sim. Esta aqui é a lagostinha... Tem sabor de lagosta, camarão; uma delícia... Colocaram este nome aí, porque a gente aqui chama assim mesmo.

     Eu logo pensei na ONU, na fome na África e nas lagostinhas, lagostins ( um crustáceo), aqui chamadas erroneamente de lacraias... Seria uma tentativa de o supermercado se enquadrar no que é politicamente correto? Sem dúvida... Hoje estamos vendo desejos de respostas imediatas aos apelos nacionais e internacionais... Já seria uma adesão à proposta da FAO para se combater a fome no mundo? Com fome não se brinca, eu sei, mas não resisti e fiz o comentário:

     -Está certo, se é saboroso como a lagosta é muito bom mesmo!... Por que a etiqueta diz que é lacraia? Acha mesmo que alguém vai comprar este bicho com este nome tão repulsivo? A aparência dele já não ajuda... Nem o preço, convenhamos!... Pois eu o aconselho a mudar o nome desta criatura, ou o produto vai ficar encalhado. O povo vai se sentir muito melhor comendo lagosta, lagostinha, não acha? Pare para pensar um pouco... Já imaginou meu senhor? O marido  chega em casa, depois de um dia de trabalho e cansado pergunta para a esposa:

     - Querida, estou morto de fome!... O que preparou para o jantar?

     E ela responde amorosamente, ofertando-lhe a deliciosa iguaria:

     -Lacraia, meu amor, lacraia!



Valéria Áureo

26/06/ 2013
*Lacraias, ou centopeias, são artrópodes da classe Chilopoda, geralmente encontrados em solo úmido, sob cascas de árvores, rochas, dentre outros; em regiões tropicais e temperadas. De hábitos noturnos, alimentam-se, principalmente, de pequenos artrópodes, minhocas e vermes: vítimas estas que capturam ainda vivas, inoculando seu veneno a fim de paralisá-las.



                                                           Foto: Valéria Áureo